23 Fevereiro 2021
“Quando você tenta adivinhar as preferências de calçado do público, e produz esse calçado, é algo útil e bom. Mas quando tenta adivinhar as preferências literárias ou cinematográficas do público, talvez consiga ficar rico, caso acerte, mas do ponto de vista da criação artística, seu produto talvez seja simples e efêmero”, escreve Branko Milanović, economista sérvio-americano e professor da Universidade da Cidade de Nova York, em artigo publicado por Letras Libres, 22-02-2021. A tradução é do Cepat.
No último capítulo de “Capitalismo sem rivais”, reflito sobre várias mudanças que ocorreram na vida privada em consequência do aumento da riqueza (e, portanto, da habilidade em oferecer serviços comerciais que antes eram oferecidos dentro da família) e da “invasão” das relações capitalistas na vida privada. Uma das questões que trato é a importância cada vez menor da família nas sociedades altamente comercializadas e o declínio óbvio do tamanho das famílias (ou melhor dito, a preferência pela vida solitária) nas sociedades mais ricas.
Aqui, quero refletir sobre outra questão em que nos deparamos com uma contradição fundamental entre os princípios que regem as sociedades hipercapitalistas e o que poderíamos considerar as consequências desejáveis. O assunto é a autenticidade na arte e, em menor medida, nas ciências sociais. Quando tratamos dos bens reproduzíveis, a vantagem do capitalismo é que o lucro só pode ser obtido caso consigam satisfazer as necessidades do outro. Por isso, os dois objetivos, a necessidade do comprador e o lucro do vendedor, estão alinhados.
Mas isto não acontece com a arte. A razão é que a arte se desenvolve, ou precisa de individualismo, originalidade e autenticidade. Quando você tenta adivinhar as preferências de calçado do público, e produz esse calçado, é algo útil e bom. Mas quando tenta adivinhar as preferências literárias ou cinematográficas do público, talvez consiga ficar rico, caso acerte, mas do ponto de vista da criação artística, seu produto talvez seja simples e efêmero. Na arte, interessa-nos a visão individual de um indivíduo, não a capacidade desse indivíduo em reconhecer as preferências ou preconceitos do público.
Irei ilustrar com alguns exemplos extremos. Quando lemos os diários de Kafka, temos clareza que representam sua própria verdade e uma visão sem adornos do mundo: escreveu os diários para si mesmo, nunca pensou que seriam publicados, e pediu explicitamente que fossem queimados. É o mesmo que aconteceu com, por exemplo, os manuscritos de 1848 de Marx, que se salvaram por acidente e foram publicados mais de um século depois de ser escritos. Que agradem você ou não é uma questão de preferências e interesses. Mas não resta dúvida de que são trabalhos autênticos.
No entanto, quando vemos um filme cujo final foi testado por diferentes públicos para produzir o resultado que mais agrada ao público, e pelo qual esteja mais disposto a pagar, também não resta dúvida de que o papel do autor está anulado, e inclusive desaparece completamente. O mesmo acontece com os romances. Se são escritos com o objetivo principal de fazer dinheiro, precisam se adaptar às preferências populares e quanto menos opiniões pessoais apresentar, melhor (já que podem ser impopulares). Por que deveríamos, se buscamos ideias novas ou provocativas, ler esses romances?
Enfrentamos, portanto, uma inversão de papéis muito curiosa. Os escritores buscam perder sua autenticidade para agradar ao público e assim maximizar seus ingressos. E o único valor dessas obras reside no fato de que nos permitem conhecer as preferências do público, mas não existe nenhum valor inerente à obra.
Este problema existe em quase todas as criações artísticas sob o capitalismo. Todos podemos dar muitos exemplos, de Steven Spielberg aos escritores de inumeráveis (e facilmente esquecíveis) best-sellers.
Podemos dizer, no entanto, que os artistas sempre produzem para os poderosos. Seus trabalhos eram encomendados e expressavam muito pouca personalidade, exceto nas partes que tinham a ver com as aptidões (o mais óbvio é na pintura e na escultura, onde o artista recebia um tema e só podia se distinguir por meio de seu estilo e execução). Este é um argumento interessante, no entanto, os produtores de arte ainda não dominavam as técnicas de comercialização. Naquele momento, a comercialização era “artesanal” e hoje é massiva.
Hoje, são os profissionais que escolhem os temas em função do que acreditam que venderá. Conversei apenas uma vez com um agente literário, e quando começou a me dizer o que deveria escrever, imediatamente me dissuadiu de falar novamente com um deles. Os textos são editados e reeditados para agradar ao público e evitar demandas. E, o que é mais extraordinário, os autores de romances participam de oficinas onde sua voz é ainda mais reprimida, já que aprendem a escrever como o restante.
Isto faz sentido se seu único objetivo é o lucro. De fato, uma das razões para se ter um agente é porque pode obter o melhor acordo editorial para o autor. Mas há uma complicação: pode conseguir o melhor acordo, sempre e quando você reprimir sua autenticidade.
Estas são áreas humanas em que a comercialização excessiva não significa melhores resultados. O problema não tem solução porque deriva de uma contradição fundamental em um sistema em que o lucro é obtido agradando aos consumidores. Mas também é um sistema que premia o individualismo, que é algo que, por definição, você não compartilha com todos.
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O problema da autenticidade no capitalismo. Artigo de Branko Milanović - Instituto Humanitas Unisinos - IHU