22 Dezembro 2023
"A trajetória de Toni Negri testemunha, para mim, a grande potência do estudo, a sua força de salvar-nos das piores condições".
O comentário é de Bruno Cava Rodrigues, publicado em sua página do Facebook, 17-12-2023.
Bruno Cava é graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, publicado por Rede Universidade Nômade - UniNomade, 19-03-2023. Autor de várias obras, além do livro A vida da moeda: crédito, imagens, confiança (MAUAD X, 2020), também publicou A multidão foi ao deserto (Annablume, 2013) e, com Alexandre Mendes, A constituição do comum (2017).
Haverá inúmeros obituários, balanços, ensaios, mas me permito uma nota personalíssima.
O Toni Negri de meados dos anos 2000, quando o encontrei, pela primeira vez, em uma fala numa casa do morro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, foi o mais próximo que conheci em minha vida de um homem da Renascença.
Uma inteligência viva, voraz e universal, era essa a minha impressão. Anos mais tarde, ao resenhar Commonwealth, aludi a essa ocasião sob o título Amor e pós-capitalismo. Por que, sim, Negri naquele episódio falava da dimensão política do amor, amor cupiditas, que se recria e reinventa a partir da solidão, da pobreza, do deserto.
Nas intervenções, razão e passione em Toni se misturavam sem jamais perder a serenidade equilibrada do conjunto, sem flertar com obscuridades ou equivocidades. Como G. Bruno ou Galileu, Toni não permitiu em passagem alguma que a experiência dolorosa de seus piores momentos se infiltrasse no pensamento. Não se deixou envenenar com os dissabores da vingança ou do rancor, não hesitou em metabolizar as transformações do tempo. Era um filósofo atravessado de cabo a rabo pela tessitura histórica, dizia-se apenas um leitor e revolucionário de seu tempo, e de fato transitou e se banhou pelo húmus das lutas de rua, dos debates de púlpito e dos calores de assembleia, como Maquiavel ou Gramsci, mas nem por isso ficou pesado ou carrancudo. Os anos de chumbo, ao fim, lhe foram leves, o que exige arte e manha. Seguia vivendo assim mundanamente, tomando seus vinhos, discutindo em mesa de bar, fofocando sobre cupinchas e desafetos, teimoso, orgulhoso, alegre a toda prova.
Todos os períodos de derrotas e tribulações que atravessou, e foram alguns - a perda de 'compagni', o esmagamento político, a amargura das falsas acusações, a ascensão ao poder de quem mais desprezava - não insuflaram nele, tampouco, qualquer derrotismo. Desafio quem ler com atenção a sua obra monumental a encontrar uma única passagem que exale melancolia.
Preso a primeira vez em 1979, depois em presídio de segurança máxima, reinventou-se, antes de qualquer coisa, pelo estudo. Recriou seu pensamento a partir das fontes que conseguia contrabandear para dentro da cela, em condições de extrema insegurança, humilhação e falta de perspectivas. A trajetória de Toni Negri testemunha, para mim, a grande potência do estudo, a sua força de salvar-nos das piores condições. É mesmo capaz de mudar uma vida.
Atrás das grades, Negri estudou intensamente Spinoza, um Spinoza em boa medida filtrado por Deleuze, mas nem por isso menos original, em particular, quanto à tese da segunda fundação do spinozismo. Um Spinoza inusitadamente marxiano, e um Marx que se tornava ao mesmo passo spinozano. Desse estudo en abîme, vieram pelo menos três livros, a começar pela quebra de paradigma nos estudos spinozistas em geral, que foi Anomalia selvagem.
Na mesma temporada no inferno, estudou o bíblico Livro de Jó, a partir do que surgiria o livro A força do escravo, e também estudou com afinco a obra do poeta Giacomo Leopardi. Por assim dizer, o Hölderlin "italiano", embora para Negri o que interessava era o Leopardi europeu e iluminista, e não o poeta nacional reconstruído pelo Risorgimento. Posição especial para Negri é ocupada pelo poema de resiliência e pessimismo alegre, "La ginestra" (ou "Flor do deserto"), de resto magnífico, eu só pude apreciar mesmo depois de imergir no idioma. Essa obra poética de Leopardi, do século XIX, serviu ao filósofo encarcerado para um longo e virtuoso livro, publicado quando em liberdade, em 1987, não por acaso intitulado Lenta ginestra (lamentavelmente ainda sem edição brasileira).
Quando presenciei a fala de Toni em meados dos anos 2000, acabava de ser lançado, em português, o seu Alma Venus Multitudo, que escrevera na segunda estação na prisão italiana, por causa de acusações requentadas. As provas se resumiam a delações premiadas de ex-companheiros arrependidos. O recém-lançado livro se desdobra ao modo geométrico, em proposições, à semelhança da Ética de Spinoza.
Àquela altura, no umbral dos setenta anos, Negri bem podia voltar-se às memórias, a transmitir com sabedoria o legado das lutas autonomistas que culminaram no Movimento de 1977, dos entrelaçamentos com os 'soixante-huitards' (Guattari, Deleuze, Foucault, seus amigos...), da espantosa (e insuperada) reelaboração do sistema-mundo em Império e Multidão, mas não. Tudo nele era projeto, construção, senso de urgência. Tudo continuava em aberto, prestes a.
Sempre discordei de François Zourabichvili, quando escreveu que a ausência de projeto é a condição negativa do que Deleuze chama de "crer no mundo". Como se sabe, o deleuziano Zourabichvili demarca os pensamentos de Deleuze e Negri ao atribuir ao primeiro um viés político puramente tático de escaramuças e desestabilizações locais, enquanto o segundo apostava (ainda? resíduo voluntarista?) em um telos, uma marcha avante dos movimentos, a multidão.
Pois, como já escrevi noutra parte, não enxergo essa linha divisória forte, me soa quase como um rótulo preguiçoso do Zourabichvili, não. A multidão é tão conceito "otimista" quanto o proletariado em Marx, ou a democracia absoluta em Spinoza, e o que em Deleuze é pessimisme joyeux também pode ser encontrado por toda parte em Negri, na incessante criação apesar de tudo, na inquietação insuprimível diante da reabertura do tempo histórico, na imaginação da obra, e na reimaginação de si pela obra. Tal como um humanista renascentista realizava a síntese entre passado e presente apontando para o novo, a exemplo, entre outros, de Pico della Mirândola (citado por Negri e Hardt em Império).
A multidão, limiar problemático e horizonte insuperável da filosofia política no século XXI. Daí, mais rigorosamente conceitual, mais "problematizante", do que o conceito de 'Comum', fácil e rapidamente recapturado pela doxa antineoliberal vulgar.
Mas nem por isso o conceito é teoricamente otimista: multidão quando devém Uno se torna populismo; quando o medo muda de lado, devém Estado; e multidão pode inclusive desembocar no fascismo, quando devém polícia (neste caso, se dá em dois tempos: primeiro as singularidades devêm todo mundo e depois todo mundo vira polícia). De toda sorte, para começar, se ainda há capitalismo operativo hoje, se ele ainda funciona, habemus multidão, o conceito de classe à altura.
Definitivamente, Toni não apreciava o barroco. Era um temperamento de meridiano classicismo, o que explica, aliás, parte do êxito estrondoso na parceria com Michael Hardt. O encontro com Hardt levou Negri a encontrar a si mesmo, na fluência de uma prosa clara e certeira. Quando, certa vez, lhe confidenciei sobre o sabor neobarroco da conjuntura pós-Junho (de 2013), me alertou que o barroco era a exaltação do poder e a internalização da crise. Depois fui achar, em "Anomalia selvagem", que Toni tinha por paradigma o Seiscentos holandês, em detrimento do italiano, justo porque aquele não conhecia o barroco - como é sabido, na arte é o século de Caravaggio, Bernini, Borromini ecc.
Nas Províncias Unidas em que viveu Spinoza, a grande crise do tempo não se internalizou na forma de uma teoria do poder e suas mediações transcendentes, como ocorrera nos êxtases e agonias da Roma barroca ou, bem mais tarde, no Romantismo Alemão (interiorização exasperada da Revolução Francesa).
Toni não aceitava, portanto, que a multidão fosse qualificada como barroca, pois aí já não havia mais. A multidão era de um classicismo pleno, luminoso, o mesmo de seu Spinoza, seu Marx ou seu Leopardi.
Não tenho nenhum pudor em reconhecer que Toni foi meu mestre, que soube me tocar com uma novidade radical, que me impactou nas maneiras de pensar e viver. A mim e a muitos outros. Como escreveu Deleuze a propósito de Sartre, triste a geração que não tem mestres. Os da nossa foram Negri, Graeber, Butler, Haraway, Holloway... Corresponderam à modernidade que viríamos a nos tornar e lograram fabular um sentido aos nossos entusiasmos difusos, que assim puderam se derramar no mundo, como práxis.
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Ele foi meu mestre. Comentário de Bruno Cava - Instituto Humanitas Unisinos - IHU