24 Agosto 2024
"A obra de Manns faz parte do novo clima de diálogo judaico-cristão. Pelos judeus, Saulo-Paulo é considerado um traidor. Aluno de Gamaliel e profundo conhecedor das técnicas de leituras midráshicas, ele volta os argumentos contra a Torá, reduzindo-a a pedagogia", escreve Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, publicado por Settimana News, 22-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Frédéric Manns (1942-2021), franciscano, presbítero e biblista, foi professor de Hermenêutica Bíblica e Exegese do Novo Testamento na Faculdade de Ciências Bíblicas e Arqueologia de Jerusalém (Studium Biblicum Franciscanum), de que também foi diretor de 1996 a 2001. Foi um dos maiores especialistas na relação entre judaísmo e cristianismo nos primeiros séculos, tendo publicado inúmeras obras de caráter científico e muitos artigos de natureza mais informativa.
O livro sobre Saulo, publicado inicialmente em 2008 e 2009, agora tem uma nova edição econômica, que precede de oito meses a morte de seu amadíssimo autor, em 22 de dezembro de 2021.
Livro Vita di Saulo de Frédéric Manns
Vamos resumir, em linhas gerais, o conteúdo da obra de Manns, que segue principalmente os Atos dos Apóstolos, mas também se substancia dos conteúdos de outros textos da tradição cristã e judaica, mas gostaríamos de mencionar principalmente a intenção que guiou o autor na elaboração de sua obra.
Seu texto, redigido em estilo narrativo, é lido agradavelmente como um conto que apaixona e instrui sobre usos, costumes, hábitos e muitos fatos interessantes e ao mesmo tempo apresenta eventos e personagens.
Três são os motivos apresentados por Manns para a origem do livro: trazer Shaul de volta ao seu verdadeiro contexto judaico, recolocar sua teologia dentro das principais correntes de pensamento judaico-cristãs e revalorizar os Atos dos Apóstolos como fonte autêntica da vida de Shaul.
Saulo se insere no judaísmo helenístico do século I d.C. e levou a mensagem do Evangelho aos povos sempre partindo das sinagogas. Ele sempre terá uma forte preocupação pelo destino do povo de Israel, e seguir a parábola de sua vida leva ao período em que judaísmo e cristianismo se separaram, embora mantendo uma tradição comum.
Sua figura pode ser compreendida em relação à de Cefas, Tiago, filho de José, e João, filho de Zebedeu. Manns segue a titulação original dos nomes próprios dos vários personagens e locais e segue a tradição dos apócrifos judaico-cristãos, que apresentam os irmãos de Jesus como filhos de um primeiro casamento de José. Somente mais tarde Maria foi confiada a José. São pessoas ligadas à observância da Torá e Saulo discorda dessa prática religiosa.
O judaísmo da época era variegado. “Perseguidor dos judeus messiânicos de Damasco, escreve Manns, Shaul se tornará um ardente propagador da fé entre os goyim. Ele proclamará o Evangelho da cruz, mas nem por isso cessará a desconfiança dos outros discípulos em relação a ele. A tensão é parte integrante do pluralismo cristão primitivo. Shaul não é o inventor do cristianismo nem o inventor do universal, mas aquele que transcende a divisão dos povos enfatizando que o Cristo ressuscitado faz de dois povos um só povo de filhos de Deus. Ele não é o crítico implacável da Torá, mas aquele que reinterpreta seu papel como pedagogo dentro de toda a história da salvação” (p. 11).
Para ilustrar a figura de Saulo e seu relacionamento com Kephas-Pedro, Manns dá preferência aos Atos dos Apóstolos em detrimento das cartas paulinas. (Deve-se dizer que hoje os estudiosos consideram as cartas como fonte primária na reconstrução da figura e do pensamento de Paulo).
De acordo com Manns, Lucas conhece bem Saulo e é mais imparcial do que ele ao descrever o desenvolvimento da Igreja primitiva. Ele é confiável em sua obra e não traiu sua mensagem.
O estudioso começa com o evento de Pentecostes descrito em Atos 2. Sua intenção, no entanto, não é tanto reconstruir uma biografia clássica de Paulo quanto ilustrar seu mundo espiritual.
Saulo-Paulo “primeiro conscientizará os judeus, depois os goyim, de sua convicção de que Jehoshua está vivo, pois Ele o iluminou na estrada para Damasco. Em todos os lugares, sua mensagem proclamará que Jehoshua e a Igreja são uma só coisa: pois o Ressuscitado não lhe revelara que, ao ir acorrentar os judeus messiânicos de Damasco, era Ele mesmo quem perseguia? O ensinamento de Shaul, como o próprio homem, continua Manns, permanece irredutível. Mais do que o anúncio de uma nova identidade, Shaul propõe a revogação de qualquer identidade: ‘Não há mais judeu nem goy; não há mais escravo nem livre; não há mais homem nem mulher’. A tríplice dialética encontra sua síntese no Cristo vivo” (p. 12).
Kephas-Pedro levará o evangelho aos judeus, Shaul-Paulo aos goyim-pagãos. É uma empreitada com dois pilares e a Igreja celebra o martírio deles em uma única festa, lembrando a fundação da comunidade de Roma.
A obra de Manns faz parte do novo clima de diálogo judaico-cristão. Pelos judeus, Saulo-Paulo é considerado um traidor. Aluno de Gamaliel e profundo conhecedor das técnicas de leituras midráshicas, ele volta os argumentos contra a Torá, reduzindo-a a pedagogia. Saulo-Paulo é grande porque soube aculturar a mensagem cristã no mundo pagão.
Saulo-Paulo foi um grande viajante e percorreu milhares de quilômetros por terra e mar, em meio a muito desconforto. Acima de tudo, porém, ele queria derrubar a distância espiritual e o muro divisório que distanciava judeus e discípulos de Jesus, tornando-os estranhos entre si. Para fazer isso, Saulo-Paulo enfrentou inúmeras dificuldades e perigos, distâncias físicas e espirituais. Foi o apóstolo dos gentios, mas com o coração sempre habitado pelo amor aos seus antigos correligionários.
Em um estilo narrativo, após a introdução, Manns descreve a lição do Talmud, Shavuot e a peregrinação dos judeus da diáspora, a presença de Kephas e Johanan no Templo, a figura de Rabban Gamaliel, um sábio formado na Torá.
Em seguida, ele ilustra a partição do pão, um rito antigo e novo, e a figura de Stephanos, um helenista contestador. Jacob ben Joseph, por outro lado, é um justo fiel à Torá (chamado de “Tiago, o Justo”), o filho mais velho de José em seu primeiro casamento.
Assim, o autor chega ao momento crucial da iluminação na estrada para Damasco. Essa é a expressão usada para descrever o evento de Damasco e a redefinição que esse evento comportou na vida espiritual e humana de Shaul-Paulo. Um capítulo muito interessante, que deve ser lido com atenção (pp. 79-93).
Manns mescla os três relatos de Atos 9, Atos 26 (“o aguilhão”) e Atos 22 (“Que devo fazer?”). Saulo recebe um camelo, mas caminha a pé - Nenhum cavalo....
Após a iluminação, em Damasco, Saulo “confundia os judeus que viviam em Damasco, demonstrando que Jesus era o Messias. Além disso, citava para eles a versão sinagogal das Escrituras que afirmava que, quando o Rei Messias se manifestasse, todos os povos, línguas e nações o confessariam, como atesta o livro de Samuel [Manns cita 2Sm 22,32]. Todos os reis da terra obedecerão ao descendente de Jessé, e ele será um sinal para as nações, de acordo com o profeta Isaías [Manns cita Is 11,10]” (p. 86).
No deserto de Petra, medita durante a noite e ao amanhecer. Decide não mais fazer a oração matinal com a qual o judeu agradecia a YHWH por ter sido criado judeu e não goy, homem, homem livre e não escravo, homem e não mulher... Todos agora são um no Messias ressuscitado, em Jesus que veio para trazer não a divisão, mas a unidade. Saulo se pôs em caminho rumo ao Sinai.
“Gamaliel repetia que não apenas a Torá havia sido dada no Sinai, mas que todas as profecias e visões do futuro estavam escondidas lá. Foi lá que Shaul aguardava a visita do Espírito de Deus. Foi lá que desejava de todo o coração rever Jehoshua e fazer-lhe muitas perguntas. Não havia sido justamente o novo Moisés, que havia dado a Torá definitiva? Shaul retomou seu caminho” (pp. 88-89).
No Sinai, ele não ouve nenhuma voz, mas lê as Dez Palavras e, na quinta, decide que não mais matará os discípulos de Jesus, mas se tornará um deles, perseguido pelos saduceus. No Sinai, se dá conta de que não é filho da escrava, mas da mulher livre (cf. Gl 4,21-31)...
Em seu retorno a Damasco, medita e revive o êxodo... Em contato com Ananias, compreende que Jesus é Filho de Deus e não apenas Messias de Israel. Ele é o Salvador do mundo. E prega isso em Damasco, antes de fugir para Jerusalém e encontrar Kefas-Pedro, que fica surpreso com as palavras do “novo” Saulo, o antigo perseguidor. Por enquanto, o caminho a seguir para Saulo é refugiar-se em Tarso. Até mesmo os goyim devem receber o evangelho de Jesus, o Redentor....
Em seguida, Manns descreve Edom (= os romanos) e os judeus - basicamente, as pessoas e os eventos relacionados a Calígula, Cláudio e Herodes Agripa.
Descreve a atividade missionária de Pedro na costa da Judeia, Kaisarea Maritima, a capital recém-inaugurada com seus magníficos edifícios (entre os quais o palácio do governador e o templo de Augusto) e o novo porto, a conversão do centurião Cornélio.
Um capítulo em si diz respeito à visita real (ou uma parusia) de Helena, rainha de Adiabena à cidade santa. Era uma convertida ao judaísmo. Essa é uma oportunidade para Manns falar sobre o templo e as solenes festividades judaicas do mês de Tishri.
Seguem-se a Paixão de Kephas-Pedro na prisão (com citação do Romance de Moisés, de Artápano) e sua libertação pascal. “A libertação de Kephas anunciava profeticamente a extensão da aliança aos goyim. Entre o batismo da casa de Cornélio em Kaisarea e a missão organizada em Antiokos, a abertura da porta da prisão tornou-se um símbolo da abertura do evangelho aos goyim: escancarava a porta para a missão de Bar Naba e de Shaul” (p. 128).
A narrativa continua com Shaul retornando a Tarso (e sua academia estoica), sua recuperação por Barnabé e a ilustração de Antiokos-Antioquia da Síria (ou Antioquia no Orontes) como a comunidade de referência para as missões de Saulo. Ele começou com Chipre e algumas regiões da Ásia Menor. Saulo muda seu nome para Paulo.
Em todas essas passagens, Manns reconstrói as problemáticas espirituais e teológicas que agitavam o coração de Paulo (justificação pela fé, reconciliação do pensamento de Jesus com o monoteísmo judaico, a eleição de Israel e o mistério de sua incredulidade etc.). Paulo ponderava: “Deus repudiou o seu povo? É impossível. Mas, por causa de sua queda, a salvação chegou aos goyim. Depois de ter usado de misericórdia para com os pagãos, Deus usará de misericórdia para com Israel. Paulo reencontrava a paz: ele não tinha traído nem seu povo nem sua fé” (p. 151).
Manns reconstrói o pensamento de Paulo de uma forma essencial: a fé em Jesus, Filho de Deus, que justifica pela fé que age na caridade. “Confiança na palavra do Messias, a fé comportava o arrependimento dos erros e a intenção de mudar a vida. Era a morte do homem velho que devia dar lugar ao novo homem. O gesto decisivo da fé, com tudo o que ela implicava, germinava na demanda do batismo e em uma radical conversão que tornava o cristão uma nova criatura. O retorno à Escritura iluminada pelo Messias se impunha” (p. 152).
Em um flashback noturno de Paulo, a Anatólia é descrita (com as duras solidões, o imenso lago de Egridir, Antioquia da Pisídia com o importante sermão da sinagoga missionária, Icônio, Listra, Derbe).
Chega o momento decisivo da assembleia de Jerusalém, com uma importante reviravolta no relacionamento dos pagãos convertidos ao evangelho (os chamados etno-cristãos) com o mundo judaico-cristão.
Decide-se que a circuncisão e todas as leis de Moisés não são necessárias para a salvação dos goyim vindos à fé.
Quatro regras noachid a serem observadas permitirão a comunhão à mesa entre as duas almas dos discípulos de Jesus, os judeu-cristãos e os etno-cristãos. “A Igreja havia cortado o cordão umbilical que a ligava ao judaísmo” (p. 167). Manns comenta: “O autor sírio do ensinamento dos apóstolos, o Didache, resumirá a mensagem da assembleia de Jerusalém: ”Se você puder carregar o jugo do Senhor, será perfeito. Se não, faça o que puder. Quanto aos alimentos, leve com vocês o que puder carregar, mas abstenha-se da carne sacrificada aos ídolos: é um culto a deuses mortos” (ibid.).
Paulo podia retomar o caminho da missão na Ásia Menor. Nesse ponto, Manns reserva uma atenção especial para Atenas, a cidade dos sábios gregos, e Corinto, a cidade dos dois portos.
De Antioquia, ele partiu para sua terceira viagem missionária, tendo Éfeso (e o magnífico templo de Artemisa) como centro. Manns aproveita a longa estada de Paulo em Éfeso para mencionar o conteúdo das cartas aos Gálatas, Filipenses e Coríntios.
No final da viagem, Paulo é preso em Jerusalém. Essa é a ocasião para apresentar o conteúdo da Epístola aos Romanos: a justificação pela fé, a eleição pela graça, a promessa compartilhada com os gentios, a integração já iniciada de Israel, por enquanto não crente em Jesus na sua salvação. Quando todos os goyim tiverem crido, então todo o Israel será salvo. O Redentor anunciado pelos profetas já veio e o retorno de Israel já começou. A Torá mostra o pecado, a graça transborda pela morte de Jesus.
A viagem a Roma o fez repensar toda a sua vida e a salvação trazida por Jesus com sua cruz e ressurreição. “Aceitar a fé em Cristo era morrer da morte de Cristo na cruz para ressuscitar com ele” (pp. 184-185). “O cristão agora está livre de seu vínculo com a Torá judaica. Ele está sob a ação da graça. A libertação da Torá era uma consequência de seu encontro com o Vivente na estrada para Damasco” (p. 185). “A promessa feita a Abraão, portanto, diz respeito a apenas um: o Messias” (p. 186).
A viagem de navio para Roma - onde residia o imperador a quem Paulo havia apelado como cidadão romano - é a deixa para Manns relatar algumas das meditações noturnas de Paulo e falar sobre sua vida, os vários ensinamentos da tradição judaica sobre os prosélitos e as exigências feitas a eles para a conversão, a relação entre Israel e os goyim.
“Israel e os goyim. Sim, Jehoshua estava certo ao dizer: Um pai tinha dois filhos... Era preciso ter a coragem de tirar disso todas as consequências. E depois houve aquele encontro inesperado na estrada para Damasco, onde ele compreendeu que o Ressuscitado e a Igreja são um só” (p. 190).
E a lembrança de todas as viagens e as pessoas encontradas. “Todas essas lembranças o fizeram lembrar que o único mandamento que permanecia válido era o do amor: Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. O amor é o cumprimento da Torá” (ibid.).
O penúltimo capítulo é reservado para Johanan-João em Éfeso: a oração e a missão, o relacionamento com Myriam-Maria e o Evangelho do Revelador, o Verbo encarnado. Nele, se cumprem as Escrituras. No Calvário, se cumpriram as núpcias. E para elas foram convidados Israel e os goyim. A universalidade do Logos feito carne tomou conta do espírito de Johanan-João. Ele também queria ser um missionário, e Éfeso lhe pareceu um excelente lugar para aprofundar o ensinamento o já oferecido por outros apóstolos.
Em Éfeso, Manns também imagina o encontro de Lukas-Lucas com Maria em sua pesquisa sobre a infância de Jesus. Manns faz com que Maria retorne a Jerusalém depois de um ano de permanência em Éfeso. Lá ela encontra Matai, o discípulo que havia acompanhado Jesus até a Galileia. Ele também queria coletar as palavras e os atos de Jesus, cumprimento das Escrituras de Israel.
Manns conclui sua obra com uma descrição de Roma, a nova Babilônia, as figuras de Sêneca, Nero e o culto imperial, as inúmeras divindades adoradas em múltiplos cultos.
Roma era um mosaico cultural e étnico. Ali reinava um clima de universalismo. Uma grande comunidade judaica havia se estabelecido do outro lado do rio Tibre e na Via Ápia, e o judaísmo tinha exercido um imenso fascínio sobre Roma.
Manns imagina o diálogo entre Paulo e Sêneca e reconstrói os dias trágicos do incêndio de Roma e suas consequências, com a culpa sendo atribuída aos cristãos. Dedica algumas páginas à figura de Kephas-Pedro e sua carta aos romanos. Pedro e Paulo se encontram e se abraçam. O martírio os aguardaria.
“O apóstolo dos gentios não havia negado seu judaísmo. A espada de Edom tinha sido mais forte do que o braço de Jacó. Na realidade, o Espírito de Deus já havia vencido o poder de Edom. Shaul, o primeiro rei de Israel, sob cuja proteção seus pais o haviam colocado, teve um fim trágico. Shaul de Tarso, o portador do kerygma que anunciava a salvação dos goyim, foi consagrado pelo martírio. Seu sangue tornou-se a semente de uma numerosa cristandade. A semente lançada na terra produziu uma colheita abundante. Kephas e Paulo correram no estádio de Cristo e ambos alcançaram a vitória. A obra de reconciliação dos dois pilares havia sido selada em seu sangue” (pp. 216-217).
O posfácio precede um glossário útil de termos hebraicos, aramaicos e gregos recorrentes no texto.
Na p. 63 r. -5 do final, leia-se “gregos” e não “judeus”.
Todos os discípulos de Jesus (e também os judeus) devem ser gratos ao Pe. Manns por seu trabalho incansável de estudo, de pregação e de facilitação do diálogo judaico-cristão. Ele destacou as raízes judaicas do cristianismo, que são irrenunciáveis.
Caracterizado por uma linguagem simples e narrativa, o livro pode ser apreciado por uma vasta plateia de leitores.