07 Novembro 2025
A doutora Emilie A. Caspar é neurocientista social na Universidade de Gante (Bélgica), onde dirige o Moral & Social Brain Lab. É reconhecida internacionalmente por suas pesquisas sobre obediência, coerção e moralidade na tomada de decisões, buscando compreender por que os seres humanos cometem atrocidades ao seguir as instruções de outros.
Para isso, Caspar combina métodos da neurofisiologia com o trabalho de campo com militares, presidiários e vítimas de genocídio de todo o mundo. Em 2024, a editora Cambridge University Press publicou o seu livro, Just Following Orders: Atrocities and the Brain Science of Obedience, um manual científico para entender a base biológica e psicológica da obediência à autoridade.
A entrevista é de Jorge Ratia, publicada por Ethic, 06-11-2025. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Você diz que quando tenta explicar, em um jantar, que pesquisa indivíduos que participaram de genocídios, a resposta costuma ser: “Ah, então, você estuda os psicopatas, certo?”. No entanto, estudos demonstram que, em grande parte, esta explicação não está correta. Quer dizer que aqueles que participam ativamente de crimes contra a humanidade são pessoas comuns?
Sempre há uma pequena fração de pessoas que, sim, possuem traços psicopáticos ou antissociais, inclusive, predisposição biológica à violência, como a amostra encontrada em qualquer prisão. Mas esse grupo é pequeno. Na realidade, vemos que o comportamento genocida é profundamente contextual. Os genocídios são o resultado de anos de propaganda, desumanização e reconfiguração ideológica que, pouco a pouco, modificam os limites morais. As pessoas acreditam que estão fazendo o que é certo.
Então, uma das principais conclusões que defendo é: “O cérebro dos genocidas não é diferente do nosso”. Isto não tira deles a responsabilidade, pois são responsáveis por seus atos, mas desafia a ilusão reconfortante de que “nós” jamais faríamos algo assim. Na verdade, as estatísticas demonstram que, durante os genocídios, a maioria das pessoas participa de forma ativa ou passiva, e apenas 1% da população resiste de forma ativa.
Conto para você uma anedota: quando dou palestras, muitas vezes, faço um pequeno experimento com a plateia. Primeiro, descrevo uma sociedade fictícia na qual um grupo de pessoas é acusado de ser responsável pelos problemas do país. Em seguida, pergunto: “Vocês se juntariam a essa acusação ou ajudariam esse grupo?”. Praticamente, todos respondem a mesma coisa: “Eu estaria entre aqueles que ajudam”. Essa discrepância entre percepção e realidade é bastante chocante. Por isso, penso que devemos reconhecer que não somos tão diferentes, mesmo que isso signifique confrontar verdades dolorosas sobre a natureza humana.
Como a neurociência pode nos ajudar a compreender melhor os processos psicossociais relacionados a casos de violência extrema?
Eu considero, sim, que a neurociência pode ajudar nesse trabalho. Por exemplo, as pesquisas sobre psicopatia demonstram consistentemente que os indivíduos com grandes traços psicopáticos normalmente apresentam disfunções em áreas do cérebro associadas à empatia, regiões como a ínsula ou o córtex cingulado anterior. Esses estudos sugerem que a atividade reduzida nessas regiões ajuda a explicar por que algumas pessoas podem agir sem compaixão ou sem se sentir culpadas.
Não obstante, é difícil explicar claramente “como” tudo isso pode ajudar a explicar processos sociais tão complexos quanto o Holocausto nazista. Isto acontece porque, em meu campo de estudo, conhecemos os participantes de nossas pesquisas muitos anos após o evento que pretendemos estudar. Até este momento, esses indivíduos podem ter sofrido distorções na memória, reinterpretações do que realmente aconteceu ou muitos outros fatores que complicam a obtenção de conclusões claras.
Na neurociência, quando por exemplo utilizamos eletroencefalografia (é um exame inofensivo para o ser humano e que registra a atividade elétrica do cérebro por meio de eletrodos colocados no couro cabeludo), conseguimos observar diferenças entre indivíduos, mas nunca podemos estabelecer causalidade. Não estávamos lá quando o genocídio ocorreu para observar se as diferenças neurais se explicam exclusivamente pelo evento em questão.
Agora, a neurociência pode nos ajudar a compreender os processos que ocorrem antes de um genocídio, como a hostilidade intergrupal, a desumanização e a obediência à autoridade. Quando pesquisamos como esses precursores se manifestam no cérebro e no comportamento, podemos inferir a probabilidade de que mecanismos semelhantes tenham um papel importante durante acontecimentos de violência em massa.
‘Just Following Orders’ estende uma ponte entre a neurociência experimental e os testemunhos pessoais sobre a violência em massa. Qual foi a sua inspiração para reunir essas perspectivas tão diferentes e por qual propósito social - se houve – foi orientada ao escrever esta obra?
A inspiração veio após eu perceber como as pessoas subestimam facilmente sua própria vulnerabilidade. Faço isso porque a simples compreensão de que qualquer um de nós é capaz de sucumbir à obediência e ao desapego moral é o primeiro passo para a resistência. Se as pessoas entenderem os mecanismos psicológicos que podem torná-las mais propensas a obedecer ou a sentir apatia em relação ao sofrimento alheio, então, estarão mais bem preparadas para os detectar logo e resistir na vida real.
Meu objetivo, portanto, é rebater a ideia de que os violentos são simplesmente indivíduos “malvados” e o que restante dos humanos está imune a esses comportamentos. Nenhum de nós sabe realmente como responderá sob uma forte pressão social, especialmente se for em um ambiente no qual vivemos desde pequenos. De longe, é muito fácil dizer “eu nunca”, mas isto é uma ilusão.
Ao mesmo tempo, quero enfatizar que a resistência é possível. No capítulo final do livro, eu explico o que se sabe sobre pessoas que desobedeceram ou se negaram a participar de atos violentos. Além disso, estou escrevendo um segundo livro que se concentra exclusivamente nesses indivíduos. Será difícil, mas penso que é importante defender que decisões alternativas são possíveis e que qualquer pessoa pode escolher a empatia, mesmo em condições extremas.
Hannah Arendt descreveu celebremente a “banalidade do mal” em sua análise do julgamento de Eichmann. Com base em suas pesquisas sobre obediência e moralidade, você considera que suas descobertas representam uma versão neurocientífica dessa ideia filosófica?
Olha que coincidência, descobri recentemente que a edição coreana do meu livro tem como subtítulo “Se Hannah Arendt fosse neurocientista”. E sim, penso que há certa conexão. Concordo plenamente com suas proposições e entendo por que ela foi tão polêmica, especialmente para os sobreviventes do Holocausto, pois é muito doloroso aceitar que a maldade possa ser tão comum. Além disso, todos os resultados que reuni apontam nessa direção: a maldade é banal.
Meus resultados, ou melhor dito, a ausência de diferenças significativas entre perpetradores e testemunhas, de certa forma, confirmam a visão de Arendt, mas neste caso a partir de uma perspectiva neurocientífica. Ela chegou a conclusões principalmente pelo depoimento de Adolf Eichmann (funcionário no regime nazista, durante a Segunda Guerra Mundial), ao passo que eu analiso o que acontece no cérebro. E vejo que a resposta neural de pessoas semelhantes a Eichmann não é fundamentalmente diferente da de qualquer outra pessoa.
Observa paralelos entre os mecanismos dos genocídios do século passado e o clima político atual?
Claro. Muitos dos processos psicológicos e sociais que precederam os genocídios no passado seguem presentes hoje. Os contextos são diferentes, claro, mas as mesmas etapas tendem a se repetir: a categorização das pessoas em grupos, a divisão entre “nós” e “eles” e, finalmente, a desumanização. Estes são passos clássicos que precedem a violência em massa, e continuamos vendo a sua manifestação, às vezes, inclusive, de forma bastante aberta. Surpreende-me que saibamos, pela história, o quão perigosos são esses processos e ainda assim continuem funcionando. Os políticos também sabem disso.
É incrivelmente fácil ganhar apoio culpando um grupo externo, por exemplo, apontando o dedo para os imigrantes. Sabemos o que esse tipo de retórica provoca no cérebro, como amplia o medo e a hostilidade, e ainda assim é utilizada repetidamente porque é eficaz. Acho frustrante que coletivamente permitamos que isto continue, apesar de sabermos tudo o que sabemos. Então, lembro-me que a maioria das pessoas não tem consciência do quão poderosos são esses mecanismos, ou seja, não percebem como a manipulação atua tanto em nível neuronal quanto social. Por isso, a conscientização e a educação são muito importantes.
Se a neurociência demonstrasse que a obediência muda a forma como o cérebro processa o conflito moral, esta evidência poderia ser usada em contextos jurídicos, como, por exemplo, em tribunais por crimes de guerra?
Sinceramente, espero que não. Ao menos não de forma que sirva para eximir alguém de sua responsabilidade. Penso que é importante distinguir entre obedecer a ordens e ser coagido. A coerção implica agir sob ameaça, por exemplo, que digam a você: “Se não fizer isto, matarei toda a sua família”. Esta é uma situação muito diferente de simplesmente seguir uma ordem. Ambas costumam ocorrer durante genocídios, mas não são a mesma coisa, nem moral, nem psicologicamente. Mesmo que a neurociência consiga demonstrar que a obediência tem efeitos no cérebro, isto não deveria ser usado como justificativa.
Temos muitíssimos exemplos de pessoas que foram expostas à mesma propaganda, à mesma autoridade, e ainda assim se negaram a participar da violação de direitos humanos. Sempre há um elemento de escolha. Penso que a obediência é muito poderosa porque, em muitos casos, as pessoas já estão de acordo com o que lhes é ordenado fazer. A propaganda já moldou suas crenças. Então, quando a ordem chega, simplesmente agem conforme o que já acreditam ser o correto, e a obediência retira delas o sentimento de responsabilidade. Essa combinação de ideologia internalizada e autoridade externa é o que torna a obediência tão perigosa.
Normalmente, suas descobertas estão relacionadas a acontecimentos extraordinários de violência em larga escala, por isso a maioria dos cidadãos pode pensar: “Isso nunca aconteceria comigo”. Em sua avaliação, os mecanismos que você estuda a respeito da obediência também aparecem na vida cotidiana, por exemplo, no trabalho ou nas redes sociais?
Sem dúvida. Um exemplo disso vem dos chamados “Estudos de Utrecht”, que replicaram alguns elementos dos famosos experimentos de obediência de Milgram, em um ambiente moderno. Em vez de administrar descargas elétricas, como se fazia naquela época, pediu-se aos participantes que fizessem comentários negativos a outras pessoas, durante uma entrevista de emprego simulada, algo que poderia acontecer em qualquer empresa. Os resultados foram surpreendentes, porque as pessoas obedeciam com facilidade, mesmo quando suas ações claramente provocavam danos emocionais.
Isso demonstra como é fácil seguir instruções que vão contra os nossos valores, simplesmente porque alguém com autoridade nos pede. Observamos a mesma dinâmica em escritórios onde os chefes discriminam nos processos de contratação, por exemplo, desencorajando a seleção de candidatos de determinadas origens. Nesses casos, as consequências não são tão catastróficas quanto um genocídio, é claro, mas o mecanismo psicológico é semelhante.
Como as pessoas comuns podem encontrar forças para se opor à imoralidade?
A maioria dos atos de “resgate” não ocorre isoladamente. Os resgatadores, entendidos como aqueles que participam ativamente do salvamento de alguém que está sofrendo uma injustiça, costumam contar com o apoio de sua família, seus amigos e seus colegas de trabalho. Vimos isto tanto no Holocausto quanto no genocídio de Ruanda. Estar completamente sozinho torna a resistência algo muito mais difícil. De modo geral, ajudar os outros também é um ato de conformidade, só que na direção oposta.
Quando você está cercado por pessoas que desobedecem ou ajudam, é mais provável que você também faça o mesmo. A influência social atua nos dois sentidos. É por isso que formar grupos de apoio é tão poderoso: multiplica a coragem moral. Por isso, mesmo os atos mais simbólicos são importantes. Às vezes, inspirar os outros pode ser tão valioso quanto a própria ação. Se uma pessoa ajuda em silêncio, mas ninguém fica sabendo, o efeito fica restrito. Ao contrário, os atos visíveis de solidariedade, mesmo pelas redes sociais, podem gerar consciência e servir de exemplo moral. Lembram-nos que, sim, há outra forma de reagir.
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