"Segundo Charles Taylor, o cristianismo nos anima de duas maneiras: ele nos chama a aceitar metas elevadas, mas também a santificar o comum. Em outras palavras, o cristianismo chama os humanos tanto para a autorrealização quanto para a autotranscendência".
O comentário é de Bill McCormick, SJ, professor no Departamento de Ciências Políticas e Filosofia da Saint Louis University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por The Jesuit Post, 16-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
E se Deus nos ama como somos? E se Deus nos chama para algo mais elevado?
Essas podem parecer perguntas estranhas para serem feitas a um grande filósofo e teórico social, mas eu proponho que são boas perguntas para Charles Taylor. Taylor é um estudioso cuja obra não apenas atrai uma atenção generalizada de acadêmicos além da sua especialidade acadêmica, mas também permanece notavelmente enraizado nas experiências vividas do seu tempo.
É esta segunda parte que me incita a levantar questões espirituais para um filósofo acadêmico. Porque eu acredito que Charles Taylor tem algo a dizer sobre elas.
Taylor renovou sua fama com seu livro “Uma era secular” (Ed. Unisinos, 2010), e é um livro que vale a pena ler.
Nele, Taylor oferece um rico relato da religião e do seu lugar no mundo moderno. Talvez o mais importante é que ele oferece um ponto de vista do secularismo como uma condição em que todos os modos de crença – incluindo a descrença – são igualmente questionáveis e frágeis.
Não vivemos mais em uma era de fé inquestionável, se é que ela alguma vez existiu, mas também não vivemos mais em um tempo em que o ateísmo pode reivindicar uma posição elevada, como em períodos durante o Iluminismo.
É como Taylor descreve a vida cristã que é particularmente significativo para mim. Segundo Taylor, o cristianismo nos anima de duas maneiras: ele nos chama a aceitar metas elevadas, mas também a santificar o comum. Taylor fala de um equilíbrio “entre as demandas da transformação total a que a fé convoca e as exigências da vida humana comum e corrente”. Em outras palavras, o cristianismo chama os humanos tanto para a autorrealização quanto para a autotranscendência.
Tensões e equilíbrios são complicados, e as suas voltas e reviravoltas desempenham um papel importante no livro de Taylor. Pois como definir e viver as altas aspirações espirituais ao mesmo tempo em que se oferece um caminho para a transformação que não esmague seus adeptos? Como uma religião que nos chama a sermos perfeitos como seu fundador (Mt 5,48) não reduz seus adeptos ao pó? Por falar nisso, como uma religião que chama todas as pessoas de filhos de Deus não leva à mediocridade complacente?
Como James K. A. Smith observa em seu maravilhoso comentário sobre “Uma era secular”, enfrentar esse desafio requer muita imaginação, para que a escolha não pareça ser entre uma ortodoxia esmagadora ou uma liberdade banal.
De fato, como disse Taylor, grande parte da história do cristianismo parece ser uma história dessa falta de imaginação. Muitos grupos cristãos tentaram eliminar a lacuna entre a santidade diária e a virtude heroica. Alguns fazem isso negando a bondade da criação, outros defendendo um moralismo vazio que não pede nada aos humanos e lhes oferece ainda menos.
Mas o cristianismo não nos livra desse dilema entre a santidade cotidiana e a salvação: ele promete uma transformação final que ainda não aconteceu. E assim vivemos na esperança dessa transformação. Essa esperança nos desafia a nos estendermos para além do presente, embora ela nos console nas dificuldades presentes.
Porque Deus nos ama como somos. E Deus também nos chama a algo mais.
Como podemos viver essa tensão? Como jesuíta, uma de minhas heurísticas preferidas para o problema é a imagem de Santo Inácio de Loyola apresentada por Taylor. Para Taylor, Inácio sempre viveu as tensões perenes entre o imanente e o transcendente, entre o cotidiano e o sagrado, entre a renúncia e a afirmação da vida cotidiana.
Inácio fez isso vivendo não apenas “no” cotidiano, mas também “por meio” dele: com um senso para aquilo que o transcende, para afirmar a base eterna do temporal. O que quer que façamos, “fazemos tudo para a glória de Deus”.
Viver essa tensão é um trabalho árduo, e em grande parte porque o desafio de viver fora das tensões é extremamente prático. Como fazemos isso? Essa tensão escatológica exige que aprendamos novamente como viver juntos em tempos incertos e frágeis, e nenhuma quantidade de livros vai nos ensinar isso. Precisamos de prática e de amigos e mestres para nos ajudar ao longo do caminho.
Daí a importância da moderação para o nosso tempo. Moderação significa encontrar um meio-termo em tudo o que dizemos e fazemos. Precisamos comer, mas não queremos comer demais ou pouco demais. Queremos ser generosos, mas não queremos abrir mão de tudo. Queremos compartilhar a verdade, mas não queremos excluir outras verdades.
A moderação não é uma virtude espalhafatosa. Mas ela nos guia em muitas partes da nossa vida. Moderação é evitar extremos que nos afastam dos nossos compromissos mais profundos.
Nesse sentido, a moderação está entre as virtudes mais concretas. Ela não nos permite mergulhar em abstrações, separar ideais de realidades. Esses princípios se baseiam, em última instância, no cuidado das pessoas. Ela se preocupa com as instituições, as práticas e os hábitos que protegem as pessoas, principalmente as mais vulneráveis. Portanto, ela não pretende arrasá-los por não serem perfeitos, nem preservá-los em prol da nostalgia.
O cristianismo não nos chama a defender nenhum “-ismo”, mas sim a proclamar o Reino de Deus aqui e agora. Podemos acreditar fervorosamente que algum sistema de pensamento ou crença ajuda a promover esse Reino, mas não nos enganemos: será uma sombra dele, na melhor das hipóteses.
Moderação não significa moderação apenas sobre a vida terrena ou um anseio transcendente. Isso seria tentar separar aquilo que sabemos com cada fibra do nosso ser que está unidos: nossa vida presente e o além para o qual ela sempre aponta. A moderação não pode significar renunciar ao maior dom da humanidade: a promessa final de que todos seremos um, tanto interiormente quanto com os nossos semelhantes em Deus.
De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.
XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição