17 Outubro 2020
"Realmente, a cordialidade brasileira de Buarque de Holanda está explícita na guerra de independência sem derramamento de sangue, assim como nos golpes militares e nos conchavos entre as famílias dos coronéis poderosos nas disputas políticas. Nada de insurreições, revoluções, guerras civis. Salvo um ou outro episódio de revolta popular localizada, alguns mais bem sucedidas que outras, a verdade é que o Brasil convive, há 500 anos, com o povo fora da história do país", escreve André Márcio Neves Soares, mestre e doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela
Universidade Católica do Salvador - UCSAL.
Permitam-me começar este pequeno artigo com um caso prático. O governo argentino recentemente congelou os preços dos serviços de telecomunicações(1). A oposição berrou, quase chamando o presidente Alberto Fernández de comunista, apesar das empresas privadas desse setor terem aumentado os preços dos seus serviços de maneira imoral, em tempos de pandemia. A pergunta até simplória é: há algum fato novo nessa situação? A resposta, igualmente simplória, é não. Mas, por trás desse exemplo aparentemente banal, está o cerne da nossa questão central, ou seja, porque o capitalismo se sucede num turbilhão de crises e contracrises há mais de dois séculos, sem que tenhamos conseguido escapar dele?
Com efeito, conhecemos o grande aparato liberal-midiático desde antes do filósofo John Locke (1632-1704), com os padres jesuítas espanhóis Juan de Mariana (1536-1624) e Francisco Suárez (1548-1617). A semente da tirania econômica sobre o poder político, sob formas pré-capitalistas de governos ainda vigentes, é perceptível à luz da história pelas narrativas deixadas ao longo do percurso de empoderamento crescente do dinheiro (capital).
Nessa perspectiva, a queda de braços entre o governo Fernández e o capital privado das telecomunicações não é diferente de tantas outras da longa trajetória de enfrentamentos entre as forças “ocultas” do mercado e a desesperada luta das populações menos afortunadas para escapar do completo abandono. Obviamente, algumas tiveram mais sucesso que outras. Porém, todas, em algum momento histórico, estiveram desesperançadas. O incrível de tudo isso é que o capitalismo não só não foi desmitificado como um Deus ex-machina, como ainda evoluiu para a atual fase neoliberal. Em outras palavras, no atual “campo” histórico da modernidade, seus dois pólos (econômico e político) não estão separados mas, ao contrário, estão imbrincados, com o agravante da supremacia econômica sobre a política.
Como chegamos a isso? É conhecida a frase de Marx sobre a história poder ser estupidamente lenta. Mas, mesmo no tempo dela, a história pendeu algumas vezes para a grande massa das pessoas sem solução. Ainda que possamos identificar perversas motivações nos grupos desinteressados em pôr fim às desigualdades sócio-econômicas ao longo da trajetória capitalista, muita coisa poderia ter sido diferente nos movimentos emancipatórios. Será?
Sinceramente, acredito que não. E a minha negativa está baseada numa palavra apenas: “democracia”. Talvez, para a surpresa de muitos, essa forma de governo que Platão considerou a melhor entre as piores formas de governo possíveis - ou, se preferirem, a pior entre as melhores formas de governo - foi o alicerce fundamental para destravar o imbróglio político em que o mercado se meteu com o seu sistema produtor de mercadorias. Explico melhor: sem um sistema político que promovesse a falsa aparência de participação popular nos desígnios do Estado-nação, a barbárie econômica e social não poderia ter sido legitimada pelo capital privado.
Assim, está correto ARCADY (2020) quando escreve que: “A democracia não é um regime político de luta entre os iguais: as classes proprietárias lutam para exercer e preservar um domínio e um controle sobre a vida material e, também, sobre a vida cultural e política dos trabalhadores, em condições de superioridade que são incomparáveis” (2). A democracia, na verdade, é um regime político de petrificação da desigualdade, confirmada pela legalidade do domínio ilegal de um grupo de pessoas (sempre minoritário) sobre a maioria da população.
Ora, se tal assertiva está correta, então a nossa afirmação título também está, ou seja, o capitalismo não tem salvação. Pois o regime político dos sonhos planetários, a democracia, que banca a desintegração dos laços sociais em prol do sujeito atomizado a mero consumidor, já deveria ter sido superada. Resta tentar descobrir se existem alternativas e, se existem, quais são elas. Então, como escapar do capitalismo e da sua eficiente seguradora, a democracia? É possível pensar alguma alternativa democrática sem capitalismo?
Com efeito, não é de hoje a contestação da democracia como forma de governo salvadora do mundo. Para ficarmos apenas em exemplos recentes, podemos citar dois gigantes: o historiador marxista britânico Eric Hobsbawn e o nosso não menos genial Sérgio Buarque de Holanda. O primeiro, no início desse século, já antecipava a falência da democracia no plano global (3); o segundo, pensando a realidade nacional, numa entrevista concedida na já longínqua década de 1970, afirmou que sempre entendeu ser difícil a democracia em solo pátrio, para não dizer inexistente (4).
Vamos trazer um breve resumo das ideias desses homens, que fugiram do “status quo” do pensamento capitalista dominante, para entendermos o quão difícil é responder à pergunta sobre uma alternativa democrática sem capitalismo, ou mesmo sobre uma alternativa mais radical de “descapitalismo”. Pois, sem essa crítica radical, profunda e emancipatória sobre um novo porvir, sem a imbricação geminiana da economia com a política, tanto a primeira alternativa quanto a segunda estão fadadas ao fracasso.
Assim, Hobsbawn escreve como se estivesse falando numa sala de aula. Aponta argumentos negativos sobre a democracia liberal e ressalta, irônico, que, apesar de tudo, “o ‘povo’ é a base e o ponto de referência comum de todos os governos nacionais, excetuando-se os teocráticos”. Constata, enfaticamente, a atualidade ultra “laissez-faire” do Estado, sendo a soberania de mercado uma alternativa à democracia liberal. A economia engole a política e o consumidor emerge no lugar do cidadão. Apesar dos meios de comunicação possuírem um papel-chave nessa nova modernidade do voto sem valor, ou, se preferirem, do voto sem poder decisório, Hobsbawn reafirma que a “utopia de um mercado global e sem Estado, baseado no ‘laissez-faire’, não vai se concretizar”.
Infelizmente para nós, ele não teve tempo para avançar numa teoria condizente com o que esboçou no texto, ainda sem segurança, sobre uma espécie de “midiacracia”. Possivelmente, da mesma maneira que Marx não nos deixou uma teoria autoral sobre o conceito de Estado. De qualquer maneira, fica o aviso desse historiador ímpar de que o tempo está contra nós; o planeta se esgota pela ação desumana do ser humano hipnotizado pelas benesses tecnológicas; e a solução, ou mitigação, desses problemas não está mais nas mãos dos votantes, ou seja, da democracia liberal.
Voltar nossos pensamentos para a democracia brasileira após essa breve “aula” de Hobsbawn pode ser uma tarefa “hercúlea”, porém importante para entendermos que, se no plano global a democracia liberal definha, no plano micro, ou seja, em um país periférico como o nosso, bem como em tantos outros, esta sequer é possível. Em outras palavras, se a democracia liberal foi oferecida ao mundo globalizado ocidental pós-guerras como a Penépole de Ulisses, no terceiro mundo a democracia liberal foi imposta aos países recalcitrantes como o mito de Sísifo.
Nessa perspectiva, para Buarque de Holanda, segundo escreveu em Raízes do Brasil, no final dos anos de 1920, nunca teria havido democracia no Brasil que “mexesse mesmo com toda a estrutura social e política vigente”. Podemos acrescentar que nem até àquela data, nem até hoje. Está muito bem posto na sua entrevista que a história do país é a história das nossas elites, em diferentes tempos e formas. Uma das alegorias principais da nossa mitologia é o “homem cordial”, ainda que não materializado em algum personagem, como Macunaíma, o herói brasileiro sem caráter de Mário de Andrade.
Realmente, a cordialidade brasileira de Buarque de Holanda está explícita na guerra de independência sem derramamento de sangue, assim como nos golpes militares e nos conchavos entre as famílias dos coronéis poderosos nas disputas políticas. Nada de insurreições, revoluções, guerras civis. Salvo um ou outro episódio de revolta popular localizada, alguns mais bem sucedidas que outras, a verdade é que o Brasil convive, há 500 anos, com o povo fora da história do país. Desnecessário dizer que, para Buarque de Holanda, o que se chamou de democracia, nasceu aqui dentro como um mero mal-entendido. Pois aqui o liberalismo (atual neoliberalismo) sempre existiu sem a necessidade da democracia. A fachada democrática, para um país sempre “em desenvolvimento” como o nosso, só serviu como disfarce para o autoritarismo ou totalitarismo, ao sabor do vento histórico.
Entretanto, resta acrescentar duas coisas: a primeira é que o mito acompanha a história, mas ela nem sempre realiza-se de acordo com o mito; a segunda é que a história pode não acompanhar o mito, mas ele, dialeticamente, sempre está a influenciá-la. Assim, Ulisses, travestido de mendigo, pode muito bem representar os povos que se rebelaram contra as elites que historicamente permanecem na busca do “santo graal” da felicidade eterna, ainda que não saibam exatamente o que isso significa. Como não sabem, aqui e no mundo perpetuam-se no poder, ao custo anual de milhões de vidas ceifadas pelo ídolo dinheiro. US$ 84 trilhões de dólares em dinheiro real em contraposição a US$ 700 trilhões de dólares de dinheiro fictício resume muita coisa. Infelizmente, ao contrário desse mito grego, a Penélope da alteridade entre pessoas e povos ainda espera por Ulisses. Quanto ao Brasil, o pobre Sísifo ainda continua rolando a pedra montanha acima todos os dias, mas essa pedra, cheia de fome, violência, corrupção e desespero, continua muito pesada e rola ladeira abaixo toda vez que a coruja de Minerva levanta vôo.
Então, voltando ao cerne do nosso questionamento, e diante do que já foi exposto, repetimos as perguntas: como escapar do capitalismo e da sua eficiente seguradora, a democracia? É possível pensar alguma alternativa à democracia capitalista?
Insisto que sim, mas receio que não a curto prazo. Vejamos. Se é verdade que o capitalismo, ou sistema produtor de mercadorias, é um sistema econômico histórico, então podemos afirmar que ele é passível de transformação. Além disso, se está correta a média de 10.000 anos definida por historiadores para o começo dos primeiros assentamentos agrícolas, o atual sistema capitalista não corresponde a 5% desses anos. Por fim, se tomarmos apenas o período do iluminismo para cá, veremos que a ideologia do capital não abrangeu todo o planeta, longe disso, ficando na maior parte do tempo restrito ao continente europeu e, mais tarde, ao norte das Américas. Se tudo isso é fato, logo é possível escapar da lógica mercantil sem substância. Como? Ora, justamente destruindo seu maior mito na atualidade: a “capitalocracia”.
É verdade que a maioria dos leitores pode não pensar desse jeito. Afinal, destruir a “capitalocracia” é acabar com os dois principais fetiches que a sociedade líquida de Bauman possui hoje em dia, a saber, o consumo e o voto. Mas, para esses incautos, digo que já perdemos a rédea do jogo faz tempo. Somos os 99% (5) de sujeitos insolventes que o sistema capitalista tenta expulsar. É preciso abandonar esse jogo que possui apenas um lado vencedor, qual seja, o lado do capital, para encontrar uma alternativa ao binômio capital-democracia. É interessante notar que o maior invento material dessa dupla no século passado foi, não por acaso, um sistema binário de processamento de dados: o computador.
Nessa toada, a meu ver, nesse momento só temos três alternativas diante da democracia totalitária que devora seus filhos (KURZ, 2020), sendo uma delas a sua continuidade, com consequências cada vez menos possíveis de se imaginar. Passo ao largo do pensamento ultraliberal atual, de que essa forma de governo será algum dia o cerne da transmutação dos seres humanos em deuses, sequer demiurgos, apesar das tórridas tentativas já divulgadas, como por exemplo as experiências do Facebook para desenvolver o “Iphone” cerebral (6). Quanto às outras duas alternativas que podemos aventar, nesse esforço teórico “a priori”, a primeira é a tão aclamada renda básica universal, que ganha adeptos cada dia mais ao redor do mundo, independentemente de ideologias, e a segunda, mais radical, é o que chamo de “teoria das pequenas comunidades”, como forma de suplantar o atual modelo de Estado-gerente do capitalismo.
Sobre a renda básica universal, confesso ser essa ideia bastante atraente à primeira vista. De fato, se dividirmos o número aproximado do PIB Mundial (US$ 84 trilhões) pelo número também aproximado de 7,2 bilhões de seres humanos no planeta, chegaremos ao valor per capita de US$ 11.667,00. Essa quantia é muito superior às propostas já aventadas ao redor do mundo, que chegaram, no máximo, a um quinto da atual renda per capita (7) acima, isso nos países mais desenvolvidos (8). Se algum dia essa proposta for efetivada como está sendo gestada, não estaremos mudando o modelo vigente de governo, mas perpetuando uma barbárie em escala colossal. Pois na medida em que o capitalismo não refreia a tempestade que vem do paraíso, o que ele oferece é um progresso amontoado de ruínas (9).
Sobre o que chamo de “teoria das pequenas comunidades”, ela nem mesmo está sendo gestada, discutida, vislumbrada como uma alternativa. Por quê? Porque está no âmago dessa proposta o suplantar do Estado como o conhecemos hoje, seja ele neoliberal, social-liberal ou capitalista estatal. A globalização não elevará o “estúpido duende bípede” (LUXEMBURGO, 1902) ao paraíso fetichista de vida terrena prazerosa, bancada eternamente pela ciência e tecnologia inesgotáveis. Mesmo as drogas alucinatórias estão no seu limite, diante da nossa sede insaciável por mais alienação e satisfação egoica. Ao contrário, é provável que apenas o reverso do que está posto possa indicar alguma saída para o precipício da jornada humana, a saber, o re-aprender com os povos remanescentes que convivem harmonicamente com o planeta terra. Essa é uma ideia que julgo promissora. É preciso elaborá-la com carinho.
Finalmente, no curto prazo resta-nos uma certeza e um ceticismo benevolente. A certeza é de que temos medo do inesperado, do intangível, do desconhecido. O inconsciente coletivo descrito por Jung é um conjunto de sentimentos, pensamentos e lembranças compartilhadas por toda a humanidade. Já perdemos as imagens do longínquo passado, os chamados arquétipos, dos nossos ancestrais, que viviam sem um ente abstrato monopolizador da vigente necropolítica. É verdade que alguns pensadores estão tentando resgatá-la, como Serge Latouche em sua “Teoria do Decrescimento”. Mas, como disse, não chegamos nem a discuti-la ainda. Quiçá um dia possamos fazer minguar o sistema produtor de mercadoria.
O ceticismo benevolente, é de que precisamos avançar nas conversas sobre a renda básica universal. Já seria um ganho enorme para os povos do abismo, como chamou Jack London a maioria da população bestializada pelo trabalho desumano (10). Nesse mesmo livro, Ernest Everhard, personagem principal, possivelmente parafraseando Marx, diz para sua esposa Avis, já prevendo a derrota da primeira revolta do proletariado: “A evolução social é lenta, exasperadoramente lenta, não é querida?” (11). Haverá um momento em que a tempestade que sopra do paraíso, em nome do progresso, deixará de amontoar ruínas. Resta saber se isso será uma boa notícia.
1 - Argentina reage a aumentos em internet e TV e deixa direita furiosa;
2- Vai passar;
3- A falência da democracia;
4- A democracia é difícil – Sérgio Buarque de Holanda;
5- Esse termo supõe-se ter sido obra do antropólogo David Graeber, falecido recentemente, autor do livro Dívida: os primeiros 5.000 anos. São Paulo. Editora TRÊS ESTRELAS. 2016. Entretanto, Anselm Jappe faz duras críticas a essa nomenclatura (ver JAPPE, Anselm. A obediência morreu?. In: Margem Esquerda, Revista da Boitempo, 34, São Paulo, 1º. Semestre/2020);
6 - O ‘Iphone cerebral’ está a caminho;
7 - Renda básica universal: o que falta para concretizarmos essa ideia?;
8- Como exemplo local, aqui no Brasil a pandemia forçou o governo a oferecer aos mais pobres a migalha de RS$ 600,00 para uma parcela da população que conseguiu ter acesso ao benefício, o que salvou muitas vidas. Porém, apesar da iniciativa se mostrar atraente, é preciso ter em conta a armadilha negociada com as elites.
9 – LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo. Boitempo. 2005, pág. 87;
10 – LONDON, Jack. O TACÃO DE FERRO. São Paulo. Boitempo, 2011;
11 – idem, pág. 172;
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