"À profecia de Toni Negri, oponho outra profecia: a leitura e a presença na história inspiradas pelo Evento-Cristo. E, em vez das multidões, as minorias que lutam pelo sumak kawsay, a plenitude da Vida na língua andina quéchua, e pela Yvy marã e’ỹ, a Terra sem mal no idioma guarani: terra sem injustiças, sem fome e sem guerras. São teologias que resistiram à invasão e colonização ibérica e que pensam o mundo antes do direito e além do direito romano e liberal".
O comentário é de Flavio Lazzarin, padre Fidei Donum, italiano, atuando na diocese de Coroatá, Maranhão, em artigo publicado por Settimana News, 19-01-2024.
Nos anos da minha juventude, não conheci pessoalmente Toni Negri e o operacionismo não me seduzia. Eu era um jovem de vinte anos em 1968, de família católica, e me aproximei do anarquismo, junto a outros amigos e amigas fraternais, que compartilhavam o mesmo desejo de rebelião, de reação.
A distância do Partido Comunista se concretizou imediatamente a partir da inimizade dos comunistas, que, preocupados apenas com seu monopólio político stalinista, não compreendiam, com uma inadequação ontológica que se revelou definitiva nos anos seguintes, o que estava mudando no mundo, na classe trabalhadora e na sociedade italiana. Lembro-me, no entanto, que os antigos partidários comunistas nos acolhiam e dialogavam conosco.
Sabíamos de Mario Tronti, Oreste Scalzone, Franco Piperno e Toni Negri, do Potere Operaio e da Autonomia, mas, desde o início de nossa abordagem juvenil à política e ao sonho revolucionário, éramos críticos radicais do leninismo-trotskismo e dos regimes comunistas de matriz stalinista, representados por estados autoritários e repressores. Amávamos Nestor Makno e os marinheiros de Danzig, os sovietes e o internacionalismo verdadeiro.
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Quem foram nossos mestres? Para alguns, Bakunin; para um de nós, Kropotkin, e depois Cafiero e Malatesta, o jovem Marx, o Círculo Molinari dos velhos anarquistas de Mantova, nosso Círculo "Gaetano Bresci" e depois o Situacionismo de Guy Debord, seguido por uma mutação ulterior do mesmo grupo: o Círculo "Paul Lafargue", anteriormente em Milão próximo à Lotta Continua, a Escola de Frankfurt e uma joia em Walter Benjamin.
Em 1987, enviado pelo bispo Caporello, como fidei donum, ao Brasil, no Maranhão, após o martírio de Dom Maurizio Maraglio, especialmente a partir do pensamento de Enrique Dussel, comecei a visitar e revisitar autores marxistas, incluindo Toni Negri; mais tarde, a partir de 2010, também pensadores da Universidade Nômade - Brasil, inicialmente ligados ao pensamento negriano, como Giuseppe Cocco, Bruno Cava Rodrigues, Barbara Szaniecki.
Houve também e, sobretudo, a importante companhia de teólogos como Jon Sobrino e José Comblin. E a companhia de profecias existenciais de Helder Câmara, Pedro Casaldàliga, Margarida Alves, Tomás Balduino, Chico Mendes, Claudio Bergamaschi, Josimo Tavares, Dorothy Stang.
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Privilegiado pela imersão na vida, espiritualidade e culturas dos agricultores tradicionais em luta pela conquista da terra e pela mudança do mundo, naqueles primeiros anos, pude conviver com uma surpreendente grande coralidade das massas, com líderes carismáticos nativos, pensadores e comandantes militares populares sem partidos, sem sindicatos traidores, sem influências dos colonizadores brancos. Um ciclo surpreendente de lutas, que hoje, infelizmente, parece reduzido e talvez irrepetível.
Os pobres me obrigaram a processos dolorosos de mudança nos registros católicos, aos quais eu já estava em parte acostumado, e a me questionar como Jesus abençoa e está fraternalmente presente nas lutas. Descobri que a Palavra de Deus, ouvida a partir dos pobres e no conflito – citando Carlos Mesters, Sandro Gallazzi – é a luz que ilumina os caminhos da história de libertação dos poderes do templo, do palácio e do mercado.
