13 Agosto 2024
“A nova ordem [multipolar] que nascerá, provavelmente após uma série de guerras locais e talvez mundial, estará ancorada em vários países e regiões do Sul global e vem tomando forma nos últimos anos, na sequência das guerras na Ucrânia e em Gaza”. A reflexão é de Raúl Zibechi, em artigo publicado por Brecha, 09-08-2024. A tradução é do Cepat.
Referindo-se à Venezuela, Zibechi escreve: “acredito que o maior problema não é a fraude, mas a violência sistemática contra os setores populares”, principalmente jovens e negros, situação que o país compartilha com os Estados Unidos.
A guerra na Ucrânia “é uma situação única e não pode ser comparada a nenhuma outra guerra ou conflito no mundo”, explica o Comitê Olímpico Internacional (COI) à revista Time para justificar a exclusão da Rússia dos Jogos Olímpicos de Paris.
A invasão russa da Ucrânia é um acontecimento deplorável que deve ser condenado sem meias palavras. Mas de onde o COI tira a ideia de que se trata de uma guerra única e sem precedentes? Sem dúvida, da galera [antigo navio a vela] da mentalidade colonialista que ainda domina no Ocidente, que está por trás das decisões institucionais e da propaganda dos grandes meios de comunicação que já não informam.
A verdade é que, em plena transição do mundo unipolar centrado no Norte global (os Estados Unidos, parte da União Europeia [UE] e seus aliados) para um mundo multipolar com várias potências e regiões que se relacionam em pé de igualdade, sem que nenhuma [potência] consiga ordenar o mundo de acordo com os seus interesses, qualquer análise sensata desaparece nos ventos coloniais, que voltam a soprar com uma inusitada intensidade.
A nova ordem que nascerá, provavelmente após uma série de guerras locais e talvez mundial, estará ancorada em vários países e regiões do Sul global e vem tomando forma nos últimos anos, na sequência das guerras na Ucrânia e em Gaza. Lembremo-nos que a maioria do Sul global (85% da população mundial) não apoiou as sanções impostas à Rússia pelo Norte global (15% da população mundial) e, com algumas exceções, reconhece o Estado palestino, sensatez que lentamente vai “contaminando” quase metade dos países da UE.
A contradição Norte Global versus Sul Global ordena e subordina todas as outras. O conflito trabalhadores-patrões (burgueses e proletários na linguagem marxista) já não desempenha um papel relevante em nenhum cenário, embora não tenha desaparecido, ao passo que o significado da família, do trabalho e da poupança se evaporou como valores defensáveis a partir de uma sensibilidade progressista e mesmo conservadora.
Daniel Ortega, Nicolás Maduro e Vladimir Putin podem mencionar a família e a pátria com a mesma veemência que Jair Bolsonaro ou Javier Milei, tornando qualquer mapeamento político-ideológico tão impossível quanto desnecessário. Do outro lado, o das “democracias liberais”, acontece algo semelhante. Defendem as liberdades democráticas e as eleições limpas ali onde desejam avançar no controle das reservas energéticas ou ali onde não querem perdê-las. Mais confusão e duplo discurso.
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Acredito que na Venezuela houve fraude nas recentes eleições por razões que considero inúteis discutir, uma vez que as provas falam por si, embora tenha lido intelectuais que aprecio defenderem o contrário. Em suma, na Venezuela existe um regime autoritário e ditatorial, corrupto e repressivo.
No entanto, acredito que o maior problema não é a fraude, que é gravíssima pela degradação que provoca, mas a violência sistemática contra os setores populares. Busco fundamentação nos relatórios anuais do Provea (sigla para Programa Venezuelano de Educação-Ação em Direitos Humanos) e em particular no último, sobre a situação dos direitos humanos em 2023. Provea é uma organização criada em 1988 que desempenhou um papel importante na denúncia dos crimes de Estado durante o Caracazo de 1989, quando estava no poder a “socialdemocracia” de Carlos Andrés Pérez, grande amigo de Felipe González e dos Estados Unidos.
