"Como construir uma universalidade amorosa, desarmada e pacífica? Como derrotar definitivamente o ódio e construir uma sinfonia universal, harmonia de diferenças irredutíveis, mas dialogantes?", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 09-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
"O que me convence e me conduz - testemunha o autor - são o sonho e a profecia da Palavra. Babel, num primeiro momento, que revela a oposição divina a um mundo de uma só língua e de uma única maneira de viver e a iniciativa de dispersar novamente a humanidade numa sinfonia de línguas, de culturas diversas e de diferenças inalienáveis. E além disso, o Pentecostes de Jerusalém, quando Pedro anunciou a Boa Nova e todos os povos do mundo então conhecido a compreendiam e a recebiam em sua própria língua. Infelizmente, profecias esquecidas pelas Igrejas, tanto na cristianização da Europa como nas empresas coloniais".
Esta minha reflexão é guiada pela expectativa de uma humanidade reconciliada em busca do que une, de uma universalidade sem hierarquias e sem guerras, sem opressores e sem oprimidos.
Na verdade, não consigo me render cinicamente ao realismo dialético hegeliano em que a história existe apenas porque existe a guerra. Prefiro seguir a descrição de uma alteridade irredutível também ao discurso - o rosto e o traço do Outro - proposta por Lévinas, o mestre da ética como ontologia, que ataca frontalmente o paradigma aristotélico da identidade e o horror ocidental pela alteridade.
Ulisses representa existencialmente o princípio de identidade e não contradição: em sua jornada que abraça o mundo, ele entra em confronto com todo tipo de sedução humana, mágica, divina, mas consegue retornar a Ítaca, incontaminado, em nada alterado ou arranhado em sua identidade. Obsessivamente, compulsivamente igual a si mesmo.
E assim vivemos num mundo absolutamente incapaz de contemplação, de escuta silenciosa e desarmada do outro, na vida doméstica, nas sociedades e nas relações entre os Estados nacionais, última e letal afirmação paranoica da identidade. Uma humanidade que raramente mostra que é possível lutar sem odiar e sem matar.
Acompanha-me também a leitura de René Girard, que vê a mimese especular entre humanos, na disputa que briga por um objeto, derrotada pela atitude sensata dos cães, que instintivamente evitam o conflito mimético, para não se matarem. Um dos dois contendores mostra as costas para o outro, reconhecendo sua fraqueza e assim a guerra termina. Instinto que encontramos difundido no reino animal, mas não entre os humanos, apesar das religiões e dos humanismos.
Sinto-me desafiado, portanto, pelos identitarismos, etnicismos e tribalismos atualmente fortemente presentes nas lutas de emancipação de inúmeros movimentos políticos, normalmente considerados progressistas e antiautoritários.
Percebo, porém, que, exceto a absoluta e indiscutível liberdade e legitimidade de se afirmar como povo, etnia e gênero, existe o perigo da identidade, que, ao construir a multiplicidade, pode, em nome da própria diferença, anular qualquer determinação social comum, incluindo a agora limitadíssima categoria unitária de classe e - uma decisão que considero muito mais perigosa – a inserção no processo de construção da universalidade.
Certamente não podemos ignorar a contribuição corretiva proposta pela recente teoria interseccional - importada dos EUA e reinterpretada por feministas negras, no Brasil; interseccionalidade que contribui para desmantelar identidades absolutizadas, complexificando e intercruzando as diferentes esferas que constituem objeto da desigualdade, da dominação, da opressão e da discriminação.
Além do racismo, sexismo, classismo, patriarcalismo, machismo, homofobia e transfobia, colonialismo, xenofobia, existem outras discriminações baseadas na casta, local de nascimento, localização geográfica, nacionalidade, religião, educação, cultura, habilidade, idade, obesidade, linguagem: linhas e vetores que se entrelaçam, se cruzam - e às vezes se enroscam – no único sujeito.
Por meio da análise interseccional, poderíamos descobrir que uma pessoa, discriminada de várias maneiras, por exemplo, por ser negra, mulher e homoafetiva, acaba se identificando com três diferentes movimentos políticos identitários. Assim, a fragmentação não ocorre apenas no contexto sócio-político, mas atinge o próprio sujeito articulado em três diferentes identidades.
E não é prudente esquecer mais uma fratura que esse tipo de catalogação permite quando, eventualmente, descobre no mesmo sujeito a coexistência de identificações que o revelam simultaneamente vítima em alguns aspectos e opressor em outros. Como, por exemplo, o caso das mulheres brancas, discriminadas por serem mulheres, mas privilegiadas por serem brancas.
Além disso, é preciso lembrar que essa multidimensionalidade rizomática parece ter expulsado a urgência imperiosa de fixar, com discernimentos políticos contextuais, uma agenda mínima de prioridades, a menos que permanecer “numa noite em que todos os gatos são cinzas” seja a decisão final.
E, às vezes, parece realmente que esses coletivos estão fugindo do desafio de construir programas comuns de luta. De fato, como é possível construir uma alternativa política a partir de uma realidade social tão atomizada e fragmentada? E não considero o apelo que alguns movimentos fazem ao Estado para fornecer políticas públicas adequadas a essa multiplicidade de identidades como uma estratégia sensata.
Tampouco me convencem insurgências que visam simplesmente garantir a legitimidade social às diferenças, aceitando supinamente o poder e o controle do sistema hegemônico. Trata-se, sem dúvida, de equívocos, por duas razões: porque se renuncia a um mínimo de protagonismo político e porque o Estado e o capital desde sempre são constitutivamente inimigos das minorias estigmatizadas e excluídas.
Recentemente, esse debate foi enriquecido com a contribuição do paradigma do lugar de fala, o lugar do discurso. É sobretudo a filósofa Djamila Ribeiro que canibaliza essa figura, importando-a da França de Foucault. A fala é sempre um lugar de poder e apropriar-se da palavra significa disputar o poder em termos éticos, críticos e políticos.
Positivamente, trata-se do resgate de existências oprimidas, silenciadas e ocultadas, que, partindo do lugar social ocupado, finalmente tecem discursos autônomos, livres da tutela branca, patriarcal, heterossexual e eurocêntrica. Em suma, não se enfrenta a praga do racismo em termos abstratos, mas a partir da experiência dos coletivos que lutam diariamente contra a discriminação e a violência da própria pele.
Essa afirmação sempre foi necessária nos conflitos de nossa história e sempre será indispensável reconhecer e construir identidades definidas para a ação política dos discriminados e oprimidos.
Vamos pensar, por exemplo, na época em que a identidade e a consciência de classe eram uma forte alternativa ao sistema capitalista. Se, ao contrário, nos contentamos com a mera afirmação de identidade, excluímos categoricamente a possibilidade de contribuir para a construção de um processo político coletivo.
Sem dúvida, é necessária nessa luta também a batalha epistemológica com o discurso hegemônico eurocentrado.
Acontece, porém, que é inevitável servir-se dos paradigmas do pensamento ocidental, apesar de este modelo sempre ter se colocado como superior, impondo a sua identidade como norma universal e sempre à custa da invisibilidade e interdição de outras formas de conhecimento e discurso.
Depende de nossa capacidade antropofágica não só ressignificar humanismos e cientificismos brancos, constitutivamente aporofóbicos, patriarcais e racistas, mas também discernir e assumir valores inalienáveis elaborados pelo inimigo.
Enrique Dussel fez isso de forma admirável quando canibalizou toda a filosofia ocidental, a partir da identidade dos colonizados de Abya Ayala, inventados, descobertos, mortos, dominados materialmente e espiritualmente, ocultados e silenciados.
Também é possível que novos equívocos ocorram no caminho de exercício do poder que nasce do lugar de fala: porém, segundo a verdade do clamor sofrido pelas vítimas de discriminação, não deveríamos aceitar a possibilidade de negar a palavra a interlocutores críticos, que não são necessariamente racistas, sexistas, classistas, machistas, patriarcais ou homofóbicos.
Se assim fosse, adotaríamos o triste e letal argumentum ad hominem, que estabelece a verdade ou o erro de uma posição, a partir da identidade do denunciante. Acredito que é sempre imperdoável abrir mão da dimensão crítica e deixar de fazer perguntas à realidade e à experiência, quando ao invés disso é preciso construir argumentos críticos em um ambiente ético. Essa atitude, de fato, garante processos pedagógicos e de formação política que qualificam positivamente a organização, a articulação e a mobilização dos oprimidos.
Aconteceu também com quem aqui escreve, na década de 1980, quando em debates políticos surgidos dentro dos processos de lutas camponesas pela conquista da terra, os argumentos críticos por mim propostos foram ignorados e se ressaltava explicitamente que eu não conseguia entender, porque eu era estrangeiro. E eu não deveria intervir no debate porque eu não era "um filho da terra".
Obviamente, ainda hoje vejo com clareza e sem ressentimentos que o fato de eu ser vítima da xenofobia coexistia com os privilégios de uma pele branca e europeia. Ou como quando com as companheiras feministas dos anos 1960, tinha que pedir desculpas por ter nascido homem: uma forma radical, mas simplificadora de lutar contra o sistema de poder masculino e patriarcal. Em suma, lutar por fraternidade e igualdade neste labirinto de difícil percurso não pode ser feito à custa de reduções, simplificações e anti-intelectualismos.
A mera afirmação de identidade sempre é feita à custa de inimizades inúteis e diálogos negados, também complica as relações internas dos movimentos e, a longo prazo revela-se pobre e inconclusiva nos processos de insurgência.
Estou refletindo sobre os identitarismos de minorias, normalmente objeto de discriminações e racismos, sem, no entanto, ignorar que o supremacismo branco, de matriz nazifascista, continua hegemônico e é a culpa mais grave do Ocidente. Em suma, o identitarismo tem suas origens no pensamento e nas práticas bélicas, coloniais e genocidas da Europa e, infelizmente, é possível que essa raiz também possa influenciar negativamente os movimentos identitários atuais.
Portanto, não esqueçamos que a insistência na diferença é patrimônio ideológico da direita. De qualquer forma, o discernimento das reivindicações de identidade deve permanecer firme, para poder desqualificar as pretensões, por exemplo, da Lega Padana ou dos separatistas do Rio Grande do Sul. E o teste decisivo para discernir é a persistência da opressão colonial, que separa identitaristas autoritários e neofascistas de povos e grupos humanos secularmente discriminados e perseguidos.
Um exemplo de erro histórico dramático foi o sionismo, estratégia para resolver o secular e interminável ciclo das perseguições cristãs, processo identitário do povo eleito levado às últimas consequências, no qual a identidade religiosa se conjuga com a construção e defesa de um estado nacional, destinado, porém, inevitavelmente a submeter-se às lógicas e às práxis de guerra e opressões estatais.
No entanto, não podemos esquecer os horrores do antissemitismo católico, que cobriu de sangue séculos e séculos de história europeia, bem antes do Holocausto, e a persistência do ódio antissemita nas sociedades atuais.
Por isso, é bom se deter um pouco para pensar também na existência do Estado do Vaticano, que, embora sem dúvida não seja um Estado nacional em termos militares, não pode ser considerado simplesmente como uma paródia do Estado, na medida em que repete fielmente os estatutos jurídicos e burocráticos, constituindo uma maneira de tutelar a identidade católica repleta de equívocos e contradições, sobretudo devido à inevitável e impensada pertença ao campo político ocidental.
E também pensemos nas graves posições tomadas pelo Patriarcado de Moscou, com o apoio de Kirill e do episcopado ortodoxo russo na guerra de Putin, em defesa do identitarismo de toda a Rússia contra o Ocidente pervertido. Posição que é espelhada pelo patriarca de Kiev, Epifânio. Ambos compartilham a tese "teológica" de que a guerra em curso é o conflito entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas.
O que me convence e me conduz são o sonho e a profecia da Palavra. Babel, num primeiro momento, que revela a oposição divina a um mundo de uma só língua e de uma única maneira de viver e a iniciativa de dispersar novamente a humanidade numa sinfonia de línguas, de culturas diversas e de diferenças inalienáveis.
E além disso, o Pentecostes de Jerusalém, quando Pedro anunciou a Boa Nova e todos os povos do mundo então conhecido a compreendiam e a recebiam em sua própria língua. Infelizmente, profecias esquecidas pelas Igrejas, tanto na cristianização da Europa como nas empresas coloniais.
De fato, nas Américas, a cruz veio com a espada e Jesus na companhia dos governantes ibéricos ou do suprematismo protestante. E mais tarde na África se repetiu essa trágica confusão entre o militarismo dos estados nacionais e as confissões cristãs. Em suma, um universalismo imposto com o poder dos Estados e das armas revela-se uma dramática paródia e uma radical traição da universalidade.
Como construir uma universalidade amorosa, desarmada e pacífica? Como derrotar definitivamente o ódio e construir uma sinfonia universal, harmonia de diferenças irredutíveis, mas dialogantes?