São os poderes que o Evangelho nos ajuda a descobrir presentes também em nosso íntimo e que esperam cuidado e conversão. Lutar pela justiça é fundamental e legítimo, se, no entanto, também nós, individualmente, lutamos todos os dias para ser justos. E justos, de acordo com a Graça. Não segundo a Lei.
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Leio, portanto, a trilogia de Toni Negri e Michael Hardt com um olhar latino-americano, com uma abordagem teológica da história, inspirada nas insurreições indígenas e camponesas contra o sistema que continua a agredir e destruir territórios e comunidades.
Diante de sua morte, não escrevo o tradicional obituário, mas, não resistindo à presunção – e peço desculpas por isso – gostaria de poder dizer quanto não concordo propriamente com ele. Negri é imenso em sua capacidade de assimilar e refletir sobre aspectos fundamentais de nossa civilização ocidental. Ele busca novas maneiras conceituais de entender os desafios propostos pelas mudanças profundas do capitalismo e da tradição socialista que tentou enfrentá-lo. Uma bibliografia imensa! Certamente, não compreendi tudo e talvez não tenha compreendido bem, mas respeito profundamente sua pessoa e sua biografia dramática, marcada por ostracismo e condenações injustas.
Feita essa justa ressalva, eu ousaria, mesmo assim, contrapor à realidade e ao conceito negriano de "multidões", que é apresentado como o motor rizomático [1] da história, o protagonismo das minorias, do pusillus grex, o resto de Israel, as minorias abramíticas.
O filósofo italiano Toni Negri, falecido em 16 de dezembro de 2023. (Foto: Reprodução | Jacobin Brasil)
A primeira consideração é que as lutas das multidões que Negri aborda parecem ser fruto de uma perspectiva predominantemente eurocêntrica, onde aparecem como exemplares a batalha de Seattle em 1999, os protestos contra o G8 em Gênova em 2001, os Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre e Bombaim, enquanto permanecem na sombra as insurgências e lutas de matriz étnica, como a luta de Chiapas, que marcam indelevelmente as resistências latino-americanas. Como se tudo isso não fizesse parte irrenunciável do surgimento das multidões e das organizações moleculares em rede.
Mais tarde, no universo de Negri, encontram espaço as insurreições de 2010-2011 iniciadas na Tunísia e no Egito, que deram início a um ciclo: quando milhões de pessoas do Norte da África e do Oriente Médio e, depois, na Espanha, Grécia e nos Estados Unidos e, posteriormente, na Turquia, Brasil e Hong Kong, protestaram vigorosamente contra sistemas antidemocráticos e guerras, sem, no entanto, obter resultados que pudessem impedir políticas autoritárias e belicistas.
As multidões sempre me aparecem indecifráveis, a serviço de uma história cega e indiferente, sem intenções, sem um coração, sem um projeto, sem espiritualidade: apenas um ser contra, uma raiva acumulada que explode, desejos frustrados, negação que se detém no grito, na batalha campal, mas não investiga a possibilidade de confrontar os verdadeiros inimigos e derrubar os verdadeiros muros.
Às vezes, são multidões acompanhadas por setores intelectuais que tentam pensar, mas tenho a impressão de que são pensamentos que não conseguem desatar os nós da prática. É difícil para mim entender como se pode pensar em redes que gerenciam o que é comum – o comunismo – nesse emaranhado, ou conseguir vislumbrar um serviço ao bem comum: uma multidão que parece não saber como mudar a vida e como mudar o mundo.
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Revoltas que, como no Brasil em junho de 2013, são reprimidas violentamente pela polícia do estado governado pelo Partido dos Trabalhadores, pela esquerda lulista-dilmista, que, por vocação histórica, deveriam defendê-los e representá-los. Esta esquerda, em nome da governabilidade eleitoral e guiada pela presunção, que está se revelando cada vez mais equivocada, de ser a única força política capaz de enfrentar a nova extrema-direita, define o movimento de junho como um conjunto de ações terroristas, um complô fascista, chegando, em delírios anti-imperialistas, a especular sobre a possível influência e apoio da CIA às manifestações. Assim, no final, contribui para fortalecer a base bolsonarista e favorecer o poder dos aspirantes a ditadores, apoiados pelas forças armadas.
Multidões que deveriam ser como a emergência da água clara de rios cársicos escondidos, mas ativos, e que, de forma pessimista, me parecem exércitos de escravos, prisioneiros de um sistema, perfeitamente internalizado e naturalizado.
Além disso, para completar o desastre, temos uma esquerda, agora globalizada em sua traição imperdoável aos valores ainda importantes das tradições revolucionárias: temas universais como justiça, fraternidade e luta antissistêmica contra o capitalismo.
Multidões, que raramente pretendem abordar teologicamente e espiritualmente as teologias diabólicas dos fundamentalismos e tradicionalismos locais e não entendem que, sem o anão do autômato de Benjamin [2], não é possível enfrentar a reação do "Deus-Pátria-Família" e nem, obviamente, as agressões, com inspirações teológicas semelhantes, da Ortodoxia Pan-Russa e da Jihad Islâmica, em guerra contra o Ocidente "pervertido e corrupto".
Multidões, portanto, como sintoma ontológico de uma imanência, que usurpa e apaga qualquer teologia e teleologia, que recupera os humanos como máquinas desejantes inconscientes, como soma de singularidades diferenciadas que, no entanto, não podem enfrentar os desafios-chave da crise do Ocidente: mudanças climáticas, migrações, guerras, fome, inalterabilidade da matriz energética, transumanismo e bioengenharia, ditadura digital. Multidão inconsciente, que não possui as alavancas para começar a mudar o mundo.
E não seria uma ingenuidade pensar que o capital rizomático, que controla os novos e complexos sistemas de produção, cederia pacificamente os fundamentos de sua riqueza e de seu poder político às pressões das cambiantes multidões?
Em resumo, a multidão me parece um sujeito que não é um sujeito. E não consegue substituir a classe, como soma de sujeitos revolucionários, que hoje, juntamente com a classe trabalhadora, quase desapareceu como consciência e como conceito. Multidão, que parece resistir bem ao controle, à disciplina, à organização do capital, ao biopoder foucaultiano, mas ao preço de anular toda transcendência.
Nos deparamos então quase com uma reedição da mística hippie: o êxodo da multidão dos territórios, da subordinação e disciplina do império. Não seria isso uma enfatização perniciosa dos desejos do ego, que fingem não ver a dor e o sangue derramado diariamente por milhões de vítimas dos protocolos de extermínio do capitalismo?
É um êxodo sem Messias e sem messianismos, sem terra prometida, sem sol do porvir, sem kairós, prisioneiro de um tempo cronológico indefinido.
Acredito, portanto, que, guiados pelo Evangelho, somos chamados a reafirmar nossa posição teológica no debate sobre a teologia da história, fugindo, é claro, de qualquer integralismo e fanatismo.
À profecia de Toni Negri, oponho outra profecia: a leitura e a presença na história inspiradas pelo Evento-Cristo. E, em vez das multidões, as minorias que lutam pelo sumak kawsay, a plenitude da Vida na língua andina quéchua, e pela Yvy marã e’ỹ, a Terra sem mal no idioma guarani: terra sem injustiças, sem fome e sem guerras. São teologias que resistiram à invasão e colonização ibérica e que pensam o mundo antes do direito e além do direito romano e liberal.
No lugar das multidões, os pequenos rebanhos, minorias guiadas pela fé em Jesus, pela presença dos Santos e Santas dos Orixás, dos Encantados e Encantadas dos povos originários, dos Quilombolas, das comunidades tradicionais camponesas. Uma aliança espiritual de transcendências que tocam a mesma melodia da Vida e que não obedecem às lógicas da conquista do poder e perderam o medo da morte.
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Lembro, com nostalgia, da escolha de revolucionários como Emiliano Zapata e Pancho Villa, que depois de vencerem a última batalha da revolução (1914), entram na Cidade do México, ocupam o palácio do governo, se deixam fotografar para deixar a última lembrança e depois voltam para casa, para continuar a luta contra os latifúndios. Zapata é o mestre da insurgência de Chiapas, negação do estado em nome de autonomias territoriais animadas pelos ancestrais.
Para mim, o único tesouro precioso que herdamos do Ocidente é o Reino presente e escondido, revelado por Jesus. A chave salvífica e interpretativa da história da humanidade e do universo que nos é dada pela infinita impotência do Deus crucificado. Jesus se reveste de humanidade verdadeira desde o nascimento, na vida oculta de Nazaré - os trinta anos que seduziram Charles de Foucauld –, na vida pública em que enfrenta, por amor e com amor, os donos do templo e do palácio. Até o Calvário. Até o Inferno.
Uma batalha ao lado dos pobres, dos abandonados, daqueles considerados impuros e pecadores, pastores e pescadores, ladrões, cobradores de impostos, prostitutas. São esses descartados da humanidade os protagonistas de um Reino, que não precisa da dialética materialista para se realizar, porque está aqui, entre nós, como dom, vocação e missão, presente sempre que nos deixamos abraçar pela Palavra de Jesus, o Ressuscitado. Hoje. Agora.
Não é aceitável delegar ao domínio do tempo cronológico a responsabilidade de resolver os enigmas da história. Há muito amadureceu a possibilidade de abandonar definitivamente as ilusões do materialismo dialético, porque qualquer revolução, mesmo aquela que finalmente poderia ser bem-sucedida, não conseguiu e não conseguirá redimir a imensidão dos sofrimentos e dores semeados ao longo da história. Uma revolução verdadeira, que até hoje nunca foi realizada, poderá beneficiar as novas gerações. Mas o passado imodificável sempre será olhado com horror pelo Anjo Novo de Benjamin [3].
São essas amorosas minorias dos pequeninos de Jesus que transformam o mundo. São minorias martiriais, sempre incompreendidas, odiadas e perseguidas, mas pequeno rebanho, resto fiel, que não tem mais medo da derrota e da morte, porque ressurge com Jesus de Nazaré. Porque foi dado a eles o segredo da Vida.
[1] Quando falamos de 'rizomas' e 'máquinas desejantes', estamos nos referindo a uma revolução no pensamento contemporâneo que surge com o livro de 1972 "O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia", de Gilles Deleuze e Felix Guattari, que traduz o clima de 1968 e inspira as lutas dos anos 70.
[2] "Dizem que existia um autômato construído de tal maneira que respondia, a cada movimento de um jogador de xadrez, com uma contra-movimentação que garantia a vitória. Uma marionete vestida de turco, com um cachimbo na boca, sentava-se em frente ao tabuleiro, apoiado em uma mesa ampla. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que este tabuleiro era transparente de todos os lados. Na verdade, encurvado ali dentro estava um anão corcunda, um ás no jogo de xadrez, que guiava a mão da marionete por meio de fios. Algo semelhante a esse aparato pode ser imaginado na filosofia. Sempre deve vencer a marionete chamada "materialismo histórico". Ela pode facilmente lidar com qualquer um, desde que coloque a teologia a seu serviço, que hoje, como se sabe, é pequena e feia, e que não deve se deixar perceber por ninguém." (Walter Benjamin, "Angelus Novus. Ensaios e Fragmentos", Einaudi, Turim, 1962).
[3] "Há um quadro de Klee chamado 'Angelus Novus'. Nele, encontramos um anjo que parece estar se afastando de algo sobre o qual ele olha. Ele tem os olhos arregalados, a boca aberta, as asas estendidas. O anjo da história deve ter essa aparência. Ele tem o rosto voltado para o passado. Onde vemos uma cadeia de eventos, ele vê uma única catástrofe, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e as despe aos seus pés. Ele gostaria de ficar, despertar os mortos e reparar o que foi quebrado. Mas uma tempestade está soprando do paraíso, que se enredou em suas asas, e é tão forte que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impulsiona irresistivelmente para o futuro, para o qual ele vira as costas, enquanto o monte de ruínas sobe diante dele até o céu. O que chamamos de progresso é essa tempestade." (Walter Benjamin, "Angelus Novus. Ensaios e Fragmentos", Einaudi, Turim, 1962).