O relatório de 2023 começa denunciando que o autoritarismo se tornou uma política comum em grande parte do mundo: Hungria, Turquia, El Salvador, Polônia, Filipinas, Índia, Nicarágua e Venezuela, entre outros, vários deles aceitos como “democracias” plenas. Em relação à nossa região, também afirma que “graves violações dos direitos humanos ocorrem em países como Cuba, Nicarágua, Peru, El Salvador, Venezuela, Guatemala e até no Canadá e nos Estados Unidos”.
Na Venezuela, somente em 2023, foram cometidos 620 assassinatos por forças estatais: “A Polícia Nacional Bolivariana (PNB) é o órgão com o maior número de supostas execuções extrajudiciais. 185 pessoas foram assassinadas sob sua atuação, ou seja, a PNB é responsável por 30% destas mortes. As Forças Armadas Nacionais Bolivarianas foram responsáveis por 99 mortes, o que representa 16%”, diz o relatório.
E o dado mais assustador: “Desde que Nicolás Maduro começou a governar, foram registradas 9.995 violações do direito à vida”, ou seja, 10.000 pessoas foram assassinadas pelo Estado em uma década. Paralelamente, o Provea denuncia o governo por “elevados níveis de abuso contra a população; o uso deliberado e arbitrário da letalidade policial e por ter transformado os jovens de áreas populares em alvos. Estas políticas foram lideradas pelos Ministérios do Interior e da Justiça, onde a maioria dos ministros têm sido militares, situação que produziu uma maior participação das Forças Armadas nas tarefas de segurança, que, por mandato constitucional, corresponde aos órgãos policiais”.
Por que a comunidade internacional está tão preocupada com o “assassinato” dos registros eleitorais e deixa nas sombras os assassinatos em massa contra jovens pobres nas periferias urbanas da Venezuela? Há também um duplo padrão aqui.
A Venezuela possui a maior reserva de petróleo convencional do planeta. A Arábia Saudita, a segunda maior. A Venezuela é caracterizada como uma ditadura, e seus processos eleitorais são monitorados. Não há eleições na Arábia Saudita, e relatos de violações dos direitos humanos fariam empalidecer o adversário mais duro de Maduro. A Human Rights Watch relatou que “os guardas de fronteira sauditas mataram pelo menos centenas de migrantes e requerentes de asilo etíopes que tentaram cruzar a fronteira entre o Iêmen e a Arábia Saudita entre março de 2022 e junho de 2023”. No entanto, a grande mídia diz ditadura quando fala da Venezuela e monarquia quando se refere ao regime de Riad. Os leitores podem ler as manchetes do Clarín, Infobae ou La Nación para corroborar a manipulação propagandística.
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Entre 2013 e julho de 2024, a Polícia dos Estados Unidos assassinou 13.091 pessoas, de acordo com o projeto Mapping Police Violence. Um número absoluto um pouco superior ao da Venezuela, embora os Estados Unidos tenham uma população dez vezes maior. Mas a ditadura de Maduro e a democracia de Washington têm outra coisa em comum: a maioria dos mortos são negros e jovens.
O banco de dados Fatal Force do Washington Post diz que “mais da metade das pessoas mortas a tiros pela polícia têm entre 20 e 40 anos”. “Os afro-americanos representam aproximadamente 12% da população, mas entre 2015 e 2019 foram responsáveis por 26,4% de todas estas mortes”, resume a BBC com base nesse banco de dados (3-06-2020).
“Em comparação com outros países, a polícia dos Estados Unidos matou pessoas a uma taxa três vezes superior à da polícia do Canadá e 60 vezes superior à da polícia da Inglaterra”, afirma o relatório Mapping Police Violence. O Novo México tem a maior taxa de mortalidade policial. O leitor não familiarizado com os mapas deve saber que este é um Estado que faz fronteira com o México.
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A geopolítica, uma disciplina amaldiçoada, está organizando as relações internacionais. Ninguém no Uruguai ousaria sancionar ou romper relações com a China, embora, evidentemente, não seja uma democracia. Será porque é o principal mercado das nossas exportações?
Navegamos em águas turbulentas onde o interesse e a vantagem são os valores dominantes. Dizer a verdade parece ridículo para não poucas pessoas, de ambos os lados da vala. Dizer que Maduro é um ditador, mas Xi Jinping também é, não é algo que parlamentares e governantes estejam dispostos a dizer, cuidando cada um dos seus negócios.
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A guerra Norte-Sul disciplina o planeta. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU