31 Mai 2017
No corredor que leva à pequena sala de Mariana Herrera, diretora do Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG), está a “nietera”, um painel com fotos dos últimos cinco filhos de desaparecidos que recuperaram sua identidade. Algumas imagens estão acompanhadas de saquinhos de plástico contendo as rolhas das garrafas que foram estouradas nos correspondentes festejos. Herrera assumiu a direção do Banco em 2015, através de um concurso público, após a modificação da lei que o regulamenta.
Bióloga especialista em genética forense, Herrera repassa os 30 anos da instituição criada durante o governo de Raúl Alfonsín a pedido das Avós da Praça de Maio para comprovar a identidade das crianças – hoje adultas – que repressores haviam apropriado. Foi um caminho que começou do zero, porque não havia antecedentes no mundo. Atualmente, passam por mês pelo BNDG entre 100 e 120 pessoas que suspeitam que podem ser filhos de desaparecidos.
“A identidade é muito mais que os genes. Nós estamos restituindo a história. É, além disso, prova de que houve um crime de lesa humanidade e permite que a sociedade o saiba. Porque também há uma identidade social que é recuperada, não é apenas o neto que é restituído; é como tudo se acomoda na sociedade”, disse Herrera sobre o processo que acompanha a “descoberta” de cada neto.
A entrevista é de Victoria Ginzberg, publicada por Página/12, 30-05-2017. A tradução é de André Langer.
Quais são os marcos ou as etapas do Banco nestes 30 anos?
Há três etapas. Elas não têm a ver apenas com a história do Banco, mas com a idade das crianças. Na primeira, todos os casos eram judicializados, as crianças eram enviadas pela Justiça para fazerem os exames, eram menores de idade. É a etapa mais complexa, porque nesta época não havia Bancos de Dados Genéticos no mundo, a genética forense não era aplicada em causas tão complexas como a falta da geração dos pais. Eram feitas análises de paternidade simples, mas estas situações não eram contempladas. Tudo estava para ser criado. Durante o franquismo, por exemplo, mais de 40 mil crianças foram tiradas de suas famílias, mas não foram criados bancos para sua identificação. Somente agora eles estão discutindo a questão. O DNA ainda estava na sua etapa preliminar; havia apenas testes serológicos. A primeira diretora do banco, Ana María Di Lonardo, junto com o pessoal da Associação Americana pelo Avanço das Ciências, fizeram um grande esforço. Também foi uma etapa complexa do ponto de vista político – a democracia ainda era muito frágil.
Havia um discurso acerca de que era melhor não “perturbar” as crianças e deixá-las com as famílias que as adotaram.
Havia uma sociedade que acompanhava esse discurso, pessoas que diziam que era vitimizá-las novamente, quando, na realidade, as crianças continuavam a ser vítimas o tempo todo, todos os dias, até que recuperassem sua identidade. Mas quando se analisa isso no contexto do que aconteceu na América Latina, o que aconteceu na Argentina, a maneira como se encarou esta situação, foi um ato de coragem.
Além disso, o “índice de abuelidad”, que permitia identificar netos e netas a partir das avós e dos avôs não existia no mundo.
As Avós viajaram a muitíssimos países da Europa e aos Estados Unidos para consultar matemáticos e cientistas, e a resposta era que se tratava de alguma coisa a ser pensada, mas que não viam solução. Foi organizado um congresso internacional para debater este tema e a partir daí as coisas começaram a avançar. Foi um gatilho para a estatística forense internacional. Os primeiros testes de DNA foram feitos em 1985 e tinham a ver com testes de paternidade. Não era possível usá-los para os casos em que os avós estavam envolvidos. Essa etapa teve a ver com o desenvolvimento de algo que não existia.
A segunda etapa?
É a partir dos anos 90-95. Já existem marcadores genéticos, as técnicas começam a ser padronizadas, aparecem os primeiros kits e começa-se a propor a questão da automatização. Nesse momento, as crianças já eram maiores de idade e suas vozes começam a se fazer ouvir. Era uma época neoliberal e também havia questionamentos. Mas, mesmo assim, durante a presidência de Carlos Menem criou-se a Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (Conadi). E, em 1998, por decreto, permite-se que a Conadi possa enviar as crianças para o BNDG. Com isso, não era mais necessário abrir um processo judicial para obrigar uma pessoa a vir ao banco, mas a Conadi podia pedir uma amostra voluntária. Começou-se a simplificar o vínculo, os rapazes começaram a vir sozinhos, e pelas estatísticas é possível ver que aumentou muitíssimo o número de identificações, devido às técnicas de DNA e à quantidade de jovens que começaram a chegar. Nessa etapa houve melhorias, embora no imaginário da sociedade ainda não houvesse uma identificação com o que tinha acontecido, não se compreendia que o que estava sendo restituído era a identidade social.
Isso aconteceu na terceira etapa?
A partir de 2003, as metodologias já estão automatizadas e sistematizadas, aparecem os controles de qualidade nos laboratórios. Começa a ser discutida a criação de uma base de dados de DNA para identificação de pessoas, crimes, violações, etc. A partir de 1995, começa-se a criar as primeiras bases de Dados para Identificação de Desaparecidos, por exemplo, na Bósnia. Havia um trabalho mais institucionalizado. A ciência começa a elucidar os crimes cometidos e a fazer a identificação dos corpos de valas comuns, surge o trabalho da equipe argentina de Antropologia Forense; tudo isso ajudava. A partir de 2003, quando Néstor Kirchner assume como compromisso a política de direitos humanos, tudo isso se consolida. E os netos começam a ter também voz política. São criadas diversas leis que estão em sintonia com o que se estava fazendo.
Que mudanças foram implementadas depois que você tomou a frente do Banco?
As mudanças têm a ver com a lei de 2009. A primeira lei do BNDG era muito ampla. Aqui não havia laboratório de genética forense que fizesse outras análises e o objetivo era resolver os conflitos relativos à filiação em geral e em uma parte tratava da identificação dos netos. Mas o banco em si, as amostras, era exclusivo dos netos, das Avós. Os outros eram casos que eram tramitados, começavam e terminavam, faziam-se as análises de paternidade e o relatório, mas não se depositava amostras na base de dados. Em 2009, a lei precisa o objetivo do banco relacionado apenas com crimes de lesa humanidade.
Houve críticas por isso.
Nesse momento, a discussão era que o banco, ao ter que se dedicar a outras tarefas, tinha tempos mais longos, ao passo que já existiam outros laboratórios públicos e do Poder Judiciário que podiam absorver essa outra tarefa.
A partir dessa mudança, os tempos das análises foram encurtados?
Sim. Como falta a geração dos pais, nós temos que analisar o DNA mitocondrial, quando é um homem, o cromossomo. E para ver se compartilha a linha paterna, temos que buscar no mínimo 24 marcadores genéticos para que haja uma boa probabilidade no caso que inclua um grupo familiar. Às vezes, o grupo familiar está incompleto e devemos completar com o cromossomo X. Às vezes, precisamos pedir à Conadi para que procure um novo familiar ou exume um corpo para melhorar a prova. Agora, o tempo entre o jovem vir e receber o resultado, em geral, varia entre 15 dias e dois meses.
Quantas pessoas vêm para fazer análises por mês?
Por mês, estamos analisando entre 100 e 120 pessoas que vêm para comparar-se com as 300 famílias que têm amostras no banco.
Cento e vinte por mês é muito. Há muitíssimas pessoas com dúvidas.
Agora há uma consciência de que a substituição da identidade é um crime penal. E deve-se ao trabalho das Avós. Agora sabemos que é muito importante dizer a verdade aos jovens. Mas era uma prática comum registrar crianças adotadas como próprias. Além disso, durante a ditadura, aprofundou-se o tráfico de bebês, para além de casos associados à lesa humanidade. Havia circuitos que os próprios militares usavam para as apropriações, por um lado, mas também para vender bebês. A razão pela qual muitos jovens vêm é que são vítimas de todas essas irregularidades dessa época.
O que acontece, então, com essas pessoas? A Associação das Avós criou uma expectativa em relação à verdade e à identidade em muitas pessoas, mas não pode atender à expectativa de todos.
Algumas pessoas vieram ao banco e o resultado deu negativo. Para comparar com o banco precisa haver pais ou famílias que estejam à sua procura. Na maioria dos casos em que foram dados em adoção houve uma entrega voluntária, além de que as crianças eram registradas como próprias. Essa pessoa não está à procura desse jovem. Seria necessário comparar com todo o país e mesmo assim dariam falsos positivos em grande quantidade, porque é uma amostra muito grande.
E como são controlados os falsos positivos com os netos?
Há uma fantasia na Justiça e na sociedade de que o DNA resolve tudo.
Nós vemos muitas séries.
Exatamente. Essa é a porta de entrada para que a Justiça não investigue bem nenhum caso em geral, mais além deste tema. E que deixe de lado outras provas que fazem que se inclua ou descarte mais além do que diz o DNA. Há investigações preliminares feitas pela Conadi ou pela Justiça. Se um jovem vem ao banco e tem data de nascimento em 1976 e dá uma valoração alta com uma pessoa que foi sequestrada grávida nos anos 80, sabemos que não tem relação. Por outro lado, aqui se analisa o DNA mitocondrial e o cromossomo Y. E essas são ferramentas muito poderosas para descartar um falso positivo.
Como define a identidade? O que é?
A identidade é uma construção muito mais complexa que o biológico. Para os biólogos, existe o genótipo, que é a genética pura, a sequência de DNA. O fenótipo é o que se é perambulando pela vida. Para mim, a identidade é aquilo que se é caminhando pela vida e nisso há um impacto genético, que tem a ver com a origem biológica, mas também, 70% ou 80% é construção cultural. Falo de um indivíduo crescendo em um lugar social, indo a uma escola, alimentando-se de uma determinada maneira, tendo se criado em uma determinada família.
O que significa, então, a restituição da identidade?
Os netos recuperam sua identidade biológica, mas no momento em que recuperam sua identidade biológica já há uma mudança na identidade dessa pessoa, uma mudança cultural em sua história. Começam a somar a história que viveram desde que tinham conhecimento e a história recuperada de seus pais, amigos, companheiros de militância, avós, o que leem. Além dos novos vínculos. Esse impacto, que deveria ter entrado no momento do seu nascimento para construir uma identidade que tivesse sido diferente da atual, entra na idade em que se restitui sua identidade biológica. Isso é uma parte desse quebra-cabeça. A identidade é muito mais que os genes. Nós estamos restituindo história, damos-lhe a valoração objetiva, uma prova científica que restitui a história, a verdade. É, além disso, a prova de que houve um crime de lesa humanidade e permite que a sociedade tome conhecimento. Porque também há uma identidade social que é recuperada, não é somente o neto restituído; é como tudo se acomoda na sociedade. A sociedade é muito negadora e enfrenta isso, isso aconteceu. A prova científica abre a porta para uma série de restituições, não apenas a restituição biológica.
Como se preserva a independência do banco, sobretudo neste contexto político?
O banco é autônomo e autárquico. Apresenta seu próprio orçamento. Obviamente, passa pelo Congresso, que pode fazer cortes. Até agora nos viramos perfeitamente bem. (O ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação Produtiva) Lino Barañao tem um grande compromisso com o banco, sonhou este laboratório e onde colocar o banco de frente com a sociedade. Fez um grande investimento e nos deu apoio incondicional.
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“A identidade é muito mais que os genes; com ela restituímos a história”. Entrevista com Mariana Herrera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU