"Quando a Bíblia foi traduzida, do hebraico para o latim, hesed virou misericórdia, o qual é composto de miser e cor. Miser é a condição extremada de sofrimento e angústia de alguém, de miséria que suplica ao cor, isto é, ao coração, por misericórdia. Diante de uma tragédia, não há como sentir compaixão, misericórdia por quem sofre a dor. Nessa hora, não há quem não grite a Deus por misericórdia", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), padre franciscano e autor de dez livros e coautor de quinze.
No dia 30 de abril do ano 2000, o Papa João Paulo II, na celebração de canonização da freira polonesa, Maria Faustina Kowalska, institucionalizou o segundo domingo da Páscoa como “Domingo da Divina Misericórdia”. Segundo a tradição de fé, Jesus teria revelado à Santa Faustina que o primeiro domingo, depois da Páscoa, deveria ser o da festa da Divina Misericórdia, para recordar aos cristãos a eterna e insondável misericórdia de Deus.
Para entender o alcance dessa afirmativa, é necessário compreender o porquê do domingo e o significado da misericórdia na Bíblia e em nossas vidas. O nosso ponto de partida será o Sl 117,1, no qual o salmista canta: “Dai graças ao Senhor, porque ele é bom! Porque eterna é a sua misericórdia!”
Para os judeus, domingo é o primeiro dia da semana, dia de trabalho do fiel, pois, com ele, Deus inicia o seu ato criador. Para os cristãos, Jesus, ao ressuscitar no primeiro dia da semana, sela a criação definitiva de Deus na vida que não passa mais. Os primeiros cristãos também entendiam que o domingo recorda as oito bem-aventuranças. Ser bem-aventurado é “estar em marcha”, a caminho. Assim, a ressurreição de Jesus no domingo completa a marcha da vida, que é ressuscitar. Na labuta do marchar, uma das bem-aventuranças é o agir com misericórdia para alcançar a misericórdia divina (Mt 5,7).
A Bíblia está repleta da misericórdia. Os Salmos têm um lugar especial nesse movimento de fé e de esperança. Eles são uma coletânea de hinos inspirados, os quais expressam o sentido da fé nas mais variadas formas da vida humana: dor, sofrimento, alegria, louvor, vitórias, doenças, morte etc. A relação é sempre com o Deus que ouve o sofrimento, aceita o louvor e mantém laços de eternidade com o ser humano, a partir de sua misericórdia infinita.
Uma curiosidade! Você sabia que nem todo salmo é um salmo? Na verdade, a maioria são hinos. Salmos são somente os hinos que usavam um instrumento de oito cordas para acompanhá-lo. Com o tempo, eles deram nome ao livro composto de 150 hinos.
Na Bíblia encontramos três substantivos para falar de misericórdia. Dois no Primeiro Testamento e um, no Segundo. O primeiro deles é hesed, que significa favor imerecido, benevolência, graça que age no tempo. O segundo termo hebraico é rahamim, que significa misericórdia e compaixão. Rahamim provém de rehem, isto é, o seio materno da mulher-mãe com a sua disposição de amar sem exigência, sem favores e trocas. A mãe ama porque ama, com bondade, ternura e compreensão. Desse modo, hesed é lado masculino da misericórdia (fidelidade para consigo mesmo) e rahamim, o lado feminino (amor doação).
No Segundo Testamento, o substantivo grego éleos, tradução do hebraico hesed, expressa a emoção que temos diante do sofrimento do outro, isto é, a compaixão e a misericórdia. Daí que esmola, em grego eleemosúne, é o ato de sentir, de ter compaixão em relação ao outro.
Ainda que esses termos se refiram ao ser humano, na Bíblia, a misericórdia tem relação direta com Deus. Dentre as 296 citações de misericórdia, na Bíblia, 236 referem-se à misericórdia de Deus e somente 60, ao ser humano. Disso resulta que o agir misericordioso é característica de Deus. Para o ser humano, fica sempre o desafio de ser misericordioso como Deus.
Quando a Bíblia foi traduzida, do hebraico para o latim, hesed virou misericórdia, o qual é composto de miser e cor. Miser é a condição extremada de sofrimento e angústia de alguém, de miséria que suplica ao cor, isto é, ao coração, por misericórdia. Diante de uma tragédia, não há como sentir compaixão, misericórdia por quem sofre a dor. Nessa hora, não há quem não grite a Deus por misericórdia. No findar de nossas vidas, só Deus pode ter misericórdia. Quando alguém perde a capacidade de sentir misericórdia, a sua humanidade não existe mais, pois a essência de Deus, que é misericórdia, morreu dentre dele.
Na oração dos salmos, misericórdia aparece 90 vezes para falar das vísceras, das entranhas de Deus que se comove. Os Salmos de Misericórdia são: Sl 25; 41; 42; 43; 51; 57; 92; 103; 119; 136. Já a exclamação “Louvem o Senhor, porque ele é bom, porque eterna é a sua misericórdia!” é usada como refrão em numerosos salmos e textos do Primeiro Testamento (Sl 106, 1; 107, 1; 1 Cr 16,34; 2 Cr 5, 13; 7, 3; 20, 21; Esd 3, 11; Dn 3, 89; Sl 100, 5; Jd 13, 14).
O fato de repetir, incansavelmente, que eterna é a misericórdia de Deus, faz da história do povo da Bíblia uma história de salvação, de misericórdia. O tempo e o espaço da vida terrena e divina entrelaçam-se na eternidade do amor, que é Deus. Ele sempre cuida e cuidará de nós com o olhar de misericórdia. Deus é eterno, eterna será a nossa vida, pois a misericórdia dele é eterna. Misericórdia é outro nome de Deus. É faísca de Deus no meio de nós! Em Jesus, Deus veio ao nosso encontro para nos convocar a olhar o nosso semelhante com misericórdia. Há muitos filhos pródigos nos caminhos de nossa vida. Só a misericórdia é capaz de manter a nossa relação com Deus, pois ela deixa o nosso coração aberto para a esperança, apesar de nossa limitação, de nossos erros. Quando o fim de nossa vida terrena chegar, seremos julgados pelo tamanho de nossa misericórdia na balança da infinita misericórdia de Deus.
Quando, na relação com o nosso semelhante, exercemos o perdão, a vida renasce e um novo recomeço projeta dias melhores. Quando foco de nossas vidas for a misericórdia para com o outro, um estado permanente de ser, poderemos, então, cantar com o salmista: “Dai graças ao Senhor, porque ele é bom! Eterna é a sua misericórdia!” (Sl 117,1). Que as nossas vidas sejam um eterno Domingo de Misericórdia, um humanizar o mundo pela misericórdia, um recriar a vida para recomeçar sempre, na labuta do caminhar semanal, até o dia do encontro definitivo com a Divina Misericórdia.