Fios do Tempo. As ilusões de autenticidade e os desafios da identidade. Artigo de Carlos A. Gadea

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15 Abril 2022

 

"Resta saber se a noção de identidade ainda pode ser legítima o suficiente para explicar processos culturais nos quais são questionadas e postas em desconfiança todas essas filosofias que especulam sobre a “autenticidade” e sua conexão com a vida prática e a política", escreve o sociólogo Carlos A. Gadea, em artigo publicado por Ateliê de Humanidades, 14-03-2022. O artigo foi enviado pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

 

Carlos A. Gadea é graduado em História pelo Instituto de Professores Artigas - IPA, no Uruguai, mestre e doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Realizou pós-doutorado na Universidade de Miami, nos EUA, e foi professor visitante na Universidade de Leipzig, na Alemanha e na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México - UNAM, no México. Atualmente leciona no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos.

 

Eis o artigo.

 

Uma controvérsia se instalou recentemente nos meios de produção cultural e cinematográfica no Reino Unido. A atriz Maureen Lipman foi a público para questionar a indicação da atriz Helen Mirren para interpretar Golda Meir em um filme sobre a vida da primeira mulher a se tornar primeira-ministra de Israel. Foi argumentado que Mirren não era de origem judaica, e para Lipman “o elemento judeu do caráter de Golda Meir é uma parte essencial” e, portanto, Mirren não seria a escolha certa para o papel.[2]

 

Lipman já é conhecida por críticas semelhantes no show business e na cultura, por exemplo, quando ela e outros 20 atores e dramaturgos judeus assinaram em 2019 uma carta criticando o elenco musical de uma peça da Broadway sobre a vida de uma família judaica. Para ela e para os outros signatários, era intolerável que apenas o diretor musical e o compositor fossem judeus. Os signatários da carta acusaram a produção da peça de uma “chocante falta de sensibilidade cultural e, na pior das hipóteses, de apropriação e de extinção de uma cultura e religião que está cada vez mais em crise”.[3]

 

Não há dúvida de que nas críticas de Maureen Lipman está perceptível a sensibilidade frente às recentes discussões sobre a diversidade cultural e a representação de grupos culturais minoritários nos meios de comunicação, algo que transcende até mesmo o próprio ambiente do filme e do espetáculo. Mas, concretamente, o que emerge de sua consideração da necessidade do “elemento judeu no personagem” da Golda Mier é sugerir a relevância de que deve existir uma “experiência própria” do ator ou da atriz sobre o que significaria “ser judeu/ia” para retratar “autenticamente” um papel como judeu/ia. A premissa parece ser que ninguém sabe melhor do que um judeu como interpretar um judeu em um filme.

 

 

É claro que podem surgir imediatamente questões sobre as definições do que é “autenticamente” judeu, assim como se, em qualquer caso, para interpretar um personagem judeu, um ator ou atriz deve saber mais sobre o que significa ser judeu do que ser judeu por descendência, implicando nisso o próprio trabalho de um ator: o estudo de um personagem, a sensibilidade para entendê-lo e a capacidade de interpretá-lo. Ao mesmo tempo, é bom dizer, pode-se suspeitar que existe uma diversidade de formas de “judaísmo”; judeus ateus, judeus religiosos, falando línguas diferentes, com sotaques diferentes e nacionalidades diferentes. Em resumo, entrar na situação de ter que decidir quem é “judeu o suficiente” para interpretar um personagem poderia certamente levar a situações desagradáveis no processo de seleção do elenco de um filme, como observa com razão o ator britânico Elliot Levey: “a ideia de as pessoas terem que produzir documentos para provar sua ascendência judaica para desempenhar um papel judeu é um pesadelo distópico”.[4]

 

Mas situações como estas parecem estar ocorrendo cada vez mais em diferentes contextos e ambientes socioculturais, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos e na América Latina. A pesquisadora francesa Caroline Fourest (2021), em seu recente trabalho intitulado Geração ofendida: da polícia da cultura à polícia do pensamento refere-se a vários casos em que questões de identidade e supostas acusações de “apropriação cultural” não se esquivam de criticar até mesmo a outrora irreverente cantora Madonna, ou o grupo artístico multicultural Cirque du Soleil. Isto indica, de fato, uma das características mais incisivas do momento em que nos encontramos nas recentes discussões sobre a diversidade cultural e o multiculturalismo, discussões que não estão restritas àquelas, que muitos devem se lembrar, que foram lideradas por “liberais” e “comunitaristas” sobre os direitos políticos e sociais de certos grupos étnico-culturais, ou movimentos sociais feministas e antirracistas que surgiram nos anos 1970 e 1980 em torno de uma questão central: a identidade.

 

Nos anos 1980 e 1990, a ação política passou a desempenhar um papel decisivo na emergência de novas demandas culturais e coletivas quando, precisamente, questões de justiça social passaram a ser interpretadas sob o que seria entendido como “política da identidade”. Na América Latina, defendo, isto se materializou nos anos 1990 sob o impulso simbólico do neo-Zapatismo mexicano e dos rebeldes indígenas de Chiapas, o que gerou uma onda de novas demandas e atores coletivos de todo o mundo enfatizando questões de diferença cultural, direitos à diferença, subalternidade, “outro mundo é possível” e uma retórica antiglobalização que estava muito na moda naqueles anos. Isto trouxe importantes mudanças no cenário político, nas adesões individuais e coletivas às ideologias políticas, mas, fundamentalmente, um crescente interesse acadêmico onde o político e a cultura começam a borrar seus limites. Os debates sobre as “políticas de identidades” criariam raízes em todos os lugares, em partidos políticos, governos, organizações sociais e na própria atmosfera das universidades, ganhando um novo fôlego numa espécie de pacto entre velhos marxistas e jovens pós-estruturalistas.

 

 

Mas não vou me referir aqui à importância desta geração acadêmica em sua agenda e discussões sobre identidades, sobre seu inquestionável protagonismo do ponto de vista político e cultural no chamado “ciclo político progressista” durante os anos 2000 em vários países da América Latina. O que eu gostaria de desenvolver é mais um aspecto teórico-analítico da noção de identidade e a forma como se justifica sua operacionalização política, sua implementação na ação política, a fim de passar ao que se entende por uma “política das identidades”.

 

Partimos então da ideia de que, quando falamos de “afirmar uma identidade” (sexual, de gênero, racial, etc.), o que está em jogo é a representação política e a representação no imaginário social como a aspiração última de toda política de identidade. Nacionalidades representadas, culturas locais representadas, identidades etno-raciais representadas, identidades de gênero representadas. A tarefa política é tornar-se (ou então recuperar) um “corpo diferente”, e assim agir no emaranhado das exigências da sociedade civil pelo “reconhecimento intersubjetivo” (Honneth, 2003; Taylor, 1994).

 

É aqui que surge uma reflexão importante, porque entrelaça as noções de identidade e experiência, o que foi referido no início com o caso da atriz judia, a respeito de o que ela não era e deveria ser. Pensando em uma luta política e cultural pelo reconhecimento, estabelece-se um questionamento do “princípio de igualdade”, dando origem ao que foi chamado de “política da diferença”. Isto sugere o surgimento de “diferenças” (raciais, de gênero, sexuais, culturais) que não foram plenamente respeitadas na vida social, provocando uma “deturpação do reconhecimento” e “feridas profundas” que sujeitam suas vítimas a uma “autodepreciação deformadora” (Taylor, 1994, p. 54) e a uma “lesão moral” concomitante (Honneth, 2003). Nas palavras de Taylor (1994, p. 54), para os indivíduos “a autodepreciação se torna um dos instrumentos mais poderosos de sua própria opressão. Sua primeira tarefa deve ser a de se libertar desta identidade imposta e destrutiva”. Esta é, naturalmente, uma declaração bastante convincente e até normativa, mas levanta também a questão do que, no fim das contas, estaria subjacente a uma “política de diferença” e, especialmente, de que reconhecimento se está concretamente falando?

 

Taylor oferece respostas a estas perguntas e no início ele nos mostra de onde veio, qual é o ponto de partida de suas reflexões. No início, ele considera que “a identidade é o ideal de autenticidade”, uma afirmação que já nos mostra o peso que ele atribui à noção de identidade na atualidade. Taylor alude à necessidade de recuperar um contato moral autêntico com nós mesmos (Idem, p. 58), afirmando que o “ideal de autenticidade” é de importância crucial. Isto significa que, para ele, seguindo o pensamento de Herder, cada um de nós teria uma maneira original de ser humano, teria nossa própria medida. “Há uma certa maneira de ser humano que é meu modo”. Fui chamado para viver minha vida desta maneira, e não para imitar a vida de outra pessoa. Mas esta ideia atribui uma nova importância à fidelidade que devo a mim mesmo. Se não estou sendo fiel a mim mesmo, estou me desviando de minha vida, estou perdendo de vista o que é o ser humano para mim. Este é o poderoso ideal moral que se abateu sobre nós” (Idem, p. 59).

 

 

Mas vejamos como estas palavras são interessantes. Taylor fala que foi chamado para viver sua vida, e alguém poderia se perguntar: quem foi que o chamou? E então, ele falaria da fidelidade que deve a si mesmo, mas pode-se perguntar: o que é esse “si mesmo” ao qual ele se refere e a quem deve fidelidade? Aparentemente, para Taylor, a autenticidade é entendida como o resultado do encontro entre a manifestação de uma identidade e uma suposta “sua maneira de ser humano”, ou seja, o contato “consigo mesmo”, o que introduz a identidade ao princípio da autenticidade e, com isso, à voz de um “eu original”.

 

Mas é aqui que as coisas começam a ficar complicadas, porque, para argumentos como esses, passam a existir indivíduos, grupos e culturas “autênticos”, bem como o seu oposto: indivíduos, grupos e culturas “não autênticos”. Assim, no esquema de uma “política de identidades”, certas culturas autênticas exigiriam e demandariam um reconhecimento específico. Isso representaria um esforço duplo, analisando e definindo quais culturas demarcariam a “autenticidade” (em oposição à suposta “apropriação cultural” e inautenticidade), e que tipo de reconhecimento seria, de fato, a pauta. Certamente, estes esforços são os mesmos que são transmitidos na esfera política quando, por exemplo, as exigências são ativadas na arena da “política de identidades”.

 

O resultado deste cenário social e cultural parece ser a presença de uma corrida acelerada para um encontro fortuito com uma identidade (self) que teria sido adiada ou negada devido a uma série de impossibilidades externas à própria vontade e interesse. Por exemplo, o diagnóstico da “crise de identidade”, da qual algum indivíduo ou grupo social eventualmente sofreria, forneceria um substrato para este desafio do encontro “consigo mesmo”, representando a superação (e aqui está o ponto importante) de um estado de “falta” ou “ausência” daquilo que sempre teria constituído o indivíduo, mas que ainda não faria parte dele ou dela. Para usar uma metáfora, tudo indica que um “eu autêntico” teria sido perdido no labirinto da vida social, algo que me faz lembrar a “perda da auréola” do artista no conto de Charles Baudelaire La fange du macadam, que, ao atravessar a rua correndo para evitar ser atropelado na vertiginosa Paris do século XIX, deixou cair sua auréola e, ao alcançar o outro lado da estrada, “não mais reconheceu quem ele era”.

 

Desta forma, a “autenticidade” se tornaria presente na própria contemplação de um eu que não poderia ser outro, mas que seria precisamente aquele que se expressa e se reconhece como próprio. Entretanto, surgem novas dúvidas: como seria possível reconhecer que o que estava faltando, o que estava ausente, era, de fato, o que estava faltando para chegar ao “mim mesmo”? Só poderia ser conhecido se, em qualquer caso, se soubesse, com antecedência, o que seria o que estaria faltando, o ausente. Um dilema interessante.

 

Mas digamos que este dilema não está mais na agenda hoje, ou pelo menos, se estava, não foi tratado com o rigor que merecia após os debates já elaborados sobre o multiculturalismo dos anos 1980 e 1990. Sua herança é tomada muito mais em sua faceta política prática, e para isso o importante será situar indivíduos e grupos culturais em “estruturas de conflito” com base em uma sociedade na qual as relações sociais, em todos os momentos, estejam envolvidas em “lógicas de poder”. É a partir deste desenho da sociedade e da busca de identidade que se constitui a “falta” no centro de nosso discurso, como afirma criticamente Giglioli (2016) em seu controvertido livro Crítica da Vítima. O que tinha sido privado, denegado ou ocultado do indivíduo materializaria as “feridas profundas” e, com isso, a possibilidade de elaboração de um discurso político e cultural que contextualizasse uma luta pelo “reconhecimento intersubjetivo” e que “promete identidade”. E é justamente aqui que surge uma decisiva virada reflexiva, já que essa parece ser acompanhada pela potencialização de um discurso sobre “autenticidade” fundamentado em uma nova figura social: a vítima.

 

 

Certamente, esta figura não surgiu de repente, mas deriva de um processo sócio-cultural que tanto Christopher Lasch nos anos 80 quanto Richard Sennett, há mais de 20 anos, vinham observando. Lasch disse que as sociedades ocidentais davam cada vez mais importância ao passado, à repetição do passado, algo que teria influência sobre a origem desta nova figura social. Escreve Lasch em O mínimo eu: “Consideramo-nos ao mesmo tempo como se fôssemos sobreviventes e vítimas, ou vítimas potenciais (…) E é exatamente esta ferida mais profunda que a vitimização inflige: o resultado é que não mais enfrentamos a vida como sujeitos éticos ativos, mas apenas como vítimas passivas, e o protesto político degenera em uma autoindulgência lamuriante”. Por sua vez, Richard Sennett concluirá que: “A necessidade de legitimar a própria opinião em termos de ofensa ou sofrimento infligido vincula, cada vez mais, os homens às suas próprias ofensas (…): o que eu preciso é definido em termos do que me foi negado”.

