21 Dezembro 2017
Em uma escola pública de Porto Alegre, educadores buscam diminuir desigualdade a partir do debate sobre estética feminina
A reportagem é de Lara Ely, publicada por IHU On-Line, 18-12-2017.
Ainda falta um longo caminho a percorrer. Mesmo que nomes como os da atriz Taís Araújo, da pesquisadora Djamila Ribeiro ou da cantora Carol Konka tenham ocupado de forma decisiva espaços de poder e influência na sociedade atual, a identidade da mulher negra no Brasil ainda é associada, de forma leviana, a uma estética vulgar, de subempregos, com papeis hipersexualizados ou de menor relevância intelectual. É preciso mudar esse cenário.
Para tentar quebrar o ciclo da desigualdade e imprimir novas perspectivas de futuro a jovens negras de Porto Alegre, no RS, um grupo de professoras da Escola Estadual Idelfonso Gomes usa o apelo da estética para abordar temas como feminismo, questões raciais e diversidade. Com debates, produção de vídeos e ações de engajamento dentro e fora das redes sociais, elas querem dar voz a pessoas historicamente silenciadas pela opressão social, racial, midiática e de gênero, unindo discursos semelhantes para fazer ecoar o desejo de ter mais respeito e valorização.
Grupo parte do cabelo para debates sobre identidade
(Foto: Luciana Dornelles/arquivo pessoal)
Batizado de Empoderadas do IG, o grupo parte do cabelo para tratar questões mais profundas. A sacada foi da professora e educadora física Luciana Dornelles, idealizadora do grupo, ao perceber que as meninas que elogiavam seus crespos eram as mesmas que alisavam os próprios cachos. Luciana entendeu que o gesto representava uma forma de negação da própria identidade, mas vislumbrou uma oportunidade de aproximação para um diálogo propositivo.
Os encontros semanais ocorrem no turno inverso da escola ou até mesmo fora dela. Além do grupo de estudos, baseados em leituras prévias e discussões sobre temas da atualidade, elas escolhem frases e colocam em cartazes, para lembrar que o óbvio precisa ser dito. As alunas trazem dizeres como “Meu cabelo é mais forte que teu racismo”, “Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho nos olhos haverá guerra”, “Somos as netas das negras que vocês não conseguiram matar”, “Menina, você pode ser o que você quiser”, “Black Power é dar poder aos negros que não tiverem o poder de determinar seu destino”, “Onde estão nossas heroínas negras?”, entre outros.
Recentemente, essa simbólica criação coletiva fez parte de uma exposição no Memorial do Rio Grande do Sul. Motivada pelas ações decorrentes da Lei Nacional 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira, a exposição foi o cenário onde as empoderadas do IG encontraram a jornalista Carol Anchieta, um dos ícones desta luta. Feminista e ativista da causa, Carol tem sido mais do que uma referência na mídia – serve de inspiração para as alunas de Luciana. Com frequência, suas postagens em redes sociais são acompanhadas da hashtag #representatividadeimporta. Em pleno 2017, ainda falta uma justa e merecida distinção aos negros que exercem sua notabilidade no Brasil. E a construção das identidades individuais está diretamente relacionada aos produtos midiáticos que consumimos.
Foi pensado nisso que, após passar uma temporada morando no Rio de Janeiro, onde teve contato com mulheres unidas e combativas, Carol percebeu a necessidade de trazer o discurso inclusivo para dentro de sua atuação jornalística. Passou então a priorizar a produção de conteúdos que dão voz para quem tem menos espaço. A vontade de levar às pessoas negras, e sobretudo às meninas, a ideia de que elas podem ir além, virou uma missão de vida.
Trabalhando na televisão, Carol também encontra na estética uma forma de enfrentamento. Entende que, por ser político, o corpo é a própria mensagem, e que seu cabelo é uma forma de resistência. “Todo o sistema é construído em cima do racismo, machismo, patriarcado, e todas as estatísticas sociais oprimem a mulher negra. Quero lembrar que, apesar disso, elas não devem se acovardar e precisam encontrar os caminhos”, reflete a jornalista. A escuta ativa e ampliação de oportunidades, inclusive no ambiente acadêmico, são formas de estreitar os mundos, apagar a distância excludente e ter a força política para mudar esse paradigma.
IHU On-Line - O que te motivou a criar o projeto?
Luciana Dornelles - Quando comecei a trabalhar na escola pública, me estranhou a falta, ou até mesmo negação de identidade dos alunos. Poucos se declaravam negros, as meninas não usavam seus cabelos (crespos e cacheados) soltos. Mas quando elas me diziam que "odiavam" o cabelo... aquilo doeu. Me lembrei da minha infância na escola... e das tantas histórias cruéis que já ouvi minhas amigas negras contando que sofreram. O cabelo era tema diário nessas agressões. Entendi que precisava fazer alguma coisa, e vi no projeto a oportunidade de iniciar uma discussão a partir do tema "cabelo crespo", trabalhando questões de respeito e diversidade, história e ancestralidade. E o resultado foi muito maior do que imaginei.
IHU On-Line - Empoderamento da mulher negra: qual o significado desta expressão?
Luciana Dornelles - Acho que a afirmação através da estética é um gesto político. Uma forma de dizer “nós existimos e estamos aqui, vamos continuar aqui”. Mas o empoderamento é muito maior que estética. É algo de dentro para fora. Você vai se conhecendo, conhecendo sua história e se dando valor, se amando, e assim vai tomando pra si o poder sobre a própria vida. Você se empodera e começa a entender seu lugar, seu espaço, e passa a ter armas para lutar e também para se defender dos baques que o racismo causa na vida das mulheres negras todos os dias.
IHU On-Line – Que baques são estes? Fale das lutas da mulher negra nos dias atuais.
Luciana Dornelles - Começo essa resposta ressaltando que enquanto a taxa de homicídio contra mulheres brancas caiu 7,4% (o que é bom), a de mulheres negras aumentou em 22% no mesmo período. Isso me apavora. As mulheres negras ainda são as que têm menos acesso à escola, à saúde pública, ainda são as que recebem menos e também as que mais acabam tendo que criar seus filhos sozinhas. Não queremos hipersexualização, merecemos amor, exigimos respeito. Em tempos de somos todos iguais, eu ainda tenho que sugerir que minhas amigas com black prendam o cabelo para a entrevista de emprego, e isso me dói o coração. Nós ainda lutamos por voz e visibilidade. Lutamos por nós e pelos nossos.
IHU On-Line – Você acredita que, historicamente, faltam referências e inspirações, ou elas existem, mas não ganharam o destaque merecido?
Luciana Dornelles - Eu acredito que se essas grandes referências e inspirações negras tivessem historicamente recebido o merecido destaque, teríamos muito mais talentos espalhados por aí. É muito difícil crescer em um país que quando fala do teu povo só fala em escravidão. Qual a criança que vai se orgulhar de ser negra se na escola só se fala do negro escravo...nem escravizado se fala, usam escravo para exatamente tirar toda a humanidade dos nossos reis, rainhas, médicos, professores, mães, pais que foram trazidos escravizados para o Brasil sendo obrigados a negar sua cultura, língua, religião... sua identidade. Eu queria, na escola, ter ouvido falar de Dandara, Aqualtune, Tereza de Benguela, da Cleópatra em seu real contexto e até mesmo de Jesus, que sabemos ser bem diferente dessa pintura de olhos e pele clara que nos vendem. Com certeza teria sido diferente a minha infância e de muitas outras crianças negras brasileiras.
IHU On-Line –Teve alguma leitura que te inspirou para fazer esse projeto?
Luciana Dornelles - Eu gosto muito de ler, mas se existe um livro que me inspirou para o projeto foi o livro "Um defeito de cor", da Ana Maria Gonçalves. Esse livro é uma relíquia para o povo negro, pois ele nada mais é do que o diário de uma africana, que foi escravizada e trazida para o Brasil e vendida como escrava de companhia para uma sinhazinha. E toda a sua história toma outros rumos quando ela aprende a ler e a escrever. É um livro incrível, de uma narrativa forte e ao mesmo tempo delicada! 8 décadas de história que nos mostram um Brasil que nunca nos foi contado, uma "Independência" vista por outro lado. É demais! Vale muito a pena! Utilizamos muito também Angela Davis e Chimamanda Ngozi Adichie. São leituras que estão sempre presentes.
IHU On-Line – Por que representatividade importa?
Luciana Dornelles - Difícil responder por que representatividade importa, mas em um país com 54% da população negra, se olharmos em volta podemos nos questionar... onde estão as pessoas negras? As pessoas até hoje se surpreendem ao encontrar um negro psicólogo, engenheiro, arquiteto, advogado, médico... entre tantas outras profissões. Existe um senso comum que diz que o negro vai estar sempre em trabalhos subalternos, olhamos a TV e vemos o negro sempre representado como o ladrão, o traficante, o mordomo ou a empregada. É perceptível no olhar da criança quando ela se vê representada. Quando ela vê um igual ocupando um espaço que dizem todos os dias que ela não vai ocupar. Por isso a importância das referências, para nossas crianças crescerem sabendo que elas podem ser o que quiserem. E não o que a sociedade condiciona que elas devem ser. Referência é tudo. Eu graças a Deus cresci ao lado de mulheres incríveis na minha família, foi o que me salvou em meio à invisibilidade do negro no meio midiático. Hoje tenho o projeto como um meio de tornar as crianças da escola suas próprias referências, é lindo ver os olhinhos brilhando quando essas crianças identificam em uma colega, também de escola pública, uma pessoa linda, empoderada, que dá valor ao estudo e que exalta a cultura negra. Referência é tudo na vida das nossas crianças.
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