10 Julho 2025
"A desumanização dos outros não é um conceito abstrato nem uma metáfora filosófica. É um fenômeno biológico mensurável, com circuitos neurais específicos ativados em nossos cérebros seguindo caminhos bem definidos. Dois mecanismos neurobiológicos principais levam à negação da humanidade dos outros."
O artigo é de Nathan Levi, publicado por Settimana News, 10-07-2025.
Nathan Levi é pediatra e profissional de saúde internacional, nascido em Tel Aviv em 1945, é autor do romance A Metamorfose das Papoulas (Tresogni, 2021), um thriller político ambientado durante o conflito israelense-palestino (premiado com menção honrosa no Concurso de Micropublicação Chiari em 2023).
Quando criança, testemunhei a face genocida da humanidade. Na década de 1950, em Israel, nem nós, crianças, conseguíamos escapar das histórias horrendas do Holocausto. Para proteger minha alegria de viver, apeguei-me à crença de que tal selvageria havia sido obra de um grupo seleto de seres humanos — os nazistas — agora eliminados para sempre pelos "mocinhos".
À medida que fui crescendo, tive que encarar evidências históricas e atuais: outros povos foram e continuam sendo capazes de atos desumanos, especialmente durante guerras. Isso inclui o povo em que nasci, que, embora marcado pela tragédia do Holocausto, não está imune a esse declínio, como demonstra dramaticamente o atual conflito em Gaza.
É, portanto, evidente que a capacidade de se transformar de um indivíduo “civilizado” em um protagonista de genocídio pertence intrinsecamente à natureza humana.
As reflexões do jornalista israelense Gideon Levy sobre a desumanização da diversidade me tocaram profundamente. É um tema que oferece uma chave importante para compreender — mas certamente não justificar — a tragédia que se desenrola em Gaza.
Neste post, compartilho um resumo das minhas leituras sobre o tema. O processo-chave parece residir na capacidade da nossa mente de "desumanizar" aqueles que percebemos como diferentes.
O mecanismo da desumanização. Há um momento preciso em que o outro deixa de ser humano. Isso não acontece de repente, como um interruptor, mas por meio de um processo gradual e assustadoramente eficaz que a ciência moderna está começando a decifrar. Antes que o sangue manche suas mãos, suas mentes já realizaram sua obra mais sombria: apagar a humanidade da face de seu inimigo.
A desumanização dos outros não é um conceito abstrato nem uma metáfora filosófica. É um fenômeno biológico mensurável, com circuitos neurais específicos ativados em nossos cérebros seguindo caminhos bem definidos. Dois mecanismos neurobiológicos principais levam à negação da humanidade dos outros.
No primeiro, nosso cérebro usa os mesmos circuitos que nos fazem sentir repulsa por comida estragada para rejeitar aqueles que são diferentes de nós. É assim que nascem palavras que reduzem os humanos a animais repugnantes: vermes, ratos, baratas. Os nazistas estavam bem cientes desse mecanismo quando chamavam os judeus de "parasitas" e "ratos a serem eliminados".
Os massacres de 1994 em Ruanda oferecem outro exemplo assustador. Os tutsis não eram mais pessoas a serem mortas, mas sim "baratas a serem esmagadas", "ervas daninhas a serem erradicadas". O rádio repetia obsessivamente esses termos, preparando metodicamente as mentes hutus para o genocídio. Em apenas cem dias, um milhão de pessoas foram massacradas com facões e paus pregados, muitas vezes por vizinhos que até o dia anterior compartilhavam a mesma existência cotidiana.
Após o ataque do Hamas em 07-10-2023, que matou brutalmente mais de 1.200 israelenses, a resposta israelense rapidamente saiu do controle. O que muitos observadores internacionais agora chamam de genocídio ao vivo na TV mostra o mesmo mecanismo em ação. As palavras usadas são idênticas: os palestinos se tornaram "animais humanos" a serem eliminados, Gaza, um "ninho de víboras" a ser "limpo". O ministro da Defesa israelense deixou claro: "Estamos lutando contra animais humanos". Não se trata de metáforas de guerra, mas de instruções precisas para a desumanização, com o objetivo de extinguir a compaixão e prosseguir com o extermínio.
Há um segundo mecanismo neurobiológico igualmente devastador. Um mecanismo mais direto que elimina palavras depreciativas: o cérebro pode literalmente "desligar" nossa capacidade de ver os outros como seres humanos. As pessoas se tornam meros objetos, descartáveis sem remorso.
Contextos de guerra são o laboratório perfeito para esse mecanismo. O estresse crônico da guerra hiperativa a amígdala — o centro do medo e da agressão — e, simultaneamente, desativa as áreas da racionalidade e da empatia.
Hoje, na Faixa de Gaza, a desumanização revela sua face mais crua. Todos os dias, civis palestinos são mortos em filas para conseguir comida, em busca de água ou tentando proteger seus filhos.
As imagens se tornaram rotineiras : corpos dilacerados nas ruas, crianças resgatadas dos escombros, famílias inteiras aniquiladas. Mas a repetição diária dessas cenas não gera mais indignação, mas indiferença. É o triunfo da desumanização que se estende aos espectadores: quando a morte alheia se torna notícia, deixa de ser uma tragédia.
Os palestinos não são mais pessoas sofrendo, mas "escudos humanos" usados pelo Hamas. Não são civis que morrem, mas inevitáveis "danos colaterais". Não são crianças chorando, mas "futuros terroristas" a serem eliminados preventivamente. Cada morte é absorvida por uma narrativa que a torna aceitável, até mesmo necessária.
Como observou Gideon Levy, colunista do jornal israelense Haaretz: "Isso não é novidade. E é um meio necessário porque, se nossos adversários são seres humanos, temos um problema. Um problema moral, um problema de direitos fundamentais, um problema de consciência. Se eles não são verdadeiramente seres humanos, tudo fica mais fácil. Se toda Gaza é Hamas, se todos são terroristas e se ninguém é visto como humano, este é o primeiro passo para extinguir a consciência: desumanizar o outro, e tudo fica mais simples."
A resposta de Israel ao 7 de outubro também revelou como a desproporção não é um efeito colateral, mas uma estratégia deliberada de desumanização. Para cada israelense morto, dezenas de palestinos devem morrer. Não por necessidade militar, mas para reafirmar a hierarquia da vida humana. É a matemática da desumanização: algumas vidas importam mais do que outras, algumas mortes são mais importantes do que outras.
O bombardeio sistemático de Gaza resultou em quase 60 mil mortes de palestinos, a maioria civis, em resposta aos 1.200 israelenses mortos em 7 de outubro. Mas os números contam apenas parte da história. A verdadeira estratégia é a destruição da normalidade: matar não basta; a própria vida deve ser tornada impossível destruindo hospitais, escolas e poços de água.
A desumanização da diversidade também é evidente nos migrantes. O governo Trump levou esse processo ao ápice, transformando a migração em uma emergência existencial. Crianças separadas de suas famílias na fronteira com o México não são mais crianças, mas "criminosos juvenis". Mães em busca de asilo político tornam-se "atrizes" que fingem desespero para enganar as autoridades.
Quando a desumanização se mistura ao fanatismo religioso, os efeitos se multiplicam. O ISIS queima pilotos jordanianos vivos, até budistas birmaneses massacram rohingyas: todos compartilham a mesma convicção de realizar um ato necessário; o outro não é apenas subumano, mas o próprio inimigo de Deus.
Durante as Cruzadas, os muçulmanos eram considerados "infiéis" e deveriam ser convertidos ou eliminados. Na Espanha do século XV, os judeus eram considerados "marranos" — porcos — mesmo após a conversão forçada. Os nativos americanos eram considerados "selvagens sem alma" pelos conquistadores espanhóis, justificando séculos de genocídio disfarçados de missão civilizadora.
Cada vez que reduzimos o outro a uma categoria — o migrante, o terrorista, o diferente — ativamos os mesmos circuitos neurais que tornaram possíveis os genocídios, tanto do passado quanto do presente. A distância entre as palavras que desumanizam e o ato que mata é menor do que gostaríamos de admitir.
Hoje, a neurociência nos oferece um mapa preciso desses territórios obscuros da mente. Ela explica que a desumanização não é uma falha de caráter ou fraqueza moral. É uma característica do cérebro humano, um mecanismo evolutivo que nos ajudou a sobreviver em pequenos grupos, distinguindo rapidamente "nós" de "eles". Mas o que era útil nas savanas da África Oriental torna-se letal e imperdoável nas sociedades complexas de hoje. É possível que os mesmos mecanismos neurobiológicos permitam que os carnívoros matem e comam suas presas: mas esta é apenas uma hipótese pessoal.
O fato de nosso cérebro ser naturalmente predisposto a desumanizar para matar não pode justificar os crimes que testemunhamos todos os dias.
Os responsáveis por massacres e genocídios devem ser punidos para reafirmar um princípio fundamental: a civilização exige que respeitemos as regras de coexistência estabelecidas por tratados internacionais. A punição também deve ser aplicada àqueles que alimentam ativamente essas capacidades genocidas, fornecendo armas e apoio político.
Conclusão: vimos como a desumanização não é uma relíquia do passado, mas um presente sempre presente. Ela vive em nossas sinapses e se aninha em nossos medos. Reconhecê-la não basta para detê-la, mas é o primeiro passo para evitar nos tornarmos seus cúmplices involuntários.