A ingovernabilidade do capitalismo 4.0. Artigo de Alejandro Galliano

Foto: Vertigo | Canva Pro

10 Fevereiro 2025

"Talvez a maior lição maoísta que o Ocidente possa extrair seja que a engenharia do caos prepare o caminho para um capitalismo 4.0 ordenado. E é difícil não pensar que a democracia liberal hoje seja vista como uma dessas instituições e práticas tradicionais que podem obstruir o fluxo de capital", escreve Alejandro Galliano, professor da Universidad de Buenos Aires (UBA), em artigo publicado por Nueva Sociedad, janeiro/fevereiro de 2025.

Eis o artigo.

Em tempos recentes, as sociedades ocidentais compartilham a sensação de estar atravessando dois processos simultâneos: por um lado, uma aceleração tecnológica e econômica; e por outro, uma crise dos valores e das instituições políticas da democracia liberal, dominantes durante os últimos 40 anos. Para muitos analistas, é irresistível vincular ambos os processos: ou as novas tecnologias corroem a capacidade de governança das instituições democrático-liberais, ou esse sistema político, que o Ocidente consagrou no pós-guerra e tentou globalizar com relativo sucesso, tornou-se obsoleto diante das mudanças tecnológicas e econômicas que já não consegue conter. No entanto, seria conveniente não se deixar deslumbrar pela novidade da aceleração. Em 1886, Werner von Siemens dizia: "Esta lei, claramente reconhecível, é a da aceleração constante do atual desenvolvimento da nossa civilização" [1]. É mais, poderia-se narrar toda a história do capitalismo como a das sucessivas crises de ingovernabilidade que a disrupção técnica e econômica gera, e as novas formas de governabilidade que essas mesmas tecnologias tornam possíveis.

Em 2001, no contexto da crise das pontocom, o coletivo anarquista Tiqqun publicou "A hipótese cibernética". Nele, sustenta-se que:

A relação entre capitalismo e cibernética se inverteu ao longo do século: enquanto que, após a crise de 1929, foi construído um sistema de informações sobre a atividade econômica para servir à regulação – esse foi o objetivo de todos os planejamentos –, a economia, após a crise de 1973, faz descansar o processo de autorregulação social sobre a valorização da informação (...). O problema da cibernética não é mais o da previsão do futuro, mas sim o da reprodução do presente. Já não se trata de uma ordem estática, mas sim de uma dinâmica de autoorganização. O indivíduo já não é legitimado por nenhum poder: seu conhecimento do mundo é imperfeito, seus desejos lhe são desconhecidos, ele é opaco para si mesmo [2].

Tiqqun se dissolveu pouco depois do atentado contra as Torres Gêmeas. Seus herdeiros, do Comitê Invisível, chamaram a atenção do Buró Federal de Investigação (FBI) e, mais tarde, ficaram envolvidos em um sabotagem ferroviária na França que resultou em prisões e nove processos criminais [3]. Suas ideias têm um antecedente, citado explicitamente: o Manual de sobrevivência, publicado por Giorgio Cesarano em 1974. Nele, diz-se:

O capital quer se tornar nada mais nada menos que o gestor cibernético e quantificador do "Outro", o caldo de cultivo das "comunas" autoanalíticas, onde cada um autogestione sua própria reestruturação descentralizada (se transforme em uma "terminal biológica" do computador que o minimiza estatisticamente…) [4].

Próximo ao operaísmo italiano e herdeiro tanto do marxismo quanto do vitalismo irracionalista fascista, Cesarano participou da reflexão que seguiu ao refluxo de 1968, e na crise do Estado de Bem-Estar viu uma nova forma de governança capitalista.

Meio século antes de Cesarano, no alvorecer do fordismo e no meio da inquietante paz que se estendeu entre as duas guerras mundiais, o jornalista e funcionário estadunidense Walter Lippmann observou que o ambiente tecnológico e informacional estava evoluindo a uma velocidade maior que a espécie humana e sua capacidade de se adaptar: "A sociedade moderna não é visível para ninguém nem inteligível de forma contínua como um todo (...). Já é suficientemente ruim hoje (...) estar condenado a viver sob um bombardeio de informações ecléticas". Ele propôs usar esse mesmo parque infotécnico para "fabricar consenso" por meio da propaganda de um governo dirigido por especialistas [5].

E um século antes de Lippmann, o médico e geólogo escocês Andrew Ure publicou The Philosophy of Manufactures [A Filosofia das Manufacturas], onde concebia a fábrica como um autômato, e a mecanização, como uma via de disciplinamento humano por uma força autorregulada:

"Por causa da fraqueza da natureza humana, acontece que quanto mais hábil é o trabalhador, mais obstinado e intratável tende a se tornar e, claro, menos apto como componente de um sistema mecânico. O grande objetivo, portanto, do fabricante moderno é, por meio da união do capital e da ciência, reduzir a tarefa de seus trabalhadores ao exercício da vigilância e da destreza." [6]

A aparente crise de governabilidade que marca nosso presente é outro capítulo da dialética entre um fluxo tecnoeconômico [7] que abala e eventualmente derruba as instituições e valores existentes para governar a sociedade, e os novos mecanismos de governo que esse fluxo tecnoeconômico torna eventualmente possíveis. Um resumo esquemático dessa dinâmica nos permitiria situar melhor nossa época e tentar vislumbrar as possíveis saídas.

Quatro versões do software capitalista

A fim de evitar caracterizações opacas como "neoliberalismo", "fordismo", "capitalismo manchesteriano" e um longo etc., optarei por periodizar cada fase e transformação do capitalismo como versões de um mesmo software. A metáfora é inspirada no já esquecido conceito de "indústria 4.0" proposto por Wolfgang Wahlster, diretor do Centro de Pesquisas de Inteligência Artificial da Alemanha, durante a Feira de Hannover de 2011. E se fundamenta no fato de que qualquer sistema econômico é um conjunto de procedimentos para circular matéria, energia e informação (o que comumente chamamos de "riqueza"), ou seja, um software, que deve ser instalado em um hardware: um ambiente mais estável de instituições, recursos, territórios, etc. Assim, o capitalismo é um software que deve desenvolver diferentes versões para enfrentar as sucessivas crises que gera sua própria disrupção.

O capitalismo 1.0 corresponde ao período da chamada "Revolução Industrial", que se estendeu durante a primeira metade do século XIX, quando os fluxos mercantis que se vinham desenvolvendo desde o século XVII se consolidaram em torno de um paradigma tecnológico (a máquina a vapor e, por extensão, a termodinâmica) e um modelo de negócios (a empresa capitalista conduzida por seu proprietário). A crise de governabilidade do capitalismo 1.0 torna-se evidente se observarmos que nasceu em um ambiente conflituoso (as guerras e revoluções que se sucederam de 1756 a 1815) e os traços de seu desenvolvimento acelerado (a mecanização da produção, a globalização do comércio e a proletarização do trabalho) alteraram a estrutura arraigada das sociedades que ia incorporando em suas redes. Este é o problema que atacaram tanto Andrew Ure como Charles Babbage, Henri de Saint-Simon, Karl Marx e John Stuart Mill, entre outros, todos interessados em governar, de uma forma ou de outra, a nova sociedade emergente com suas próprias ferramentas, mas governá-la no fim das contas.

Para meados do século, um conjunto básico de instituições (o padrão ouro, a hegemonia britânica e as sucessivas "leis dos pobres") ordenaram a aceleração do capitalismo 1.0. Mas, a médio prazo, essa mesma aceleração levou a uma saturação da oferta, que resultou na grande depressão do final do século XIX. Dessas crises, e dos diferentes experimentos políticos e empresariais pensados para superá-las, surgiu o capitalismo 2.0, caracterizado por um novo e mais complexo paradigma tecnológico (a eletricidade, a motorização e a produção em série) e um tecido institucional mais robusto (Estados intervencionistas, grandes sociedades empresariais oligopolistas). Sob o capitalismo 2.0, as empresas se transnacionalizaram, e o consumo e o trabalho se massificaram.

A nova escala do capitalismo 2.0 tornou obsoleta a hegemonia britânica para garantir uma ordem global e produziu tensões entre as nações e dentro das sociedades que resultaram na grande crise de 1914-1945 (guerras, revoluções, quebras financeiras). Essa crise de governabilidade foi resolvida apenas durante a Segunda Guerra Mundial com a consolidação dos Estados Unidos dentro de um sistema aparentemente bipolar (desde a década de 1960, a União Soviética estava economicamente e tecnologicamente atrás, e militarmente na defensiva).

As preocupações de Lippmann e John Maynard Keynes sobre a viabilidade de um sistema de tal escala encontraram eco no complexo tecido de instituições públicas nacionais e internacionais montado em Bretton Woods com o objetivo de garantir a governança nacional e global do capitalismo 2.0. Mas, tal peso institucional não conseguiu evitar que a ordem fosse cedendo nas bordas: desde o final da década de 1960, a periferia do mundo começou a resistir à hegemonia dos Estados Unidos, a disciplina laboral começou a se ressentir nas grandes plantas industriais e os novos atores da sociedade de massas (estudantes, trabalhadoras, aposentados) começaram a reclamar maiores benefícios. O peso fiscal das instituições que tentavam atender a esses conflitos por meio da intervenção militar (warfare state) ou da compensação econômica (welfare state) tornou-se intolerável para o capital, que aproveitou suas redes transnacionais para se evadir de qualquer regulação estatal. Foi uma crise de governabilidade da periferia, do trabalho e do capital.

A saída que o capital encontrou para essa crise deu origem ao capitalismo 3.0, baseado em um novo modelo de negócios: a empresa conectada a fluxos financeiros globais e adaptada a ciclos de negócios curtos por meio da terceirização, offshoring e mercantilização crescente de áreas inteiras da sensibilidade humana, desde o lazer com o turismo até a imaginação com a publicidade. De alguma forma, consagrou-se a "cibernética" que Cesarano denunciou nos anos 70 e que Tiqqun viu crescer no final do século XX. Ao redor desse modelo de negócios, desenvolveram-se novas tecnologias (a microeletrônica, a informática, os organismos geneticamente modificados), novas instituições internacionais ou velhas instituições adaptadas ao novo sistema financeiro global (a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, o Sistema da Reserva Federal, a Bolsa de Valores de Nova York).

Os sistemas fiscais nacionais também se reconverteram: deixaram de distribuir a riqueza para baixo, a fim de estimular a demanda agregada, e começaram a fazê-lo para cima, cortando gastos sociais para reduzir impostos sobre o capital e estimular o investimento. Também se manteve a velha hegemonia dos Estados Unidos, atingida pela crise dos anos 70, mas revitalizada pelo colapso do bloco comunista no final dos anos 80. Tratava-se de um sistema extremamente frágil e instável, que no início do século XXI se sustentava em redes financeiras tão aceleradas quanto volúveis e um endividamento sistemático dos Estados, indivíduos e empresas.

A crise de 2008 veio para derrubar o capitalismo 3.0. O capitalismo 4.0 é o que está nascendo dessa crise, que já vai para sua segunda década. Seria fácil citar a suposta afirmação do líder chinês Zhou Enlai com aquilo de que "é muito cedo para opinar" (em referência à Revolução Francesa), mas a crise de governabilidade global é tão evidente que não podemos suspender os julgamentos até que a coruja de Minerva abra suas asas. Qualquer análise histórica de um presente que se precipita para o futuro corre o risco de se tornar obsoleta, mas, mesmo assim, vale a pena tentar.

O paradigma tecnológico de nossa época parece se acomodar em torno da chamada "inteligência artificial" (IA), na verdade, o aprendizado de máquinas em redes focadas em funções específicas. A IA vem para expandir um sistema ciberfísico já em curso, de crescente integração de objetos e pessoas com a web por meio de plataformas. A difusão e adoção, muitas vezes experimental, da IA em diferentes modelos de negócios altera tanto as formas das empresas (que podem prescindir cada vez mais de ativos graças à digitalização e a um sistema de financiamento nos fluxos financeiros globais), como a produção, o consumo e, finalmente, a subjetividade. Essas microeconomias e modelos de negócios são possíveis por uma infraestrutura física de escala quase planetária composta por cabos submarinos, centros de dados, satélites, antenas, servidores, etc., e uma disputa aberta em torno da hegemonia que governará este capital global. Essas são as bases da atual crise de governabilidade.

Da precarização à pós-normalidade

Para caracterizar sumariamente a ingovernabilidade do capitalismo 4.0, vou delimitar duas tendências que considero nodais, embora de nenhuma maneira esgotem as características do sistema: a precarização global e a deriva da web. São duas denominações arbitrárias, comecemos pela primeira. Precarização é um conceito normativo porque supõe o deterioro de uma condição normal (seja o trabalho formal, o melhoramento das condições materiais, a previsibilidade de certos processos na vida das pessoas, etc.). Denunciar uma "precarização" muito disseminada no tempo ou dentro da sociedade implica assumir que essa "condição normal" está deixando de ser.

Atualmente, o deterioro da "normalidade" é impulsionado por dois fatores estruturais e globais. O primeiro fator é a crise climática, um fenômeno difícil de datar e que está longe de ser novo, mas cujos efeitos (inundações, secas, variações térmicas atípicas, redução da biodiversidade) já fazem parte dos cálculos e considerações de governos e empresas. Também há uma consciência generalizada de que não se trata de fenômenos naturais, mas da irrupção de forças planetárias em que se entrelaçam processos naturais com fatores artificiais ou humanos: emissões de dióxido de carbono, epidemias sintetizadas pelo tráfego global, pântanos soterrados que inundam cidades. É evidente que esses processos precarizam a existência humana ao racharem o suporte material de nossa civilização e de nossas vidas individuais: uma nova inundação ou incêndio florestal desloca populações inteiras, uma nova variação de vírus pode se transformar em uma epidemia, etc.

O segundo fator é a digitalidade como paradigma tecnoeconômico, do qual o aprendizado automático por redes é apenas uma parte. A difusão e aplicação dessas tecnologias a diferentes modelos de negócios e seu impacto na economia já foram bastante estudados [8]: a empresa se encolhe em startups, os ciclos de negócios se encurtam, as intermediações (logística, comercialização) são puladas, mais empregos são destruídos do que criados e os novos trabalhadores são desassalariados. É a famosa "disrupção" que, além de seus ecos schumpeterianos e seu viés ideológico, descreve uma dinâmica de instabilidade e precarização.

Já na década de 1990, os epistemólogos Silvio Funtowicz e Jerome Ravetz falaram da "era pós-normal" ou "pós-normalidade" para designar uma escala de problemas que escapam aos parâmetros da ciência normal e à abordagem dos especialistas [9]. À medida que a precarização se universaliza montada sobre dois fenômenos estruturais, globais e de tendência crescente como a crise climática e a disrupção tecnológica, o problema epistemológico que Funtowicz e Ravetz diagnosticaram há mais de 30 anos se transforma em um problema global: a voz dos especialistas se deteriora, a incerteza dá lugar à pura e simples ignorância, os dados se tornam maleáveis e os valores sociais se tornam rígidos. Pudemos ver isso em 2020 nos debates sobre o isolamento social e a vacinação obrigatória, já havíamos visto anteriormente nos debates sobre a crise climática, e parece que veremos isso com cada vez mais frequência em qualquer tema supostamente consensuado durante os anos de hegemonia democrática liberal. Para Ravetz e Funtowicz, essa ingovernabilidade responde à contradição principal da modernidade: queremos viver melhor e temos os meios técnicos para isso, mas desconhecemos o impacto material desses meios. Isso nos leva ao segundo fator de ingovernabilidade.

Uma rápida e canônica história da internet começa em 1969, quando duas universidades da Costa Oeste norte-americana conseguiram conectar seus computadores para se comunicar no âmbito do programa Arpanet, desenvolvido pelo Departamento de Defesa durante a Guerra Fria. Vinte anos depois, em um contexto de distensão geopolítica e maior acessibilidade das tecnologias, Tim Berners-Lee criou uma série de protocolos e linguagens que conectavam essas informações em uma teia de hipertextos, a web. Se em 1969 o Arpanet havia descoberto um mundo imaterial, em 1990 a web traçou as ruas e sinais de trânsito que nos permitiriam passear por ele de forma tranquila e segura. Berners-Lee estava totalmente consciente do sentido político de sua inovação: tornar a internet acessível a todos. A partir de 2001, após a crise das "dotcoms", com a consequente concentração do setor digital em um punhado de big techs, e no meio da virada securitária após o atentado contra as Torres Gêmeas, começou a surgir a web 2.0: redes sociais e plataformas que já não compartilham seus dados com a web e retêm o usuário [10] dentro delas por meio de uma série de gadgets e funcionalidades internas. Aqui predomina o chamado design centrado no usuário, o feedback constante da experiência dos usuários com as interfaces digitais. Foi a primeira deriva da web: se Berners-Lee fez da internet uma cidade, as plataformas são bairros privados que exploram recursos públicos sem contribuir para seu desenvolvimento.

Desde então, se acumularam análises de diferentes tons e qualidades que falam sobre o deterioramento da web como espaço de troca e seu impacto sobre os usuários como um novo sujeito social. Desde a "enshittification" (decadência das plataformas) (Cory Doctorow), a "silicolonização do mundo" (Éric Sadin) e o "capitalismo de vigilância" (Shoshana Zuboff), até abordagens mais complexas e atraentes como o "tecnofeudalismo" (Cédric Durand), o "tecnoceno" (Flavia Costa) ou o "nanofundismo" (Agustín Berti) [11]. A priori, todas essas análises se concentram na capacidade de controle social das novas tecnologias. Existe um ecossistema digital envolvente que permite capturar dados de cada um de nós, fundi-los em um montão estatístico e devolvê-los a um indivíduo redefinido como perfil de targeting, que vai desde um potencial cliente até um possível terrorista. O volume de informação extraída dos usuários da internet e processada permite cruzar e escalar os antigos dados biométricos com os novos dados comportamentais registrados pela digitalidade. O resultado é um sujeito plano e transparente, do qual é mais importante prever o comportamento do que compreender os motivos.

No entanto, seria um erro considerar o novo sujeito como argila dócil nas mãos do algoritmo. A web 2.0 é um recipiente de sites e programas formatado por seus usuários, que foram projetando plataformas e aplicativos, e transformando uma rede pensada para o intercâmbio e compartilhamento de agradáveis sujeitos neoliberais em um espaço de reafirmação identitária e cultivo de seguidores [12]. O mesmo pode ser dito sobre muitas redes sociais, videogames, etc. Foi substituída uma lógica de comunicação massiva e industrial (poucos meios de comunicação produzindo informações homogêneas para muitos usuários) pela horizontalização da rede: todos os usuários produzindo informações personalizadas para pequenos grupos. O feedback dentro desse ecossistema derivou em uma conectividade cada vez menos orientada ao intercâmbio e mais voltada à reafirmação de um "eu" tribal e emocional, sobrecarregado de informações polêmicas que não consegue absorver. Tem que escolher, além de qualquer evidência. E no exercício dessa liberdade não racional rompe qualquer previsibilidade e ordenamento coletivo. O mesmo ecossistema tecnológico que nos tornou transparentes para um algoritmo nos tornou opacos para nós mesmos.

Vários analistas incorporam esse ambiente tecnológico como um fator da ingovernabilidade atual. Para William Davies, a sobrecarga informativa não só desautorizou as vozes de especialistas com um fluxo de dados tão precisos quanto variáveis, mas também permitiu "personalizar" a verdade. No século XXI, a autoridade dos dados deixou de ser um sol que brilha para todos e passou a ser um conjunto de estrelas cadentes ao redor de cada um [13]. Para Martin Gurri, em algum momento do século XXI as novas tecnologias deram voz a um público massivo, que abandonou o papel passivo ao qual havia sido reduzido durante aquele século pelo mainstream das instituições autorizadas e concentradas, que Gurri chama de "Centro". Agora esse público se organiza em seitas de opinião marginais, que o autor chama de "Fronteira": "O resultado é uma paralisia por desconfiança. Já está claro que a Fronteira pode neutralizar o Centro, mas não substituí-lo. As redes podem protestar e derrubar, mas não governar. A inércia burocrática confronta o niilismo digital. A soma é zero [14]."

As análises de Davies e Gurri, embora relativamente recentes, ainda tomam como base a já antiga web 2.0. Hoje entramos em uma terceira deriva desse ambiente digital. A IA não faz mais do que extremar as tendências sociais da web 2.0. Trata-se de uma tecnologia – o aprendizado automático por redes – que vem sendo desenvolvida desde 1943, mas que passou por um "inverno" de desinvestimento durante as décadas de 1970 e 1980, quando se espalhou a desconfiança em replicar o funcionamento neuronal com eletrodos. O desenvolvimento da web nos anos 90 forneceu a essas redes um volume de dados até então inacessível, e assim retornou a "primavera" da IA. Em 2012, uma equipe liderada por Geoffrey Hinton e associada ao Google apresentou uma rede neural artificial capaz de reconhecer objetos com 70% mais precisão do que outras redes. Nascia o "aprendizado profundo": o processamento paralelo por várias redes neurais e o treinamento dos algoritmos por retropropagação em direção a um objetivo específico. O design centrado no usuário segue sendo fundamental: "Não vamos compreender plenamente o potencial e os riscos sem que os usuários individuais realmente brinquem com ela", diz Alison Smith, responsável pela IA da consultoria Booz Allen Hamilton [15]. Essa nova primavera da IA se alimenta dos dados e conteúdos que brotam do seio da web. Os preconceitos e estereótipos, a desinformação deliberada, a violação dos direitos autorais e a agressividade fazem parte dos nutrientes que ela assimila.

Se até 10 anos atrás a cidadela da internet se preocupava com a pirataria, o discurso de ódio e as teorias da conspiração que assolavam subúrbios como o 4chan ou o Megaupload, agora esse material emana dos prédios do centro: Google, Microsoft, Meta, Amazon, Alibaba, Baidu e Tencent. Todos embarcaram em uma corrida para desenvolver uma tecnologia que amplificasse uma única entrada: nós mesmos, a irracionalidade humana. Se a web estava ligada desde o início ao substrato irracional da humanidade, a IA digere essa internet para dar origem a algo humano, demasiado humano. E ingovernável.

 

"China ou o caos": em busca de uma governança 4.0

Gurri considera que essa nova ingovernabilidade pode levar tanto ao "caos quanto à China". A dicotomia é pertinente. De um lado, estão aquelas projeções que se concentram no novo paradigma tecnoeconômico como mecanismo de controle e veem a China como um laboratório replicável no Ocidente. Um ecossistema digital semicerrado, com aplicativos nativos (Baidu, Weibo, TikTok), centros de dados próprios, empresários vorazes e uma quantidade imensa de dados que ficam dentro do mesmo ecossistema, gerido por um Estado com menos barreiras legais para intervir nesse ecossistema e na vida dos seus usuários [16].

Se a China conseguiu desenvolver seu próprio ecossistema digital, outros também tentarão. Ainda mais quando há novas fronteiras a serem conquistadas: a inteligência artificial e a computação quântica, entre outras. A desglobalização que caracteriza o capitalismo 4.0, com seu reshoring e disputas pela hegemonia, também pode se estender à web. Esse modelo de governança fechado e desglobalizado pode permitir que ressurjam certo grau de diversidade tecnológica e cultural, após meio século de homogeneização global das tecnologias e consumos [17]. Mas também pode apresentar problemas de governança mundial, ao fragmentar o capitalismo 4.0 em blocos competitivos entre si, sem uma hegemonia clara que os regule.

Por outro lado, existe a opção caótica: transformar a ingovernabilidade em uma governança por si só. Um dos ensaios mais vendidos sobre isso é Os engenheiros do caos, do consultor ítalo-suíço Giuliano da Empoli. Essencialmente descritivo e consideravelmente superficial em suas conceituações, o livro aborda vários "engenheiros do caos" (Gianroberto Casaleggio [18], Dominic Cummings [19], Steve Bannon [20], Milo Yiannopoulos [21]), consultores políticos ou especialistas em marketing que entenderam que, na opinião pública digital e na nova política, "o jogo já não consiste em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, pelo contrário, em inflamar as paixões de tantos grupos quanto possível e depois somá-los, até mesmo aos predeterminados. Para obter uma maioria, não irão convergir para o centro, mas se unirão aos extremos". Mais uma vez, o ambiente digital é determinante para essa engenharia do caos:

Esses engenheiros do caos estão no caminho de reinventar a propaganda adaptada à era dos selfies e das redes sociais e, como consequência, transformar a própria natureza do jogo democrático. Sua ação é a tradução política do Facebook e Google. É naturalmente populista, porque, assim como as redes sociais, não admite qualquer tipo de mediação e coloca todos no mesmo plano [22].

Aqui também é preciso não exagerar na novidade: já em 1942, Franz Neumann considerava que a estrutura e a prática de poder do regime nacionalsocialista alemão eram essencialmente caóticas. Se a proposta é governar por meio do caos, inflamar as paixões e destruir as mediações, também temos um modelo oriental: a Grande Revolução Cultural Proletária chinesa, proclamada e conduzida por Mao Zedong entre 1966 e 1976, uma mobilização exaltada de juventudes e milícias não apenas contra os restos da cultura burguesa (o Partido Comunista Chinês estava no poder desde 1949), mas contra qualquer forma de autoridade (a família, os professores, os especialistas e intelectuais) e, especialmente, contra os próprios líderes do Partido, suspeitos de querer burocratizar a revolução como o "revisionismo" soviético posterior a Stalin. No centro dessa espiral de caos, o próprio Mao reforçava seu poder e liderança pessoal. Dentro dos modestos limites materiais da República Popular da China, o maoísmo também explorou seu ambiente tecnológico: o governo instalou um sistema de alto-falantes nos telhados de cada prédio de apartamentos, nas escolas rurais e nas bases militares, transmitindo a rádio estatal em alto volume desde as 6 da manhã [23].

Como modelo para o Ocidente, a engenharia do caos maoísta não tem muito a oferecer: extinguiu-se no próprio apetite de destruição, colapsou economicamente a nação e não conseguiu evitar a efetiva burocratização da liderança comunista.

No entanto, para o cientista político Roland Lew, o maoísmo, involuntariamente, lançou as bases para o posterior desenvolvimento acelerado do capitalismo na China: destruiu grande parte das instituições tradicionais que poderiam obstruir o fluxo de capital e disciplinou tanto a sociedade quanto a liderança comunista para a sobrevivência e flexibilidade diante da constante instabilidade. Enquanto a Rússia saltou de um comunismo planejado para um capitalismo caótico, a China conseguiu transitar de um comunismo caótico para um capitalismo planejado. Talvez a maior lição maoísta que o Ocidente possa extrair seja que a engenharia do caos prepare o caminho para um capitalismo 4.0 ordenado. E é difícil não pensar que a democracia liberal hoje seja vista como uma dessas instituições e práticas tradicionais que podem obstruir o fluxo de capital.

Notas

[1] Cit. en Reinhart Koselleck: Aceleración, prognosis y secularización, Pre-Textos, Valencia, 2003, p. 39.

[2] Tiqqun: La hipótesis cibernética, varias ediciones, 2015, p. 23.

[3] Cyril Castelliti y Pierre Gautheron: "L’ombre du Comité invisible plane sur la jeunesse radicale en Street Press", 9/5/2017.

[4] G. Cesarano: Manual de supervivencia, La Cebra / Kaxilda, Donostia-Adrogué, 2023, p. 66.

[5] Barbara Stiegler: Hay que adaptarse. Tras un nuevo imperativo político, La Cebra, Adrogué, 2023.

[6] A. Ure: The Philosophy of Manufactures: Or, An Exposition of the Scientific, Moral, and Commercial Economy of the Factory System of Great Britain [1835], B. Franklin, Nueva York, 1969.

[7] O conceito de "fluxo tecnoeconômico" refere-se "ao modelo de 'produção indireta' de Böhm-Bawerk, no qual a poupança e a tecnicidade eram integradas em um processo social único (o desvio de recursos do consumo imediato para a melhoria do aparelho produtivo). Como consequência disso, a tecnologia e a economia, enquanto componentes fundamentais do capital, apresentam um caráter distintivo formal e específico sob as condições históricas da escalada capitalista. Essa dinâmica, indissociavelmente combinada, é tecnoeconômica.". Nick Land: Teleoplexia: ensayos sobre aceleracionismo y horror, Holobionte, Madrid, 2021, p. 27 (traducción modificada).

8] Solo por citar un pequeño número de libros y artículos representativos: Daron Acemoglu y David Autor: "Skills, Tasks and Technologies: Implications for Employment and Earnings", nber Working Paper No 16082, 6/2010; Carl Benedikt Frey y Michael A. Osborne: "The Future of Employment: How Susceptible Are Jobs to Computerisation?" en Technological Forecasting and Social Change vol. 114, 2017; Loukas Karabarbounis y Brent Neiman: "The Global Decline of the Labor Share" en The Quarterly Journal of Economics vol. 129 No 1, 2014; Andrew McAfee y Erik Brynjolfsson: Machine, Platform, Crowd: Harnessing Our Digital Future, W.W. Norton & Co, Nueva York, 2017; Nick Srnicek: Capitalismo de plataformas, Caja Negra, Buenos Aires, 2018.

[9] S.O. Funtowicz y J.R. Ravetz: "Science for the Post-Normal Age" en Futures vol. 25 No 7, 1993.

[10] Donald A. Norman y Stephen Draper (eds.): User Centered System Design: New Perspectives on Human/Computer Interaction, Lawrence Erlbaum Associates, Hillsdale, 1986.

[11] C. Doctorow: "‘Enshittification’ Is Coming for Absolutely Everything" en The Financial Times, 8/2/2024; É. Sadin: La silicolonización del mundo. La irresistible expansión del liberalismo digital, Caja Negra, Buenos Aires, 2018; S. Zuboff: La era del capitalismo de la vigilancia. La lucha por un futuro humano frente a las nuevas fronteras del poder, Paidós, Barcelona, 2020; C. Durand: Tecnofeudalismo. Crítica de la economía digital, La Cebra / Kaxilda, Adrogué-Donostia, 2021; F. Costa: Tecnoceno. Algoritmos, biohackers y nuevas formas de vida, Penguin Random House, Buenos Aires, 2021; A. Berti: Nanofundios. Crítica de la cultura algorítmica, La Cebra, Adrogué, 2022.

[12] El término proviene de la palabra inglesa farm, que significa "cultivar" [n. del e.].

[13] W. Davies: Estados nerviosos. Cómo las emociones se han adueñado de la sociedad, Sexto Piso, Madrid, 2019.

[14] M. Gurri: La rebelión del público. La crisis de la autoridad en el nuevo milenio, Adriana Hidalgo, Buenos Aires, 2023.

[15] Will D. Heaven: "These Six Questions Will Dictate the Future of Generative ai" en MIT Technology Review, 19/12/2023.

16] Simone Pieranni: Espejo rojo. Nuestro futuro se escribe en China, Edhasa, Buenos Aires, 2021 y Kai-Fu Lee: Superpotencias de la inteligencia artificial, Deusto, Barcelona, 2020.

[17] Yuk Hui: Fragmentar el futuro. Ensayos sobre tecnodiversidad, Caja Negra, Buenos Aires, 2020.

[18] Emprendedor y especialista en comunicación italiano, fue cofundador del Movimiento 5 Estrellas. Falleció en 2016.

[19] Estratega político británico, consejero jefe del primer ministro del Reino Unido Boris Johnson (2019-2022).

[20] Estratega político, ex-asesor de Donald Trump y publicista de las nuevas derechas radicales.

[21] Influencer y polemista británico gay de extrema derecha, hoy en declive.

[22] G. Da Empoli: Los ingenieros del caos, Oberon, Madrid, 2020.

[23] Ying Zhu: Dos mil millones de ojos. La historia de la Televisión Central de China, Eudeba, Buenos Aires, 2015.

[24] R. Lew: "¿Cómo alcanzó China su sorprendente solidez?" en Le Monde diplomatique edición Cono Sur, 10/2004.

Leia mais