 

A partir deste momento, a relação entre identidade, a “autenticidade” e esta nova figura social, a vítima, será estabelecida. Esta relação será possível porque, precisamente, para uma política de identidades, a figura social da vítima permite o acesso a uma identidade, já que a vítima é algo, é certa, tem sua origem, documentos, é baseada em um evento demonstrável, refere-se a uma relação de conflito e a uma lógica presumida de poder. Por outro lado, como diz Giglioli, “ele enquadra o ser sob o ponto de vista do ter, reduzindo o sujeito a um portador de propriedade (e não de ações), pede-lhe para permanecer dolorosa, mas orgulhosamente, o que ele é”. Não reivindica transformações, renúncias, sacrifícios. O sacrifício já aconteceu, nenhum outro será suficiente. Nós já demos, agora esperamos para descansar em nós mesmos” (Idem, p. 126).

 

Como parece ser sugerido, a figura social da vítima não está sujeita à capacidade de agir no mundo, nem à possibilidade de se tornar um eventual ator social em contínua transformação e negociação de significados culturais. Sua aspiração é “permanecer o que é por direito proprietário inalienável” (citando Giglioli), ou seja, descansar sobre a “autenticidade” de um “eu” ou de um “nós” que ele pensa ser/estar sendo.

 

Evidentemente, esta forma de pensar sobre a identidade nos leva a repensar, mais uma vez, a lógica binária que está subjacente à grande parte desta discussão, assim como às próprias noções de autenticidade e vitimização. Anos atrás, mais precisamente em 2012, na pesquisa que fiz sobre relações raciais e noções de negritude e “africanidade” em Miami com haitianos e dominicanos (Gadea, 2013), notou-se a inadequação da relação classicamente disseminada entre supostas “raízes africanas” e a elaboração de uma identidade negra, na medida em que se descobriu que o discurso da “afrocentricidade” contribuiu, na realidade, para essencializar identificações sobre o “negro” e a própria negritude. Essa suposta ideia da “epistemologia do lugar” (por exemplo, do tipo “geopolítica do conhecimento” de Walter Mignolo) a que se refere o “pensamento afrocêntrico” não deixa de ser uma atitude de exclusão em relação à experiência negra e à negritude. Pode-se ver que aqui é feita uma separação entre a “experiência” propriamente dita e a afirmação de que todo o conhecimento sobre o mundo está relacionado a pertencer a um espaço (a uma “geopolítica do conhecimento”) que predeterminaria uma “experiência”. Por exemplo, seria possível que para a elaboração de uma identidade negra fosse necessário “falar” do mesmo lugar epistêmico (referindo-se ao “lugar de enunciação” de Homi Bhabha, por exemplo)? Qual seria o lugar que determinaria os atributos de uma negritude que permitiria a construção da mesma experiência e prática social, na interação em diferentes situações e ambientes? Um jovem negro e urbano, por exemplo, para se “entender” como negro, deve “falar” daquele “lugar epistêmico” da afrocentricidade? Ian Chambers (1994, p. 102), ao abordar a questão da ‘autenticidade’, também perguntou: “É alguém, de fato, negro o suficiente? E quem é negro o suficiente de qualquer forma?”.

 

É neste sentido que surge um grave problema no campo da “política das identidades”, na medida em que somente aquilo que pode demonstrar suas “raízes africanas” (Wade, 1997) pode ser considerado como pertencente a uma cultura negra legítima. É aqui que surgem todos os esforços “pedagógicos” dos centros de pesquisa universitários, institutos, organizações e movimentos sociais e da mídia para produzir um arquétipo ou modelo de “negritude”, viabilizado através de signos, símbolos e imagens que desenham o “corpo negro”: no Brasil, por exemplo, capoeira, afoxé, umbanda, batuque, candomblé, turbantes, cores e toda uma estética que se refere a uma “África autêntica” testemunham isso. É precisamente desta prática que emerge a compreensão de “sua experiência particular” como identidade, o conhecimento único adquirido sobre um “nós” e, fundamentalmente, “sua voz”, aquela que seria a única verdadeiramente autorizada a “falar” em nome do grupo, como uma autocompreensão de uma identidade coletiva.

 

Este exemplo de “África autêntica” e seu desdobramento em uma identidade negra pode ser compreendido, em parte, como resultado de uma espécie de desencontro entre um diagnóstico e uma compreensão da diversidade cultural sempre crescente e como que análoga à noção de cosmopolitismo, e uma definição e uma interpretação de “cultura” que se supõe ser a chave para compreender histórias de vida incomensuráveis, formas de ver o mundo e de agir nele. Em outras palavras, na atualidade, grande parte do que se entende por política das identidades é encontrada na compreensão que se tem da cultura e do cultural. Na nova retórica multiculturalista, isto levará ao surgimento de palavras que se referem a uma estreita relação com o político e as questões de poder e conflito: contra-hegemonia, contestação, subalternidade, periferia, entre outras. A esfera da cultura é cada vez mais entendida como um espaço onde disputas políticas e instâncias de disputas de poder se manifestam. Assim, será no seio dos heterogêneos Estudos Culturais mais recentes que surgirão perspectivas que transformariam meros “modos de vida” ou pontos de vista sobre a realidade do mundo de pessoas ou grupos em portadores de verdadeiras “culturas autênticas”, produto de experiências incomensuráveis e únicas no processo histórico. Desta forma, será legítimo falar da “cultura das mulheres”, da “cultura dos afro-descendentes”, da “cultura queer”, em um exercício de aparente “guetização cultural” por meio do resgate de alguma coesão de identidade política que permita o reconhecimento intersubjetivo com base em alguma “ferida moral” (Honneth). Também voltará, com certa força, a se afirmar, após o impasse pós-moderno, que existem “culturas hegemônicas”, para as quais surgirão as “anti-hegemônicas”; da mesma forma, se volta a falar de “estruturas culturais e históricas” que permaneceram no tempo deixando traços insuperáveis, como o patriarcado e o racismo.

 

 

Estamos em tempos identitários. A ciência política, em particular, pouco abordou este debate em sua variante atual, depois que, como diria Mark Lilla, referindo-se ao contexto americano, os jovens que entram nas universidades experimentam um ambiente acadêmico que os incentiva a “manter o foco em si mesmos”, a concentrar-se em “questões de diversidade”, evidenciando o caráter de uma nova política narcisista e individualista. Os jovens “se pensam” como pertencentes a grupos identitários. Mas, além disso, a inconformidade com o destino deste debate acadêmico e político, em especial, me levou a pensar que toda esta energia sobre a “política das identidades” é uma postura renovada contra o que os pesquisadores e ensaístas negros nascidos no Caribe já haviam chamado de “criolização” das culturas, ou seja, esta postura identitária atua contra a mestiçagem típica dos tempos do cosmopolitismo e da interculturalidade, que tem seus fortes antecedentes históricos no próprio devir histórico das culturas que “se encontraram” sob diferentes dinâmicas, como, por exemplo, no contexto da América Latina.

 

Todavia, resta saber se a noção de identidade ainda pode ser legítima o suficiente para explicar processos culturais nos quais são questionadas e postas em desconfiança todas essas filosofias que especulam sobre a “autenticidade” e sua conexão com a vida prática e a política.

 

Bibliografía

 

Bhabha, Homi (1994) The Location of the Culture. New York, Routledge.

Chambers, Ian (1994) Migración, cultura, identidad. Amorrortu, Buenos Aires.

Fourest, Caroline (2021) Generación ofendida. De la policía de la cultura a la policía del pensamiento. Zorzal, Buenos Aires.

Gadea, Carlos A. (2013) Negritude e Pós-africanidade. Crítica das relações raciais contemporâneas. Sulina, Porto Alegre.

Giglioli, Daniele (2016) Crítica da vítima. Âyiné, Belo Horizonte.

Honneth, Axel (2003) Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, Editora 34.

Mignolo, Walter (2007) La idea de América Latina. La herida colonial y la opción decolonial. Gedisa, Barcelona.

Taylor, Charles (2009) El multiculturalismo y “La política del reconocimiento”. FCE, México.

Wade, Peter. (1997) Gente negra. Nación mestiza. Dinámica de las identidades raciales en Colombia. Ed. Uniandes, Bogotá.

 

Notas

 

[1] Trabalho apresentado no Colóquio do Instituto de Romanística para Estudos Literários e Culturais, 25/01/2022, Universidade de Leipzig, Alemanha. Trabalho realizado com o apoio do DAAD – Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico com uma bolsa Research Stays for University Academics and Scientists, na Universidade de Leipzig.

[2] Grenier, Elizabeth; “Quem pode interpretar personagens judeus?” In: DW, 14/01/2022. Disponível aqui.

[3] Idem.

[4] Ibid.

 

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