05 Fevereiro 2025
“Tão próximos de nós nunca havia estado o Senhor, já que nunca havíamos estado tão inseguros”[18], confessou o então todo-poderoso Superior Geral da maior ordem masculina da Igreja. Pedro Arrupe não temia as tensões e para permitir ao Corpo Apostólico que lhe estava confiado atualizar sua missão, convocou e conduziu a icônica 32ª Congregação Geral, que em 2025 completa 50 anos. No seu tão relembrado e citado Decreto 4 definiu que “a missão da Companhia de Jesus, hoje, é o serviço da fé, do qual a promoção da justiça constitui uma exigência absoluta”. Um documento sob o qual se deveria voltar com mais frequência.
Neste dia 5 de fevereiro (1991) se faz memória deste jesuíta que marcou indelevelmente a história da Companhia de Jesus e da Igreja.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
As notícias que chegam dos Estados Unidos são terrivelmente assustadoras. O novo presidente da ainda maior economia do mundo começa a cumprir suas cruéis ameaças, tais como a deportação em massa de imigrantes e o corte de ajuda humanitária, a desastrosa guerra comercial contra inúmeros países, inclusive antigos aliados e a saída isolacionista da convenção mundial do clima e de organismos multilaterais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS). A extrema-direita avança na Europa, com o crescimento perigoso dos partidos neonazistas na Alemanha e na Áustria. Gaza foi completamente destruída em um covarde massacre promovido pelo governo insano de Netanyahu. Um tresloucado e ultraliberal Milei parece fazer a Argentina retroceder em décadas nos avanços dos direitos humanos.
As vertiginosas mudanças epocais colocam em xeque os próprios alicerces da crença religiosa. E “quando a sua forma habitual de fé está morrendo, os crentes por vezes experimentam uma escuridão da Sexta-Feira Santa, uma sensação de que Deus os abandonou”[1], lembra o teólogo checo Tomás Halík. Paradoxalmente, o instinto é aferrar-se, às vezes até irracionalmente, no conhecido, no seguro, na tradição. Pedro Arrupe (1907-1991) parece ter vivido em um momento turbulento parecido, de guerras e paz, com aberturas e fechamentos, sonhos e desilusões. Um homem de profunda fé e compromisso com a humanidade, seu testemunho pode ser luminoso para essa “escuridão ao meio-dia”[2] que se abate sobre o planeta.
Como bom jesuíta tinha horizontes largos e buscava o bem mais universal (Constituições 258). “Precisamos”, pois, “de uma visão clara dos problemas locais e precisamos assim mesmo enquadrar esses problemas em uma visão universal”. Já como Superior Geral da Companhia de Jesus dirá que estava “convencido de que só essa visão tem realmente futuro”[3].
No mundo globalizado e hiperconectado de hoje, tais palavras confirmam o magistério do Papa Francisco, principalmente com a Laudato Si e a Fratelli Tutti, preocupadas com a crise socioambiental e a destruição da fraternidade humana. Sua contribuição ao Ensino Social da Igreja abre-se à comunhão com as outras Igrejas cristãs, aposta no diálogo inter-religioso e ressoa com força na academia e na sociedade civil secularizada. Na defesa de uma Igreja mais humilde e servidora afirmou o Prepósito Geral:
“A Igreja está no caminho de receber e encontrar fora de si tudo o que é cristão e humano. Poderá seguir adiante valentemente por esse caminho? Não é o acaso o movimento ecumênico um dos resultados mais valiosos da mudança de autocompreensão da Igreja? Esse estar junto com outros e referida a outra proporciona à Igreja uma credibilidade nova, mas também uma nova solidariedade na ação em escala mundial. Limito-me a recordar aqui a atitude comum das Igrejas cristãs no terreno da questão racial ou em sua posição sobre a paz”[4].
A invasão da Ucrânia pela Rússia, incluindo o envio de contingente por parte da Coreia do Norte, está prestes a completar três anos no final deste mês, sem qualquer perspectiva de fim do conflito. Os gastos militares nunca foram tão altos e a iminência de uma escalada atômica, que parecia ter ficado no passado, colocou o mundo à beira de uma Terceira Guerra.
Quão dilacerado ficaria o jesuíta basco ao se defrontar com a destruição e o sofrimento infligido aos palestinos, enquanto a comunidade internacional assiste inerte os frutos do colonialismo impiedoso. Jamais concordaria com o discurso de dominação, assentado na ideologia que sempre considerou a Palestina como “terra nullius para aqueles que vieram se estabelecer nela, e aqueles que lá viviam não tinham nome e eram amorfos”[5]. Também conhecido como o “homem de Hiroshima”, Padre Arrupe foi um defensor do desarmamento nuclear:
“A explosão atômica é um símbolo de nossa época e expressa a esperança e a angústia do ser humano moderno: esperança ante Às possibilidades que oferece o descobrimento de tal energia, como prova que é de que o ser humano é capaz de utilizar indiscriminadamente todos os meios ao seu alcance, para conseguir seus propósitos. Quem pode hoje garantir que alguém no mundo, para conseguir seus fins políticos nacionais, etc., não vá desencadear uma guerra atômica? Dada a experiência humana, não se teria nunca a garantia de que as bombas atômicas não seriam usadas enquanto estejam nos depósitos militares de alguns países. A única garantia segura de seu não-uso será sua não-existência”[6].
Sua voz continua ecoando por meio do papa jesuíta que é um dos poucos líderes mundiais a denunciar sucessivamente os abusivos investimentos armamentistas e a clamar pela paz entre os povos. Tal como o então Padre Geral da Companhia de Jesus que usou sua posição e o espaço que tinha na mídia para defender a não-violência ativa, o pontífice argentino tem pregado a amizade social entre a família humana. E ainda assim, nem mesmo internamente seus ensinamentos vêm sendo acolhidos, com um clero mais preocupado em administrar a sacristia do que curar as feridas do seu rebanho disperso.
Um dos maiores teólogos do século XX, o jesuíta alemão Karl Rahner já ensinava que a essência do amor cristão autêntico “seria falsificada por uma insistência precipitada sobre o indivíduo, pois este só realizará, conforme seus dons e virtualidades, uma pequena parcela do que é o amor, ao passo que ele, o amor, quanto à sua tarefa é força, é ‘político’”[7]. E Arrupe era um entusiasta da “concepção eclesial do Concílio Vaticano II” que “fala claramente de uma Igreja no mundo”[8], que tem uma Boa Nova que liberta.
Por instigar os membros de sua ordem religiosa a saírem rumo às situações opressivas, foi duramente atacado e desafiado pelos que estavam apegados às emboloradas seguranças pessoais e institucionais. “O futuro das ordens religiosas dependerá, em grande medida, de se acertam ou não a explicar e fazer frutificar o carisma recebido na sua fundação”, disse aquele que presidiu por tantos anos a União dos Superiores Gerais (USG), “não para uma Igreja e um mundo de ontem, mas para a Igreja e o mundo de hoje e de amanhã”[9].
Arrupe é tido como um refundador da Companhia de Jesus, exatamente porque foi um profeta de uma Igreja samaritana, em uma destemida aliança com os empobrecidos e humilhados pela violência e desigualdade social. Nesse sentido, dirigiu-se não só para os seus companheiros de ordem, mas também para toda a vida religiosa, lembrando-lhes sobre o risco de perderem a credibilidade e a relevância:
“Corremos o risco de não entender a interpretação evangélica que nos é dirigida pelos homens e mulheres de nosso tempo (CG 32, Dec. 4, n. 35). Nosso modo de viver nos protege da pobreza verdadeira e inclusive nos impede de participar da vida simples e das preocupações ordinárias de nossos contemporâneos. A força de nossas instituições nos impede frequentemente a solidariedade com os homens que levam uma vida difícil e são coletivamente oprimidos. Parece como se nos encontrássemos separados em nossas casas, em nossas obras e instituições e como se seus muros fossem tão grossos que nos impedissem de ouvir o ‘clamor dos pobres’ e muito mais participar, com experiência direta pessoal, das misérias e das dificuldades dos nossos irmãos”[10].
Muitos avanços significativos aconteceram a partir do Concílio Vaticano II, especialmente no tocante às religiosas e aos religiosos. Como não mencionar a histórica Operação Periferia, em que, com a venda do palácio arquiepiscopal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns conclamou a Igreja local a se deslocar para as periferias. Com os recursos obtidos, as pequenas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) puderam adquirir cerca de 1200 terrenos para a construção de centros comunitários. Muitas irmãs deixaram os colégios voltados à elite e à classe média e, atendendo ao chamado do cardeal franciscano, se inseriram nos meios populares. Esse movimento irá fortalecer a resistência contra a ditadura civil-militar que asfixiava o país.
Foi essa kénosis que Pedro Arrupe, SJ ajudou os jesuítas a viverem – que obviamente aconteceu em momentos e intensidades diferentes nas distintas realidades, não sem difíceis tensões – que permitiu o compromisso radical com os excluídos, culminando com o martírio em alguns casos. Entre eles, vale citar o Padre João Bosco Burnier, SJ e o Irmão Vicente Cañas, SJ, no Brasil, e o Padre Rutilio Grande, SJ e o Padre Ignacio Ellacuría, SJ e seus companheiros, em El Salvador.
Os mártires da UCA foram homens que praticaram uma reflexão crítica encarnada na realidade do povo. Eram intelectuais conectados com a luta dos oprimidos e que souberam ler os sinais dos tempos. Foram representantes de uma teologia pública lúcida e assertiva, infelizmente cada vez mais raras nestes dias, como esclarece Halík:
“Considero a kairologia como parte integrante da teologia pública. Por conseguinte, deve se expressar em uma linguagem que seja compreensível para além dos limites da academia teológica e da Igreja. A teologia pública considera o espaço público seja como objeto de investigação seja como destinatário de suas declarações; há muitos casos de teólogos públicos diretamente envolvidos em atividades sociais, iniciativas cívicas e movimentos de resistência. O seu envolvimento social é motivado por sua fé, e isso se reflete em sua teologia. Os teólogos públicos se esforçam para comentar de forma competente, inteligível e confiável os acontecimentos da vida pública, da sociedade e da cultura. Inspirados pelos profetas bíblicos, percebem as mudanças no mundo como autoexpressão de Deus na história”[11].
Passados cerca de 45 anos desde o fim do seu generalato e quase 35 anos de seu falecimento, é inegável reconhecer que a Igreja da Caminhada perdeu força. Com as repressões vindas de Roma, da qual Arrupe provou amargamente com a intervenção na sua amada Companhia, as aberturas conciliares estancaram e retrocederam em muitas dimensões. Entretanto, os ventos do sul sopraram mais uma vez e da América Latina, o continente tão incompreendido pela cúria romana, veio o Papa Bergoglio. Desde então Francisco tem tentado recuperar e aprofundar o espírito do Vaticano II.
Nesse entretempo, a Europa e a América do Norte envelheceram e se secularizaram. As vocações minguaram, também na outrora vibrante Igreja latino-americana. Os grupos neoconservadores se multiplicaram, praticamente controlando os meios de comunicação católica. A fixação, com os panos, os ritos litúrgicos engessados e o moralismo, cresceu. As paróquias estão quase que exclusivamente voltadas para o altar em uma deturpada ânsia sacramentalista. As pequenas comunidades vivas quase desapareceram. E a vida religiosa não saiu incólume dessa involução.
Cada vez mais envelhecida e com acentuado decréscimo no número de membros, as congregações religiosas têm reunido as forças que lhes restam para tentar manter suas pesadas estruturas. Com isso, as obras sociais e as comunidades de inserção são geralmente as primeiras a serem cortadas. Por um lado, os colégios e as universidades, os hospitais e os santuários precisam continuar funcionando. De outro, há um risco de aburguesamento nas novas gerações de religiosos, constatando-se uma maior resistência ao trabalho com os empobrecidos. O resultado é um enfraquecimento das Pastorais Sociais da Igreja, com um risco de fechamento autocentrado. Essa realidade é muito mais exacerbada na vida religiosa masculina, em que a chaga do clericalismo não poupa quase nenhuma família religiosa.
Assim, voltar ao Padre Arrupe é primordial para retomar o frescor do Evangelho da Profecia e somar forças com o Papa Francisco, na tarefa de construir uma Igreja mais plural e concretamente implicada com os últimos:
“A inserção adquire assim caráter de verdadeira urgência, não só pela situação trágica do mundo, mas porque dela depende, em grande parte, a credibilidade de nossa vida e, portanto, a eficácia de nossas atividades. Se falta essa inserção, ‘nossas comunidades não terão nem o sentido, nem o valor de sinal que exige nosso tempo, se não deixam ver claramente, na autêntica comunicação de si e de suas coisas, que são comunidades de caridade e de participação’ (CG 32, Dec. 12, n. 5). Só assim conseguiremos ‘anunciar um evangelho que incida nas expressões e nas aspirações de nossos contemporâneos’ (CG 32, Dec. 4, n. 35)”[12].
Para tanto será preciso discernir as prioridades, como o Sínodo sobre a Sinodalidade mostrou. O diálogo no Espírito ou conversação espiritual é um bom caminho. Todavia, não se pode parar aí. Tomar as decisões e colocar os meios necessários para cumpri-las é fundamental. Isso exigirá liberdade suficiente para ordenar os afetos e deixar algumas presenças apostólicas tradicionais. Certamente, alguns sairão contrariados. Afinal, o fato de se acolher com humildade que as forças e os recursos financeiros diminuíram não significa permanecer imóvel em uma eterna pastoral de conservação.
Ao contrário, o Espírito é dinâmico e continua provocando a ir para as águas mais profundas e ver novas todas as coisas. Aceitar que se deverá renunciar a bons apostolados – onde se fez e faz muito bem – para se poder ir para as novas fronteiras, é o primeiro passo. Mesmo porque não faz sentido realizar discernimento que seja estéril e não produza frutos. Identificar os cenários talvez seja a etapa mais fácil, mas dar seguimento e possibilitar que as mudanças aconteçam requer uma dose extra de audácia.
Ainda que não se ceda ao desânimo, impossível não encarar que o neofascismo se rearticula nas mais variadas frentes política, econômica e eclesial. Ter bons líderes, como Arrupe e Francisco, é insuficiente se o nível intermediário se opõe, direta ou indiretamente, às transformações. Configura-se inadiável romper com a crosta de indiferença, como alerta a senadora italiana Liliana Segre, sobrevivente do nazismo:
“Estávamos cercados por uma indiferença que às vezes era pior do que a violência. E é por isso que eu queria que a palavra INDIFERENÇA fosse escrita na entrada do Memorial Shoah em Milão. O Memorial nasceu nos trilhos sob a Estação Central, de onde partiu o trem que me deportou para Auschwitz com meu pai em 1944. Eu tinha treze anos de idade. A palavra INDIFERENÇA permanece como uma mensagem para os alunos que vêm me visitar e vão à escola hoje. Peço a eles que não olhem para o outro lado, que façam uma escolha, que entendam o que significa aceitar sem reagir o fato de alguém ser perseguido, deportado e morto apenas pela culpa de ter nascido”[13].
Como se comportará a Igreja nos seus mais diversos níveis de representação oficial, especificamente o episcopado, os padres e a vida religiosa diante do crescimento vertiginoso do discurso de ódio e dos extremismos? Estarão realmente os sucessores dos apóstolos e seus presbitérios ao lado dos migrantes, dos LGBTs, das mulheres vítimas da violência e da misoginia, dos povos indígenas e dos descartados que foram deixados à margem?
Usará aquela que sempre foi a vanguarda da Igreja – a vida religiosa consagrada – da sua influência e prestígio, do seu patrimônio e vasta estrutura para desafiar os poderosos dos partidos políticos, dos grupos empresariais e das elites ultraconservadoras contra toda forma de exploração? Esse futuro já é presente e em numerosos casos têm se falhado escandalosamente!
O medo de perder benfeitores, recursos e o acesso privilegiado aos espaços de poder, bem como o medo das inevitáveis perseguições que são naturais à fidelidade ao projeto de Jesus paralisam a vitalidade do cristianismo. Francisco vem tentando do alto dos seus 88 anos sacudir as consciências e as organizações enferrujadas, mas muitas vezes rema sem a ajuda dos bispos, dos padres, dos religiosos e das religiosas.
Como ensina o Padre Francisco Taborda, SJ, “só se pode chegar a falar de Jesus e seu Mistério Pascal, se se efetua no aqui e agora a devolução de Deus aos pobres que Jesus realizou e pela qual deu a vida”[14]. Evidente que a pessoa de Jesus e a espiritualidade cristã têm muito a contribuir para que a “noite se torne luminosa como o dia”. Testemunhar o amor do Deus da Vida que venceu a morte e colocou-se ao lado dos marginalizados implica em trabalhar para que “o Evangelho volte a ser dos pobres a quem, por dom de Deus, sempre pertenceu”[15].
Nesse Jubileu da Esperança o convite é para, centrando-se em Jesus – o único fundamento da verdadeira esperança –, pedir a graça para deixar converter as coisas antigas que ainda não passaram, tais como: o modelo de vida bastante distante dos empobrecidos; o direito canônico enrijecido e autocrático; o poder concentrado em uma gerontocracia masculina; a subserviência ao status quo e o silêncio covarde empapado de omissão.
Esperando contra toda esperança, Alfred Delp (1907-1945)[16], o jesuíta alemão perseguido e assassinado pelo regime nazista, foi um desses faróis acesos nas trevas do totalitarismo. Ele sabia que era preciso que o grão de trigo caísse na terra para que produzisse frutos e jamais cruzou os braços diante dos promotores do Holocausto. Tornou-se um dos mentores intelectuais do Círculo de Kreisau, importante rede de resistência que pensava um mundo pós-nazifascista.
A exemplo de seu companheiro Arrupe no Japão – que na época era mestre de noviços em Hiroshima e cuidou de dezenas de feridos pela bomba atômica –, Padre Delp trabalhou incansavelmente na defesa dos direitos humanos e contra o sanguinário autoritarismo em vigor. Em uma de suas últimas cartas, antes de ser enforcado, reafirmou sua profunda fé e esperança mesmo em condições tão tenebrosas, demonstrando que o nazismo não o havia vencido:
“O mundo é mais do que o seu fardo e a vida é mais do que a soma dos seus dias cinzentos. Os fios dourados da realidade autêntica já podem ser vistos em toda parte. Estejamos conscientes disso e tornemo-nos mensageiros do consolo. (...) O Advento é o tempo da anunciação, mas ainda não da realização. Aos olhos velados parece que o destino final já estava traçado ali naquelas ravinas, naqueles campos de batalha, naqueles campos de prisioneiros, prisões e masmorras. Mas quem está vigilante percebe que as forças opostas estão se movendo e pode esperar a hora certa. (...) E amanhã os anjos exultantes contarão em voz alta tudo o que aconteceu. Saberemos disso e seremos felizes se realmente acreditarmos e confiarmos no Advento”[17].
“Tão próximos de nós nunca havia estado o Senhor, já que nunca havíamos estado tão inseguros”[18], confessou o então todo-poderoso Superior Geral da maior ordem masculina da Igreja. Pedro Arrupe não temia as tensões e para permitir ao Corpo Apostólico que lhe estava confiado atualizar sua missão, convocou e conduziu a icônica 32ª Congregação Geral, que em 2025 completa 50 anos. No seu tão relembrado e citado Decreto 4 definiu que “a missão da Companhia de Jesus, hoje, é o serviço da fé, do qual a promoção da justiça constitui uma exigência absoluta”. Um documento sob o qual se deveria voltar com mais frequência.
Padre Arrupe sabia ler os sinais do Espírito e diante da crise migratória agiu como seu grand finale. Em 1980, criaria o tão emblemático, para os tempos atuais – considerando as violações perpetradas por um desvairado Trump –, Serviço Jesuíta a Refugiados (JRS). Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), neste ano, o número de deslocados e refugiados deve chegar a inaceitáveis 140 milhões de pessoas.
“Mas aqueles que perseveram nessas noites escuras (as provações da fé pessoal, mas também as noites coletivas da fé na história) podem, mais cedo ou mais tarde, experimentar a luz da manhã da Páscoa e a transformação de sua fé”[19], apontou Halík. Em razão de uma trombose, Pedro Arrupe se retirou da vida pública ao mesmo tempo em que era desautorizado com a intervenção imposta pelo Papa João Paulo II à Companhia de Jesus.
Ainda assim, parafraseando a famosa definição de Padre Nadal, SJ sobre Santo Inácio, Padre Arrupe deixou-se conduzir pelo Senhor “sabiamente confiante”. Fez o que tinha que fazer com ousadia, colaborando para que a Companhia e a Igreja avançassem com liberdade e profecia. A despeito do reconhecimento oficial ou não de sua santidade pelo processo de beatificação ora em curso, o jesuíta é fonte de inspiração para muitos.
Nesse ponto de viragem da história, é imperioso que os cristãos e as cristãs desabrochem sua visão universal e comprometida com a justiça que o jesuíta basco tão bem representa. Que Arrupe possa ajudar a Igreja a, assumir teimosamente sua Esperança, esvaziando-se de suas imagens distorcidas e autossuficientes e, sem medo de realizar as transformações imprescindíveis para seguir no caminho da fidelidade criativa ao Espírito, dizer como Povo de Deus: “para o presente amém, para o futuro aleluia”[20]!
[1] HALÍK, Tomás. O entardecer do cristianismo: a coragem de mudar. Petrópolis: Vozes, 2023, p. 205.
[2] KOESTLER, Arthur. Darkness at noon apud HALÍK, Tomás. O entardecer do cristianismo: a coragem de mudar. Petrópolis: Vozes, 2023, p. 98.
[3] ARRUPE, Pedro. El futuro de la lglesia. 1970. In: La Iglesia de hoy e del futuro. Bilbao, Santander: Mensajero, Sal Terrae, 1982, p. 35.
[4] Ibidem, p. 48.
[5] RASHID, Khalidi. Palestina: um século de guerra e resistência (1917-2017). São Paulo: Todavia, 2024, p. 23.
[6] ARRUPE, Pedro. A los 25 años de la bomba atómica: 1945 (6 agosto) 1970. 1970. In: La Iglesia de hoy e del futuro. Bilbao, Santander: Mensajero, Sal Terrae, 1982, p. 31.
[7] RAHNER, Karl. Estruturas em mudanças: tarefa e perspectivas para a Igreja. Petrópolis: Vozes, 1976, p. 109.
[8] ARRUPE, Pedro. El futuro de la lglesia. 1970. In: La Iglesia de hoy e del futuro. Bilbao, Santander: Mensajero, Sal Terrae, 1982, p. 36.
[9] Ibidem, p. 42.
[10] ARRUPE, Pedro. Vida religiosa e inserción en el mundo. 1977. In: La Iglesia de hoy e del futuro. Bilbao, Santander: Mensajero, Sal Terrae, 1982, p. 699.
[11] HALÍK, Tomás. O entardecer do cristianismo: a coragem de mudar. Petrópolis: Vozes, 2023, p. 44.
[12] ARRUPE, Pedro. Vida religiosa e inserción en el mundo. 1977. In: La Iglesia de hoy e del futuro. Bilbao, Santander: Mensajero, Sal Terrae, 1982, p. 699.
[13] SEGRE, Liliana. Encontro Internacional sobre os Direitos da Infância, Vaticano, 03 fev. 2025.
[14] TABORDA, Francisco. Da inserção à inculturação: considerações teológicas sobre a força evangelizadora da Vida religiosa inserida no meio do povo. Rio de Janeiro: CRB, 1988, p. 16.
[15] Ibidem, p. 67.
[16] KROTZ, Esteban. A ochenta años del martirio de Alfred Delp, S.J. Revista Christus. 29 jan. 2025. Disponível aqui.
[17] DELP, Alfred. Escritos desde la prisión (1944–1945). Santander: Editorial Sal Terrae, 2012.
[18] ARRUPE, Pedro. El futuro de la lglesia. 1970. In: La Iglesia de hoy e del futuro. Bilbao, Santander: Mensajero, Sal Terrae, 1982, p. 49.
[19] HALÍK, Tomás. O entardecer do cristianismo: a coragem de mudar. Petrópolis: Vozes, 2023, p. 205.
[20] ARRUPE, Pedro.