02 Novembro 2023
No novo mundo que agora se perfila diante de nós, pensar em se impor com base na lei do mais forte não leva a lugar nenhum. O poder tecnológico e militar pode servir de elemento dissuasivo, mas sozinho não basta.
A opinião é do sociólogo e economista italiano Mauro Magatti, professor da Universidade Católica de Milão, em artigo publicado por Avvenire, 01-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os resultados da recente votação na Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a proposta de uma trégua humanitária em Gaza (120 votos a favor, incluindo sete países da União Europeia, entre eles a França e a Espanha, junto com a Rússia, a China e o Brasil; 45 abstenções: em além da Itália e da Alemanha, seis outros países da União Europeia com o Reino Unido, o Japão e a Índia; 14 votos contra: Estados Unidos e Israel, com o apoio de quatro países da União Europeia e uma dezena de Estados menores) desenha um mapa-múndi bastante diferente daquele que estamos acostumados a pensar.
Por um lado, os Estados Unidos – talvez pela primeira vez tão isolados – com uma Europa dividida nas três posições diferentes possíveis e uma grande parte do Sul do mundo, com a importante exceção da Índia, alinhada a favor. Uma imagem sintética de como se tornaram fluidos os equilíbrios internacionais.
Para além do conteúdo específico, a votação tinha um claro conteúdo político, apoiado por muitos falcões estadunidenses que tentam se aproveitar da crise em curso em chave antiocidental. A propaganda de muitos autocratas hoje serve para misturar o antissemitismo com o ressentimento em relação ao Ocidente e envenena as opiniões públicas em muitos países.
Muitas vezes, comete-se o erro de pensar em enfrentar as grandes crises apenas no nível racional. Ou estratégico. Mas os acontecimentos humanos sempre se movem em níveis diferentes: os interesses materiais, as emoções coletivas (a começar pelos medos), as matrizes teológico-políticas profundas.
Por isso, as grandes narrativas têm um papel importante, pois constituem os quadros de sentido dentro dos quais se situam as ações e as decisões dos governos, dos grandes interesses, mas também das pessoas comuns.
Como escreveu Max Weber, “são as concepções de mundo, criadas por essas narrativas, que muitas vezes determinam, como quem opera uma mudança ferroviária, os trilhos ao longo dos quais a dinâmica dos interesses se moverá depois”.
O relato simples de uma globalização econômica que garantiria a integração planetária já se perdeu. Durante muitos meses, em particular desde o ataque russo à Ucrânia, ouvimos continuamente o relançamento de uma narrativa oposta, igualmente simplificadora, que fala de um choque de civilizações. Ideia nefasta, que exacerba os ânimos e empurra o mundo para o abismo.
Há uma necessidade urgente de outra narrativa para traçar um caminho a seguir nestes meses difíceis. A inspiração pode ser encontrada nas palavras proféticas do cardeal Martini que, ainda nos anos 1980, falava da “convivência das diferenças”. Para alguns, uma frase como essa pode soar como a vaga esperança de uma bela alma que não tem coragem de enfrentar a dura realidade dos fatos.
Mas, na realidade, é apenas adotando sem ingenuidade uma perspectiva como essa que poderemos esperar conseguir atravessar com sensatez o tempo que nos espera.
Poderá ser dito: mas como fazer para ir nessa direção, se há aqueles – como Putin, o Hamas ou o Irã – que estão claramente desinteressados por esse caminho? Na realidade, mesmo os violentos vivem de um relato que exploram para seus próprios fins. E é nesse nível que eles podem e devem ser desafiados e derrotados.
Porque o bem é muito mais razoável do que o mal. Desde que seja capaz de mobilizar as energias espirituais dos povos. Mover-se nessa direção é vital para o Ocidente. Que deve se interrogar sobre que papel quer desempenhar no novo cenário global.
Nos últimos 30 anos, a nossa cultura se tornou conhecida sobretudo pela tecnologia, pelo consumo, pelo bem-estar. Mas a substância da nossa história – que nós também às vezes corremos o risco de perder – é bem diferente.
O Ocidente, que nasceu da fusão entre as culturas grega, judaica, cristã e iluminista, baseia-se, de fato, na ideia de pessoa livre e responsável. E nas instituições necessárias para permitir sua livre expressão.
Por essa razão, ele teve que fazer as contas laboriosamente com a pluralidade e a diferença. É por essa razão que a “convivialidade das diferenças” (e, portanto, das culturas) é o conteúdo e o método fundamentais que o Ocidente pode levar para o futuro do mundo em turbulência. Trabalhando concretamente para construir instrumentos institucionais eficazes para dirimir os conflitos, arenas culturais e econômicas para acolher a diversidade, oportunidades de diálogo como antídoto preventivo ao conflito.
No novo mundo que agora se perfila diante de nós, pensar em se impor com base na lei do mais forte não leva a lugar nenhum. O poder tecnológico e militar pode servir de elemento dissuasivo, mas sozinho não basta.
O que é necessário é um novo universalismo – um modo de pensar e praticar o que é universal – conservado pelo Ocidente em sua própria origem. Mesmo que muitas vezes pareça esquecer dele. Das crises mais profundas, podemos sair aos pedaços ou fortalecidos. Desse modo, o que está acontecendo nos últimos meses constitui um banco de prova muito desafiador para toda a humanidade.
Conseguir levar o conflito de volta ao nível político e de negociação não só daria uma mão ao mundo, mas também ajudaria muitíssimo a credibilidade ocidental. Na realidade, não há alternativas.
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É preciso um novo universalismo. Artigo de Mauro Magatti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU