21 Novembro 2018
Publicamos aqui a conferência do fundador da Comunidade de Santo Egídio, o historiador italiano Andrea Riccardi, proferida no congresso “Igreja, o fascismo e judeus: a virada de 1938”, organizado pela Sociedade Dante Alighieri e realizado nos dias 19 e 20 de novembro, no Palácio Firenze, em Roma.
Nota de IHU On-Line: No dia 18 de novembro de 1938, foram promulgadas as leis raciais do fascismo. O 80º aniversário desta data foi lembrado, na Itália, com muitos eventos, tendo sempre presente o atual momento político do País.
O discurso foi publicado em Vatican Insider, 19-11-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Poucas semanas atrás, ocorreu um comovente congresso nesta sala, onde a Sociedade Dante Alighieri recordou a expulsão dos sócios judeus em 1938 e revogou-a, descerrando uma placa e dando o status de sócios aos seus descendentes. Fiquei muito satisfeito com o evento. A 80 anos das leis raciais, instituições e realidades italianas vão se interrogando sobre como viveram aqueles dolorosos fatos.
O objetivo do congresso – e agradeço ao cardeal Bassetti (Nota de IHU On- Line: presidente da Conferência Episcopal Italiana - CEI) pela presença e pelas palavras – é se interrogar sobre a Igreja italiana: a Santa Sé, que geria a liderança do catolicismo italiano na ausência de uma Conferência Episcopal, os bispos, o povo católico, as associações e as paróquias.
Era um mundo complexo, orgânico e estratificado, marcado por diferenciações profundas, imerso na sociedade. A Igreja tinha uma posição particular na Itália fascista, apesar da privação da liberdade e da pressão propagandística, porque era um corpo autônomo, garantido pelos Pactos de Latrão e pela afeição do povo. No corpo autônomo da Igreja, embora infiltrado por ideias e propaganda do fascismo, circulavam convicções, pressupostos diversos, enquanto o papa era a grande referência, fora do horizonte de uma nação fascistizada. A Igreja era (relativamente) o espaço mais livre na Itália fascista.
Há muitos anos, no rastro do estudo dos Pactos Lateranenses – penso em Pietro Scoppola –, pelo menos desde os anos 1970, identificou-se a expectativa da Igreja de uma restauração do Estado católico, alimentado por Pio XI, que colocaria entre parênteses o divórcio do Ressurgimento. Muitos observaram como a Guerra da Etiópia em 1935-1936 foi o ápice da expectativa, expressada por um vasto consenso episcopal e católico, amplificado pela propaganda. Gostaria apenas de lembrar a contrariedade de Pio XI à invasão de um Estado independente, a Etiópia, membro da Liga das Nações, amarrada também nas teias de prudências e de relações vaticanas com o regime.
Não é esse o nosso tema, e Lucia Ceci falará do racismo colonial na África. Em 1937, o decreto Lessona, percebido pela maioria da hierarquia como um procedimento para moralizar as relações entre italianos e africanos, colocava as promessas da política de defesa da “raça italiana” na África. Luigi Preti havia percebido isso desde os anos 1960, mostrando o vínculo real entre o racismo antiafricano e o antissemitismo.
O que eu gostaria de enfatizar é a visão da Etiópia e do cristianismo etíope, que se consolidou também entre os católicos identificados no empreendimento “libertador” italiano. Sempre me admiraram as palavras do cardeal Schuster, que, em 1935, na catedral, celebrando a “guerra que traz o triunfo da cruz de Cristo, rompe as correntes, aplaina as estradas aos missionários do Evangelho (...) a preço de sangue abre as portas da Etiópia à Fé católica e à Civilização romana”. Schuster havia sido um dos grandes defensores da catolicização do fascismo. Mas o douto cardeal beneditino, que repudiaria com força o antissemitismo em 1938, podia ignorar que a cruz estava há mais de um milênio na Etiópia e que a Igreja etíope, rica em espiritualidade, tinha resistido ao Islã em uma condição de isolamento?
O consenso com o empreendimento obscureceu o fato de que boa parte dos etíopes era cristã. Havia um ensinamento de desprezo pela condição de hereges e cismáticos e a miséria do seu monaquismo. Isso também fica claro a partir das correspondências dos missionários. Tanto que, em 1937, quando se abateu a dura repressão sobre Adis Abeba pelo atentado ao vice-rei Graziani (cerca de 19 mil mortos), um verdadeiro pogrom contra os etíopes, não houve reações negativas. Na realidade, desde a Guerra na Etiópia, também para a propaganda fascista e a forte presença do partido, houve um crescimento de agressividade na atitude dos italianos, especialmente na África.
Um caso é impressionante: o massacre no maior e mais sagrado mosteiro etíope, Debre Libanos, a poucos quilômetros de Adis Abeba. Angelo Del Boca escreve: “Nunca na história da África uma comunidade religiosa havia sofrido um extermínio de tais proporções”. Foram mortas pelas tropas coloniais italianas – sobretudo de origem muçulmana – nada menos do que 2 mil pessoas, entre monges, noviços, diáconos, peregrinos, deficientes, sob a liderança do general Maletti e por ordem de Graziani, que assumiu a sua responsabilidade, com uma técnica que lembra os massacres nazistas dos judeus no Leste Europeu.
Os monges e os cristãos etíopes não eram considerados cristãos, a ponto de não merecerem comentários dos missionários in loco nem indignações alhures. Uma resistência a recordar o massacre evidenciou-se também no 80º aniversário, em 2017, quando o Ministério da Defesa abriu mão da proposta de uma pesquisa histórica. É o típico processo de desumanização do inimigo, operado não só pela ausência de senso ecumênico dos cristãos, mas também pela propaganda fascista que, naqueles anos, alcançou um ápice de violência. Certamente não há comparação entre a relação bastante respeitosa dos soldados do Armir na Segunda Guerra Mundial para com as populações ucranianas e a sua religião em comparação com os na Etiópia.
O ano de 1938 é um ano difícil. Para a Igreja, registra-se o afastamento do fascismo do modelo de Estado católico, enquanto se consolida outra personalidade do regime, totalitária e estatolátrica, como De Felice observou anos atrás. E o racismo e o antissemitismo fazem parte da realização do regime na construção do homem novo. Com a legislação racista, o fascismo assume outro perfil em relação ao Estado católico, a ponto de resistir à revogação para os judeus convertidos ao catolicismo.
Inicia em 1938, de modo nada retilíneo, o processo de desafeição católica que, como observei há muitos anos, conhece retornos, reavaliações, incertezas, distanciamentos, em um movimento não retilíneo e não liderado de cima. Além disso, com o acordo de Munique, em 1938, o prestígio de Mussolini era alto entre os católicos: “A Itália está orgulhosa – dissera Schuster – que o seu Duce levou a Munique uma contribuição decisiva para a paz mundial”. Os informantes confirmam o consenso entre os católicos com o duce em Munique.
Para tentar responder qual foi a atitude católica, é mais fácil se deter sobre as cúpulas vaticana e episcopais do que analisar o mundo dos católicos. Os estudos não faltam, e a abertura dos Arquivos Vaticanos sobre Pio XI forneceu alguns elementos a mais. No entanto, continua sendo mais difícil compreender as orientações da opinião popular católica.
Concordo com Valeria Galimi que, para além das camadas da população marcadas em sentido positivo ou negativo, há flutuações nas atitudes, desinteresse, partilha, incômodo, como surge a partir das análises dos documentos das instituições estatais ou dos informantes. Até porque os judeus eram apenas um por mil da população, e grande parte da atitude sobre as leis raciais dependia de haver um contato com eles. Encontramo-nos – não nos esqueçamos – em um regime que havia amordaçado a imprensa, tanto que os jornais católicos foram impedidos de publicar as palavras do papa sobre o racismo.
Nesse quadro, emergem diversas linhas de preocupação no Vaticano, em que se destaca – mas não se impõe totalmente – a de Pio XI, que, na parte final do pontificado, amadurece uma posição mais “profética”, para usar uma expressão imprópria, do que política. E, em alguns aspectos, essa posição permite que as coisas flutuem no Vaticano. O papa olha para o quadrante europeu.
O ano de 1938 é um ano terrível para os judeus, não só na Itália, mas também devido ao pogrom na Alemanha, na noite entre 9 e 10 de novembro e a difusão das medidas antissemitas: na Polônia, retira-se a cidadania dos expatriados há mais de cinco anos (em sua maioria judeus), na Romênia são tomadas medidas antissemitas sob a influência do governo da Guarda de Ferro de Codreanu, assim como na Hungria, apesar do triunfal Congresso Eucarístico, do qual havia participado, como legado pontifício, o cardeal Pacelli.
Pio XI mediu as consequências: um problema de vida e de morte para os judeus, mas também uma questão grave para a Igreja. Os judeus sentem um aperto em torno deles e olham para a Palestina e para os Estados Unidos. O presidente Roosevelt, em julho de 1938, para enfrentar a emigração judaica da Alemanha, convoca uma conferência em Evian. Ela é dirigida por Myron Taylor, que em breve se torna representante do presidente junto a Pio XI e Pio XII.
Os países participantes expressam simpatia pelos judeus, mas apresentam as dificuldades: a França se diz cheia, assim como a Grã-Bretanha, enquanto a Austrália declara que não tem problemas raciais e que não quer criá-los. Emerge o isolamento do judaísmo europeu, entre interesses conflitantes, que acaba interpelando a Igreja, especialmente com a guerra.
Não me lembro das declarações contra o antissemitismo de Pio XI, mas apenas uma, estudada por muitos, incluindo, atentamente, Gabriele Rigano. Em Castelgandolfo, em setembro de 1938, os católicos belgas oferecem um missal a Pio XI. Quando ele o folheia e lê as palavras do cânone da missa, em particular “sacrificium patriarchae nostri Abrahae”, ele comenta com a voz comovida: “Sacrifício de Abel, sacrifício de Abraão, sacrifício de Melquisedec. Em três traços, em três linhas, em três passos, toda a história religiosa da humanidade. Sacrifício de Abel: a era adâmica. Sacrifício de Melquisedec: o anúncio da religião e da era cristã...
Sacrificium patriarchae nostri Abrahae. Notem que Abraão é chamado de nosso patriarca, nosso antepassado. O antissemitismo não é compatível com o pensamento e as realidades sublimes que estão expressadas nesse texto. É um movimento antipático, ao qual nós, cristãos, não podemos ter parte alguma... Por Cristo e em Cristo, nós somos descendência de Abraão. Não, não é possível que os cristãos participem do antissemitismo. Nós reconhecemos a qualquer um o direito de se defender, de utilizar os meios para se proteger contra tudo o que ameaça os próprios interesses legítimos. Mas o antissemitismo é inadmissível. Nós somos espiritualmente semitas”.
Não quero repassar a difusão desse texto, mas notar que “somos espiritualmente semitas” sanciona o semitismo do cristianismo. Para Pio XI, arrancar a fé católica das raízes judaicas e orientais é fazer dela outra coisa, prisioneira da civilização e do Estado europeu. O Abade Ricciotti tinha entendido isso, ao escrever: “Ora, que Judaísmo e Cristianismo são dois troncos provenientes de um mesmo cepo é um fato histórico indiscutível... Quem enfraquece o cepo comum derruba, ao mesmo tempo, os dois troncos, assim como não se pode derrubar todo o Judaísmo sem abater uma parte também do Cristianismo”. Ainda em 1926, o papa havia afirmado, na condenação da Action Française em 1926 e de Maurras, a inaceitabilidade de um catolicismo nacional, não um cristão e não fundamentado em raízes judaicas.
Na segunda metade dos anos 1930, impôs-se o mundo alemão. A estrada tinha sido aberta com o grande estudioso alemão Harnack, cuja visão do cristianismo, com a separação do judaísmo e os estudos sobre Marcião, havia sido julgada como não ortodoxa por católicos e protestantes. Mas tinha crescido com o nazismo o movimento de depuração do cristianismo da herança bíblica, do judeu Paulo até a criação do Jesus ariano. Os bons estudos de Harnack (cujo filho foi enforcado pelo nazismo em 1944) se cruzam com as manipulações do nazismo. Aliás, o confronto com o nazismo foi duro nos últimos anos de Pio XI. Pode-se ver isso no L’Osservatore Romano, que denuncia as perseguições religiosas na Alemanha. A crescente força da Alemanha nazista atua como catalisador para os vários processos de radicalização na Europa, enquanto a aproximação ítalo-alemã inquieta o Vaticano.
A Itália fascista é importante para Pio XI, mas também é importante um quadro europeu: se o cristianismo se nacionaliza, separando-se das raízes semitas e orientais, torna-se outra coisa. É isso que o nazismo quer com os cristãos alemães, com o Jesus ariano. Pio XI fala de “verdadeira apostasia”. Enquanto isso, cresce uma interessante produção sobre o Jesus judeu, tanto entre católicos (pense-se apenas em Ricciotti), quanto no mundo judaico, com Baeck ou Zolli.
A Itália pode ceder a uma nacionalização do cristianismo? Uma produção sobre o Jesus ariano também abriu caminho por aqui com artigos na revista Il Tevere e em La Difesa della Razza, de Interlandi. Há uma produção católica e antissemita, como “Cristo e Quirino” de Paolo Orano, até o artigo de Farinacci, Dio contro Jahvé, uma vulgarização extrema. Se Orano nunca chegou a afirmar que Jesus era ariano, em 1937 ele declarou a não hebraicidade de Jesus, pois “o Divino Menino não é filho de um homem mortal, portanto, não de um judeu, mas do ato divino”.
Além disso, Mussolini tinha dito a Ciano em 1938: “Bastaria um aceno meu para desencadear todo o anticlericalismo deste povo, que teve que se esforçar muito para engolir um Deus judeu”. Ele repete a sua teoria do catolicismo-paganização do cristianismo. “Por isso, eu sou católico e anticristão.” Não se trata apenas de exageros do duce, mas sim de um pensamento mais difundido entre nacionalistas, que ele já havia expressado no discurso para a ratificação dos Pactos Lateranenses.
A polêmica fascista recorda à Igreja o seu antijudaísmo histórico e lhe pergunta com que coerência se opõe ao antissemitismo. Sobre isso estava posta em jogo a propaganda de Farinacci, que escrevia: “Se somos antissemitas, devemos isso ao ensinamento da Igreja”. Pio XI não se interessou em reiterar a coerência com o antijudaísmo histórico. Outros católicos, sim, mais permeáveis ao antissemitismo fascista, pelo menos para evitar conflitos, como La Civiltà Cattolica (até as posições extremas de Angelo Brucculeri, favorável ao “Manifesto sobre a raça”, não compartilhadas pelos escritores da revista). Os antimodernistas são antissemitas: em 1921, Dom Benigni havia publicado em italiano “Os protocolos dos sábios de Sião”.
São relevantes as posições do geral dos jesuítas, Ledóchowski, que se remetiam, em vez disso, à posição majoritária dos católicos poloneses, tendencialmente antissemita, fixa no anticomunismo até notar a presença judaica no movimento revolucionário. É uma sensibilidade distante do filão pró-semítico minoritário, que se encontra no cardeal Saphiea de Cracóvia, mestre de Wojtyla. O geral dos jesuítas teria um papel no bloqueio da encíclica Humani generis unitas, solicitada por Pio XI diretamente ao jesuíta estadunidense LaFarge, especialista em segregacionismo e que, depois, tornou-se amigo de Martin Luther King. Além dos mitos da “encíclica desaparecida”, resta o problema de por que o texto não foi publicado.
A Universidade Católica de Milão, com o Pe. Gemelli, estava em uma linha conciliatória com o regime. É interessante o sucesso do livro do escritor inglês Belloc, “Os judeus”, publicado pela universidade católica, que previa – em defesa da sociedade – quase um desenvolvimento separado da “raça” judaica: “É inevitável que os seus propósitos – escreve – se encontrem em maior ou menor contraste com aqueles sagrados aos seus hóspedes...”. É a tese da defesa legítima do interesse nacional dos judeus, aceita em vários setores católicos. O cardeal Piazza, de Veneza, embora condenando o racismo, justificou a defesa da pureza da raça. Dom Cazzani, de Cremona, foi o único bispo a fazer uma pastoral sobre a questão judaica, condenando o racismo alemão, defendendo o antijudaísmo católico e as leis racistas italianas.
Farinacci atribui o texto às suas pressões. O Pe. Mazzolari escrevia assim ao seu bispo de Cremona (que depois também o defenderia junto ao Santo Ofício): “... no vosso magistral discurso há palavras e tons um pouco crus em relação aos judeus e aos seus erros... O povo messiânico tem o seu mistério, e qualquer tentativa de interpretação, além de muito subjetiva, corre o risco, em tempos como os nossos, de ser perigosa e um tanto desumana... Amanhã faremos a história, hoje façamos a caridade e a justiça. O papa, sem julgar, declarou aos jovens operários cristãos da Bélgica que ele ‘se sente espiritualmente semita’. São posições excessivas, reconheço, mas a caridade é sempre um pouco excessiva’”.
Veem-se as sensibilidades, ligadas à herança do antijudaísmo católico, ligado à acusação de deicídio, ao mito da maldição do judeu errante, à teologia da substituição e muito mais. Circulam entre o clero e o povo, mas outras preocupações acabam colocando-as de lado, embora nunca totalmente. Eu não me ocupo do tecido diplomático entre o Vaticano e o Palácio Venezia em 1938, onde, com os hierarcas fascistas, amontoam-se aqueles que tentam salvar o salvável, como os Pactos Lateranenses: o jesuíta, Tacchi Venturi, o núncio Borgongini Duca, Ciano e outros. Passa-se entre crises, modus vivendi, negações, dos quais vários fizeram a análise.
A realidade é que estamos fora do sonho do fascismo como regime católico, mas já lutamos para sobreviver e evitar um fascismo anticristão. Se Mussolini “segue em frente” com o antissemitismo, como dissera, ele é capaz de atenuações, como quando, pouco depois do discurso antissemita de Trieste em 18 de setembro, disse ao bispo Santin na Porta de San Giusto que não tinha como alvo o papa, que se coloca em um plano religioso, repetindo a comédia entre Igreja e Mussolini, que durou quase 20 anos.
O Papa Ratti não está alheio ao trabalho diplomático entre o Vaticano e o Palácio Venezia, a renúncias e defesas: há anos estudamos essas interessantes passagens, reveladoras também de como, na Cúria, não se tinha entendido o porte desenraizador do antissemitismo. Pio XI, embora não renunciando ao governo, parece-me olhar para um grand dessein além do cotidiano e da Itália, convencido de que o jogo está apenas no começo entre aquilo que ele chama de “nacionalismo excessivo”, com o seu séquito de racismo, ódio e antissemitismo, e a visão da unidade do gênero humano que o catolicismo propõe (“Uma única grande família universal humana”, dizia).
É a negação do nacional-catolicismo: o primado da nação sobre o catolicismo e o universalismo. Havia riscos nesse sentido na Hungria do regente Horthy e do primaz cardeal Séredi (que havia votado na Câmara Alta as leis antissemitas, mas que acolheria os judeus poloneses e teriam se defrontado com os nazistas); ou no neocatolicismo fascista na Itália; ou na Espanha de Franco ou no Portugal de Salazar ou na Eslováquia de Dom Tiso; ou na Polônia, especialmente após a morte do marechal Pilsuski, amigo dos judeus, e na presença de um primaz bastante antissemita como o cardeal Hlond (que teve expressões severas em relação aos judeus mesmo após a Segunda Guerra Mundial). Depois, havia os católicos tradicionais franceses, os herdeiros da Action Française...
Estamos convencidos demais que a Igreja é uma realidade piramidal e coesa, em que as mediações dos episcopados, os sentimentos dos povos, as estratificações de mentalidade ou de formação não têm um valor de freio, ou de oposição, ou às vezes arrastador. Uma imagem da Igreja monolítica obscureceu uma realidade complexa e diversificada que o historiador descobre, mesmo que o monólito seja cômodo para uma historiografia superficial, justiceira ou apologética.
Um papa de autoridade, definido como autoritário, como Pio XI, encontra-se diante de um panorama em que os segmentos do catolicismo conhecem a atração dos processos nacionais. Sua escolha, no fim dos anos 1930, é uma mensagem forte sobre o nacionalismo e o antissemitismo, definidos como novos ídolos da modernidade com o comunismo, voltada a bloquear o fascínio dessas doutrinas sobre os católicos. O problema é evitar o conflito, não isolar os judeus, evitar que as Igrejas católicas assumam atitudes que ele considera uma ferida à sua identidade.
O que o angustia nos últimos meses de sua vida, na sua última batalha, como foi definida, não é tanto a ferida na concordata, mas sim na identidade católica, que se queria desmitificar, transformando-a em um culto de características nacionais, teutônico na Alemanha, latino imperial na Itália. Aqui também a afirmação do primado da romanidade católica sobre a fascista.
Nesse contexto, como muitas vezes na história do papado, a Itália, “jardim da Igreja”, tem uma importância estratégica. Pio XI, porém, não fala somente para a Itália. O L’Osservatore Romano, que chegou a 150 mil exemplares, como evidenciou De Cesaris, foi essencial – apesar das limitações impostas pelo regime – para comunicar à opinião mundial o pensamento do papa. Um caso semelhante, em uma situação muito diferente, ocorreu com a Guerra do Golfo, quando a mensagem de paz de João Paulo II foi tão interpretada a ponto de ser mutilada. Pois bem, o L’Osservatore de Agnes serviu de comunicador sem reduções.
São significativas as intervenções dos cardeais europeus, que não deixam o papa sozinho. Em Milão, Schuster, que tinha apoiado a catolicização do fascismo (mas, como homem de grande cultura, também havia apoiado os Amigos de Israel), como verdadeiro católico romano, sabe que o ponto decisivo não é defender a coerência de uma política, mas sim estar com o papa. Em 1938, solenemente e várias vezes, ele condenou a “insurgente heresia - anticristã e antirromana – do mito nórdico racial”. Ele utiliza a chave da romanidade, código ideológico da realização católica do fascismo, para criticar o mito germânico racista. Ele continuou com clareza em janeiro de 1939 no sínodo menor ambrosiano. Com o termo “racismo”, condenaram-se o nacionalismo e o antissemitismo, mas também o belicismo dos Estados europeus.
É significativa a geografia daqueles que relançam a mensagem de Pio XI. O cardeal Cerejera, patriarca de Lisboa, íntimo do ditador Salazar, condena “o mito da raça”, pondo no mesmo plano o comunismo ateu e o nazismo mais insidioso que faz da nação uma religião. Esse caveat do primaz português é importante em um país governado por um regime de um ditador. Não há intervenções similares na Espanha de Franco, que consolida o seu poder em abril de 1939 com ajuda italiana e alemã. O primaz da Bélgica, cardeal Van Roey, hostil ao movimento rexista de Degrelle, uma espécie de fascismo católico, e o cardeal Verdier, arcebispo de Paris, falam na mesma direção. Suas intervenções são relançadas pelo L’Osservatore Romano. Verdier diz: “A humanidade seria, portanto, uma selva onde só os mais fortes têm direito de sobreviver?”.
A Igreja Católica havia se defrontado com o nacionalismo dos séculos XIX-XX, mesmo entre duros conflitos, mas aqui – a partir da raça – concretiza-se a “heresia” da nação, capaz de englobar e reduzir o catolicismo a religião de serviço. A preocupação é com a fragilidade dos católicos diante da propaganda racista e nacionalista. Em uma nota da Secretaria de Estado insiste-se para que seja dada instrução aos bispos para impedir que o clero assine La Difesa della Razza, como tinha ocorrido por parte do capelão maior da Casa Real.
É preciso que os bispos insistam com o clero, “com a devida prudência”, “sobre os danos e as consequências do nacionalismo exagerado”. O clero, “nem sempre à devida altura em termos de formação cultural e doutrinal”, devia evitar absorver “inconscientemente aquele acúmulo de erros e de heresias que muitas vezes se encontram nos jornais fascistas...”. Corre-se o risco de que os padres, no meio do povo, “insolentemente”, tomem partido pela propaganda. Essa é a consciência que se tem no Vaticano da capacidade de força de uma parte do clero diante das paixões nacionalistas e do racismo. Os oito teses condenadas pela Congregação dos Seminários (incluindo: “Religio legi stirpis eique aptanda est; fons primus et summa regula universi ordinis iuridici est instinctus stirpis”...) e comunicadas às universidades e faculdades católicas em abril de 1938 mostram como se queria fazer um muro cultural contra a nacionalização das consciências, negativa em si e prejudicial para a Igreja. O texto é solicitado a Dom Ruffini, da Congregação dos Seminários, pelo cardeal Sbarretti, do Santo Ofício, para que se rejeitem as ideias alemãs, através do ensino, dos livros e das conferências. Pio XI e Pacelli aprovam.
Dom Tardini, que se ocupava das questões internacionais, confirmou que os últimos meses de Pio XI, em grande parte, foram absorvidos pelos problemas do nacionalismo e do racismo. Muitas das intervenções do papa precisariam ser relançadas organicamente por uma encíclica: Pio XI a pedira a LaFarge. No texto redigido, não faltava, mesmo que em um quadro de antijudaísmo tradicional, a condenação da perseguição antissemita, da segregação dos afro-americanos, do nacionalismo e do racismo. Mas o papa morreu sem sequer poder vê-lo, em 10 de fevereiro de 1939, porque Ledóchowski o segurava.
Na realidade, a batalha conta o antissemitismo e o racismo em 1938 – apesar da crescente clareza de Pio XI – revela as complexidades do mundo católico e, às vezes, a falta de alerta sobre esses problemas. Mas, no espaço de alguns meses, não foram mais questões tão centrais, mas se perfila no horizonte o drama da Guerra Mundial. Parece-me que a atenção do sucessor de Pio XI se voltou para essa realidade. Minha sensação é de que, no encontro com os judeus perseguidos, em muitos países europeus – como Itália – começa-se a se dissolver o antijudaísmo ou a indiferença, justamente no impacto com um grande drama. Mas essa é outra história, já discutida e que ainda merece ser discutida.
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Igreja, fascismo, judeus e 1938. Artigo de Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU