28 Fevereiro 2025
Como ensina a parábola evangélica do Bom Samaritano, a fé não é a adesão a um dogma, mas a cura da ferida. Essa é a imagem da Igreja como “hospital de campanha” proposta por Francisco.
O artigo é de Massimo Recalcati, psicanalista italiano, em artigo publicado por publicado por “la Repubblica” de 27-02-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "em um tempo em que o discurso religioso corre o risco de se transformar em um delírio identitário, em que a fé se enrijece em uma ideologia que semeia morte, guerra e destruição, o Papa da misericórdia nos lembra que o coração do cristianismo não é a defesa de uma fortaleza vazia, mas o movimento extático de sair de si mesmo, da vertigem do encontro, do duro impacto com a alteridade do Outro"
"Este é o verdadeiro escândalo - conclui o psicanalista - um Papa que rejeita a toga do juiz impiedoso para usar as vestes do nosso próximo, daquele que está realmente ao nosso lado".
O pontificado do Papa Francisco marcou, desde a escolha de seu nome, uma profunda ruptura na linguagem codificada da Igreja. Sua voz nunca foi a de um soberano que guia seu povo com mão firme ou que defende a autoridade incontestável dos dogmas com perícia teológica, mas a de um pastor que suja as mãos, que se inclina sobre as misérias humanas sem nunca brandir o bastão desumano da condenação. Francisco não é o papa da Lei e de seu temor, mas o da Graça e da salvação imerecida que ela torna possível. Por essas razões, em seu pontificado, a palavra-chave é “misericórdia”. É a mensagem mais radical de Jesus que, citando o profeta Oséias, afirma: “Misericórdia quero, e não sacrifícios” (Mt 9,13).
Obviamente, não se trata de uma simples exortação moral, mas de um talho subversivo no tecido simbólico da Lei. O perdão e o amor, aos quais a figura da misericórdia remete, rompem drasticamente com o caráter meramente vingativo e retaliatório da Lei para abrir o espaço sem precedentes de uma nova possibilidade. O pecado, nessa perspectiva, não é uma mancha indelével, mas uma condição humana que pode ser atravessada, compreendida e totalmente aceita. É o pecado de Pedro que renega, de Tomé que duvida, de Saulo que persegue. É o pecado que sempre pode ser convertido em um novo começo. É a água pútrida que se transforma em vinho sublime nas bodas de Canaã. É o paralítico que se levanta depois de sua vida ter ficado irremediavelmente presa por anos.
Nesse sentido, a Lei da qual Francisco dá testemunho nunca coincide com a aplicação normativa de seus preceitos, mas, nas palavras de Levinas, se encarna no rosto do Outro, no apelo incondicional à fraternidade que esse rosto traz. O Deus de Francisco não é o juiz implacável que instila medo, nem a impessoalidade metafísica de uma Lei sem coração, mas o Pai que “faz que o seu sol se levante sobre os maus e os bons” (Mt 5,45). Nesse sentido, a misericórdia é o resto irredutível da Lei, sua “semente sagrada”, como diria Isaías, ou seja, aquilo que escapa à lógica do cálculo e do mérito, aquilo que excede o mecanismo legalista da retribuição simétrica.
Como ensina a parábola evangélica do Bom Samaritano, a fé não é a adesão a um dogma, mas a cura da ferida. Essa é a imagem da Igreja como “hospital de campanha” proposta por Francisco.
Mas também é a imagem destes últimos dias de seu próprio corpo doente, constantemente oscilando entre a vida e a morte. No entanto, é também seu estilo de falar, sua maneira oblíqua e claudicante de se mover no espaço, sua gestualidade fraterna, seu senso de humor alegre. Francisco é um Papa que sabe tocar, abraçar, sorrir, mostrar sua fragilidade sem reservas. Ele é, evangelicamente, o pequeno que se torna grande não contra o pequeno, mas justamente porque é pequeno, como acontece com o grão de mostarda evocado por Jesus que gera uma árvore frondosa na qual até os pássaros podem pousar. Assim, até mesmo seu próprio corpo doente, que vemos sob os holofotes nestes dias, tornou-se um teatro da proximidade e do estar junto. Se o poder da Igreja sempre teve a tentação de se cercar atrás de muros de separação, ele optou, desde o início de seu pontificado, por derrubar esses muros.
Foi isso que fez de Francisco uma figura tão amada e controversa. Porque a misericórdia, quando se torna testemunho ativo, coloca em crise, em primeiro lugar, a estrutura asséptica do poder. Aqueles que invocam a pureza da doutrina, aqueles que defendem a rigidez das regras sem ter uma compreensão do sentido profundo da Lei, aqueles que gostariam de uma Igreja fundada na rígida distinção entre os justos e os injustos, não podem deixar de perceber esse Papa como uma verdadeira perturbação. Ele não é o pontífice que tranquiliza, mas o que interroga, não é o guardião da ortodoxia, mas da abertura ao diálogo, não é o que encoraja políticas de exclusão, mas o que fez da inclusão um programa político, não é o guardião da natureza infalível da Lei, mas sua encarnação testemunhal.
No Evangelho, Jesus se inclina sobre os pecadores, come e bebe com os publicanos, cura no dia de sábado, escandaliza os tradicionalistas, conversa com as prostitutas e fica no meio dos pobres e despossuídos. Sua existência é ekstasis, dinâmica, impossível de ser reduzida à estática sem vida da dogmática religiosa. Jesus é um transbordo contínuo, um excesso, um desejo que não teme, mas ama o esplendor e a atrocidade da vida. É a mesma ekstasis - o mesmo excedente - que encontramos em Francisco. Nunca é a obediência aos preceitos da Lei que salva as nossas vidas, mas o reconhecimento de que no estrangeiro e no inimigo - ou seja, no Outro que nunca está à nossa disposição - sempre reside um irmão.
Em um tempo em que o discurso religioso corre o risco de se transformar em um delírio identitário, em que a fé se enrijece em uma ideologia que semeia morte, guerra e destruição, o Papa da misericórdia nos lembra que o coração do cristianismo não é a defesa de uma fortaleza vazia, mas o movimento extático de sair de si mesmo, da vertigem do encontro, do duro impacto com a alteridade do Outro. Este é o verdadeiro escândalo: um Papa que rejeita a toga do juiz impiedoso para usar as vestes do nosso próximo, daquele que está realmente ao nosso lado.