Unidade, diálogo, os pobres e paz: as quatro palavras que definiram a primeira viagem de Leão XIV

Foto: @RTErdogan/FotosPúblicas

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03 Dezembro 2025

Não houve frases explosivas ou gestos improvisados ​​ao estilo de Francisco, mas sim uma cuidadosa coreografia de palavras, silêncios e abraços que retrata um Papa sereno e multifacetado, e, no fundo, muito dentro da tradição bergogliana.

O artigo é de José Manuel Vidal, publicado por Religión Digital, 03-12-2025.

Eis o artigo.

Leão XIV iniciou seu pontificado itinerante com um itinerário denso e eloquente: Turquia e Líbano, duas encruzilhadas onde estão em jogo a unidade dos cristãos, o diálogo com outras religiões, o acolhimento dos pobres e migrantes e, sobretudo, a paz.

Não houve frases explosivas ou gestos improvisados ​​ao estilo de Francisco, mas sim uma cuidadosa coreografia de palavras, silêncios e abraços que pinta o retrato de um Papa sereno e multifacetado e, no fundo, muito na linha de Bergoglio: um Leão XIV que reza diante das ruínas, ouve as vítimas, se curva diante das minorias e implora ao mundo que “as armas matam” e que somente a negociação, a mediação e o diálogo “constroem” um futuro possível.

Unidade entre os cristãos e diálogo com todas as religiões

Na Turquia, onde os cristãos representam pouco mais de 1% da população em um mundo predominantemente muçulmano, e no Líbano, um mosaico de igrejas e religiões, Leão XIV jogou sua primeira grande carta como pontífice: apresentando-se como garantidor da unidade e construtor de pontes. Sem alarde, repetiu o mantra de “unidade, reconciliação, paz, fraternidade e a centralidade de Cristo”, consciente de que a credibilidade do Evangelho depende da capacidade dos cristãos de viverem em reconciliação e de dialogarem com o Islã, o judaísmo e as demais religiões presentes na região.

Sua liturgia às margens do mar de Beirute, sua oração diante da explosão no porto e seus encontros discretos com líderes religiosos transmitiram uma mensagem clara: não haverá paz no Oriente Médio sem igrejas e religiões reconciliadas que olhem nos olhos de todos os filhos de Abraão.

O Papa também recordou o legado de João Paulo II, observando que “o Líbano, mais do que um país, é uma mensagem”, e apelou para que “abramos as nossas confissões religiosas ao encontro mútuo” e “desarmemos os nossos corações” para que “a paz e a justiça triunfem e todos se reconheçam como irmãos e irmãs”.

Numa época em que o fundamentalismo e a instrumentalização da religião alimentam a guerra, Leão XIV coloca a Igreja e as religiões do lado da coexistência, e não do choque de civilizações. Portanto, um claro e retumbante não à guerra cultural travada por Trump, Vance nos EUA ou Vox na Espanha.

Acolher os pobres e os migrantes: a viagem como exame social

Esta primeira viagem também tem sido um teste de coerência social. O Papa concentrou-se no Líbano, devastado pela crise econômica, pela corrupção e pelo êxodo em massa de jovens, e na Turquia, um país de trânsito para milhares de migrantes.

Em Beirute, ele reconheceu que a beleza do país "está ofuscada pela pobreza e pelo sofrimento, por um contexto político frágil e instável, pela dramática crise econômica que os oprime, pela violência e pelos conflitos que despertaram antigos temores". E, diante desse cenário desolador, convidou a todos a "encontrar as pequenas luzes que brilham nas profundezas da noite" e a "um compromisso compartilhado com esta terra".

Suas ações falaram tanto quanto seus discursos: a visita ao hospital psiquiátrico e ao hospital De la Croix, o longo tempo dedicado às vítimas da explosão no porto, o gesto de se ajoelhar diante do monumento às 200 vítimas e às centenas de milhares de deslocados.

Ali, ele foi visto abençoando as testas das vítimas, abraçando uma mulher tomada pelas lágrimas, abaixando-se à altura de uma criança e deixando-se comover. São os pobres, os doentes, os migrantes e os mais vulneráveis ​​que ditam o rumo da jornada e que definem a "geopolítica do Evangelho" de Leão XIV: uma Igreja que, sem slogans, se coloca ao lado daqueles que pagam o preço pelas decisões alheias.

Paz e prudência: o equilíbrio de um pai matemático

Se a jornada tivesse que ser condensada em uma única cena, seria a missa final na costa de Beirute, com mais de 100 mil pessoas e um apelo direto: "Que cessem os ataques e as hostilidades. Que ninguém acredite que a luta armada traga qualquer benefício. As armas matam. A negociação, a mediação e o diálogo constroem. Que todos nós escolhamos a paz como o caminho, não apenas como o objetivo!"

Ao mesmo tempo, o Papa evitou apontar o dedo para Israel nominalmente, movendo-se — como um bom canonista e matemático — na tênue linha entre a condenação moral e a diplomacia prudente: falou das regiões do sul, do Vale do Bekaa, dos bombardeios e da “situação dramática em Gaza”, defendeu a solução de dois Estados e lembrou que “somos amigos de Israel” e que a Santa Sé está pronta para ajudar a aproximar as partes.

Não houve frases disruptivas nem saltos abruptos no roteiro, mas sim um fio condutor constante: o apelo por uma "paz desarmada e sem armas", a insistência no diálogo como único caminho e a recuperação da melhor tradição da diplomacia vaticana como uma "consciência moral" em meio a um mundo em chamas.

A paz de Leão XIV não é ingênua nem neutra: ela reconhece o sofrimento, se solidariza com as vítimas e pede a todos — políticos, religiões, povos — que "cada um faça a sua parte e que todos unam esforços para que esta terra recupere o seu esplendor".

Um Papa formal, multifacetado e muito evangélico

A viagem acabou por revelar o estilo peculiar de Leão XIV. Mais formal e menos improvisador do que Francisco, ele se ateve aos discursos preparados, mas mostrou-se mais descontraído e afetuoso: sorriu bastante, permitiu que os jovens o abraçassem e deixou transparecer suas emoções quando a lembrança da dor o atingiu.

Seu perfil multilíngue — inglês, italiano, francês, espanhol, saudações em turco e árabe — multiplica o alcance de suas mensagens e o torna um Papa especialmente adequado à era global e das mídias sociais.

Sua boa condição física, agenda intensa e capacidade de se deslocar rapidamente contrastam com os últimos anos de Francisco e projetam a imagem de um pontificado com fôlego para longas viagens.

Em última análise, este Leão XIV, que visitou a Turquia e o Líbano sem alarde ou manchetes fáceis, deixou claro o ponto essencial: ele quer uma Igreja que promova a unidade entre os cristãos, que se engaje verdadeiramente em diálogo com o Islã e outras religiões, que se ajoelhe diante dos pobres e migrantes e que nunca se canse de repetir, por meio de palavras e ações, que as armas nunca terão a última palavra e que ninguém pode matar, muito menos em nome de Deus.

A primeira viagem de Leão XIV não foi um trovão, mas uma chuva suave e penetrante. Sem improvisações espetaculares, mas com gestos muito concretos, ele revelou o mapa do seu pontificado: ecumênico e aberto ao diálogo, socialmente consciente e compassivo, prudente e, ao mesmo tempo, firmemente comprometido com a paz. A Turquia e o Líbano foram o laboratório onde o Papa testou a sua grande equação: unidade + diálogo + acolhimento + paz. Resta saber se o mundo, e a própria Igreja, se atreverão a trabalhar ao seu lado nessa equação.

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