"Jesus de Nazaré, o Cristo descrito nos Evangelhos, é visto com os olhos da fé dos apóstolos. Um incrédulo possivelmente o veria diferente. Dessa forma, nós cremos em Jesus como as apóstolas e os apóstolos O viram.
Acreditamos na fé dessas pessoas e da Igreja que nos deixaram. Então, nossa fé não é coisa privada. É apostólica e eclesial, é Igreja em saída e ativa, compromissada com Deus de Jesus Cristo, terno e misericordioso. As primeiras cristãs e os primeiros cristãos se faziam Igreja de forma material: entregavam seus bens para que a Igreja os transformasse em instrumentos do amor do Cristo. Portanto, crer não é somente aceitar verdades. É agir segundo a verdade do ser discípulo e seguidor do Cristo. Segui-lO é viver como Ele viveu!"
A reflexão é de Marta Maria Godoy, osb, monja beneditina, eremita urbana. Ela possui formação inicial em Letras e Sociologia (graduada e pós-graduada), mestrado em Teologia pela EST (S. Leopoldo, RS). Atua na Pastoral Carcerária do RS.
1ª leitura: At 2,42-47
Salmo: Sl 117(118) 2-4.13-15.22-24 (R. 1)
2ª leitura: 1Pe 1,3-9
Evangelho: Jo 20,19-31
É uma grande alegria estar aqui partilhando com vocês uma pequena reflexão sobre os textos bíblicos que iluminam esta segunda semana pascal, ainda, claro, vivendo a Alegria maior - a reafirmação da ressurreição - através da memória vivida por nós no domingo que passou, em uma celebração repleta de poesia e sonho - o sonho de Deus para nós: a morte é vencida!
Nos domingos depois da Páscoa, a liturgia nos põe em contato com a primeira comunidade cristã. Assim, no “alongamento” desde 2º Domingo, a liturgia nos proporciona vivenciar os acontecimentos imediatamente pós-ressurreição, em que vemos Jesus vindo ao encontro de suas discípulas e seus discípulos: esse povo é mencionado como “reunido”, por duas vezes, conforme o texto do Evangelho, o que nos ajuda a construir com uma plasticidade impressionante como Jesus se faz companhia na vida dos discípulos de então e conosco hoje, inclusive na construção de uma liturgia de espera e realização.
A primeira leitura nos apresenta o ideal da comunidade cristã: a comunidade primitiva dos cristãos de Jerusalém, em que é enfatizada especialmente a comunhão dos bens. Aqui vemos a força do testemunho: essa comunhão tão profunda, bem como os prodígios operados pelas apóstolas e os apóstolos posteriormente, serviam de testemunho para os demais habitantes de Jerusalém, testemunho diretamente ligado à vida, e que certamente teve sua eficácia assegurada. Essa leitura é, portanto, mais do que um documento histórico sobre os primeiros tempos depois da Páscoa: é convite para nos perguntar-nos acerca de como estamos vivendo a nossa fé cristã, que tem, em sua composição basicamente a partilha do que temos (incluindo do que somos) e não somente do que nos sobra. Aí se encontra um dos grandes diferenciais da Boa Nova, não só que Jesus trouxe, mas que Ele mesmo era!
A segunda leitura é uma espécie de homilia batismal, conforme a tônica pascal. A construção da esperança se desenha nesta leitura, na qual se vê uma nova configuração nas relações entre Deus e as pessoas, com acento especial para o olhar sempre misericordioso de Deus em nossa direção. Por isso, também o salmo de resposta (117/118) desse domingo é uma exaltação à misericórdia de Deus, dizendo que ela é eterna! A dimensão escatológica dessa leitura nos conduz, igualmente, a estar em comunhão com toda a criação no rumo de Jesus Cristo agora ressuscitado e amalgamado a tudo o que existe.
Evangelho (Jo 20,19-31)
A riqueza desse Evangelho nos convida a muitas reflexões. Vou ficar, contudo, na questão do testemunho e das supostas “provas” para crer. Em geral muitas e muitos gostam de ter provas palpáveis para acreditar. Mas para que acreditar quando se têm provas palpáveis? Qual é, no entanto, a garantia de certeza dessas provas? Nossa fé não vem de provas imediatas, mas da fé das “testemunhas designadas por Deus” (At 10,41), principalmente das apóstolas e dos apóstolos, e de todas e todos nós hoje, quando assumimos uma fé operante e rica em testemunhos!
As mulheres, apóstolas, em paridade com os homens, foram as testemunhas da ressurreição de Jesus. Na verdade, uma mulher foi a primeira. Elas e eles puderam ver o Ressuscitado e por isso acreditaram. Como nos relata o Evangelho, Tomé foi convidado por Jesus a tocar nas chagas das mãos e do lado. E, sendo convidado a verificar, acreditou e disse: “Meu Senhor e meu Deus!” Nós não temos esse privilégio. Cremos sem ter visto (Jo 20,29). Para que isso, porém, seja possível, os apóstolos nos deixaram os Evangelhos, testemunho escrito do que eles viram e da fé no Cristo e Filho de Deus que abraçaram (Jo 20,30-31).
Jesus de Nazaré, o Cristo descrito nos Evangelhos, é visto com os olhos da fé dos apóstolos. Um incrédulo possivelmente o veria diferente. Dessa forma, nós cremos em Jesus como as apóstolas e os apóstolos O viram.
Acreditamos na fé dessas pessoas e da Igreja que nos deixaram. Então, nossa fé não é coisa privada. É apostólica e eclesial, é Igreja em saída e ativa, compromissada com Deus de Jesus Cristo, terno e misericordioso. As primeiras cristãs e os primeiros cristãos se faziam Igreja de forma material: entregavam seus bens para que a Igreja os transformasse em instrumentos do amor do Cristo. Portanto, crer não é somente aceitar verdades. É agir segundo a verdade do ser discípulo e seguidor do Cristo. Segui-lO é viver como Ele viveu!
É inútil querer verificar e provar nossa fé sem passar pelas apóstolas e pelos apóstolos, pela corrente de transmissão que instituíram, a Igreja. É impossível verificar, por evidências fora do âmbito dos Evangelhos, a ressurreição de Cristo. Ora, o importante não é “verificar”, ao modo de Tomé, mas viver o sentido da fé que as apóstolas e os apóstolos (incluindo Tomé) transmitiram. A sua fé exige que creiamos em seu testemunho sobre Jesus morto e ressuscitado e também, e principalmente, que pratiquemos a vida de comunhão sororal e fraterna na comunidade eclesial que brotou da pregação deles (e por que não? delas!), estendendo essa vida em comunhão, inclusive para além dessa comunidade eclesial, instalando-se, ao longo dos tempos, seja através da oração, seja através da presença, no mundo das aflições das e dos que sofrem toda sorte de infortúnios, construindo em todos nós as bases para sermos instrumentos da misericórdia de Deus.
Num tempo de grande individualismo, como é o nosso, essa consciência de acreditarmos naquilo que as apóstolas e os apóstolos acreditaram é imprescindível. Delas e deles re-cebemos a fé e, na comunidade que eles fundaram - a Igreja - nós a vivemos. Ora, por isso mesmo é tão importante que essa comunidade, por todo o seu modo de viver o legado do Ressuscitado, seja digna de fé.
Que neste Domingo da Misericórdia, nosso coração possa se tornar “de carne” para refletir mais e mais a misericórdia do Pai, em direção às e aos que nada têm, que passam fome de tudo, que são execradas e execrados, desprezadas e desprezados nos cárceres, feridas e feridos, assassinadas e assassinados.
Que sejamos esperança! Amém.