10 Fevereiro 2017
Como pensador, Toni Negri tem apresentado novas interpretações sobre as atuais configurações de poder e estrutura das sociedades. Aos 83 anos, tornou-se referencia para análises de fenômenos bastante atuais, que vão da ascensão de um novo tipo de direita, mais agressiva e sofisticada, às mobilizações catárticas de resistência, tais como o movimento Occupy, nos Estados Unidos, os levantes da Primavera Árabe ou mesmo as mobilizações de junho de 2013 no Brasil.
Entre as ideias que defende está a de que as formas tradicionais de organização política, como partidos e sindicatos, perderam importância em um cenário complexo marcado por alterações estruturais na produção e divisão de trabalho nas metrópoles. É nas ruas que surge a resistência mais ativa às novas ofensivas capitalistas de privatização de bens comuns, corpos, afetividades. Entender como se dá o fenômeno e saber lidar com a diversidade das multidões e suas demandas é fundamental para enfrentar a onda conservadora que assola o planeta e reorganizar a resistência em favor de uma sociedade mais democrática e justa.
É a partir desse prisma que Negri faz sua leitura sobre a crise institucional que se abateu sobre o Brasil. Ele esteve em São Paulo em outubro de 2016, a convite da editora Autonomia Literária e FFLCH-USP, e teve oportunidade de conhecer e conversar com integrantes de diferentes correntes da esquerda e de movimentos sociais, além de acadêmicos, estudantes e ativistas. Neste artigo, compartilha suas dúvidas e conclusões após a visita.
A tradução é da Fundação Rosa Luxemburgo e publicada por OutrasPalavras, 07-02-2017.
Foto: Outras Palavras
Eis o artigo.
Em viagem a trabalho para o Brasil encontrei políticos e intelectuais brasileiros, apresentei a eles alguns questionamentos e recebi respostas distintas e às vezes contraditórias sobre a crise constitucional em curso e sobre a derrota do PT (em âmbito parlamentar e, por último, nas eleições municipais). A partir das respostas a essas questões, gostaria de tirar algumas conclusões provisórias. Meus interlocutores eram pessoas de esquerda, de uma esquerda brasileira hoje muito fragmentada.
Primeira pergunta: por que o PT reprimiu as lutas modelo Occupy de 2013-2014 a ponto de desvirtuar o seu significado e permitir que a direita tivesse hegemonia sobre elas? A resposta que recebi dos expoentes do PT foi unívoca e terrivelmente decepcionante.
Por parte de todos – este é um ponto realmente grave, por parte de todos sem nenhuma hesitação, sem qualquer arrependimento (ainda que muitas vezes com o embaraço da mentira) – obtive uma só resposta: esses movimentos ameaçavam desde o início a manutenção da nossa governabilidade. Não vou nem considerar comentários sem sentido, como quando alguém disse que as lutas de 2013 haviam sido inspiradas pela CIA, e isso não somente no Brasil, mas também no mesmo ciclo de Istambul e do Cairo… É claro que, a partir dessa declaração, evidentemente insensata, dá para concluir que o PT já tinha uma relação ruim com as populações metropolitanas, que, envolvidas na crise econômica do país e tocadas pela inflexão neoliberal das políticas de Dilma, pediam desde 2013 ao governo e ao município uma mudança de linha.
A segunda pergunta foi: por que tantos jovens negros continuam morrendo? Não me foram dadas respostas sobre esta questão. Como sempre, desde que visito o Brasil, a questão segue completamente silenciada. A incompreensão dessa situação, a falta de vontade de assumi-la como problema fundamental, foi determinante na impotência do PT, não digo para resolver, mas simplesmente enfrentar o problema das favelas (fora da dinâmica do capital imobiliário), e agora precipitou um vazio de relações que não só permitiu, mas facilitou a entrada da direita religiosa (e não religiosa) em meio ao proletariado negro.
A função das igrejas evangélicas é subvalorizada em sua capacidade de organizar os novos estratos da classe média dentro e fora das favelas e isso permitiu a penetração ideológica da direita e de uma propaganda de “valores” totalmente subjugada a propostas reacionárias e/ou de restauração da moralidade etc. Provavelmente aqui está o nó de um dos pontos centrais da crise do PT, sua perda de contato (ou de alguma forma da capacidade de endereçar-se) com o proletariado negro do sistema industrial em crise (se não em dissolução) nas periferias das grandes metrópoles (nos estados de São Paulo e Minas Gerais, particularmente).
É dentro da ex-classe operária (dividida agora entre nova classe média e multidões desempregadas e precarizadas) que se revela a crise mais pesada para a esquerda – lá onde ela era hegemônica. A perda de hegemonia nesses estratos do proletariado metropolitano é sentida por quadros do PT como uma traição. Olha-se com espanto a emergência e afirmação de novos “quadros” negros da direita. Em suma, parece que há uma completa ignorância em relação às modificações estruturais na produção e na divisão do trabalho metropolitano – ao qual se agrega o abandono, como veremos, dos estratos proletários mais pobres.
Terceira pergunta: por que o PT não conseguiu responder ao ataque da direita (desde 2013) fazendo com que as organizações de massa ligadas ao partido também reagissem? Aqui as respostas mostram que também com as organizações tradicionais (a central sindical CUT, o movimento camponês MST etc.) a relação já havia se tornado irrelevante, ou talvez subsistisse apenas para fins de propaganda. Os sindicatos tornaram-se corporativizados, com os mesmos problemas que existem na Europa diante da ofensiva “empreendedora” do empresariado financeiro; o MST tornou-se frustrado pela recusa ou pela maneira lenta e contraditória das expropriações fundiárias (e, consequentemente, radicalizou-se em um surdo ressentimento em relação a um governo que não podia, contudo, abandonar para não ficar sujeito ao contra-ataque das forças do latifúndio agrário). Sindicatos industriais e rurais tornaram-se mecanismos de controle político e, possivelmente, até de repressão. Como pedir a estes uma reação organizada frente à prevalência da direita? Quanto aos movimentos sociais ou ao povo, estes também haviam sido duramente reprimidos.
Aqui provavelmente dá para compreender a conquista da hegemonia nos protestos metropolitanos por parte de uma nova direita que, pela primeira vez desde 2014, consegue levar às ruas centenas de milhares de pessoas em meio à ausência de qualquer resposta antagônica. O elemento que incendeia e permite à direita o predomínio nas ruas está ligado à campanha contra a corrupção que, de maneira conjunta, poder judiciário e grande imprensa desencadearam contra o PT, colhendo com perfeição (“a tempestade perfeita”) o momento de crise no relacionamento do partido com a massa. O modelo utilizado para o ataque contra o PT por parte do poder judiciário e da grande imprensa é exatamente o mesmo que o da operação Mãos Limpas (o juiz Moro, que representa o centro da iniciativa judiciária, havia escrito e teorizado a respeito).
Duas breves reflexões sobre isto: a corrupção de boa parte das elites do PT nasce da necessidade de equilibrar a “maioria” no parlamento brasileiro, onde o PT nunca obteve maioria; complica-se, então, pelo apetite constituído no hábito da corrupção política de enriquecimento pessoal de muitos expoentes do partido. Trata-se, contudo, de corrupção generalizada do sistema político brasileiro: a força e a astúcia da direita (e do sistema jurídico/midiático) foi lançar a denuncia sobre o governo do PT. Parece que agora, para além do desastre do PT, a magistratura está endereçando-se contra setores da direita – sem, todavia, exercitar a mesma eficácia terrorista que se produziu em relação ao PT.
Seguem duas perguntas. Uma primeira: por que com três presidências o PT não lançou mão de uma reforma constitucional que garantisse a governabilidade sem a necessidade de corromper? E em segundo lugar: por que naquele mesmo período não construiu um sistema de comunicação/mídia etc. que permitisse ao PT pelo menos alguma defesa contra os dinossauros midiáticos (Globo, Folha etc.) deste país?
À primeira pergunta, obtive respostas ambíguas e confusas. Para alguns, não seria possível mexer na Constituição de um país que acabara de sair de um longo parêntese ditatorial. Consequentemente, a ideia de governar por meio da corrupção, ou seja, retomando o hábito da direita, não parece ter perturbado o projeto do PT desde o princípio. Um sistema constitucional em que o presidente é eleito com 60% dos votos – tais os números do sucesso de Lula –, numa república federal semipresidencialista em que o Congresso e o Senado não alcançam – num sistema eleitoral quase proporcional – nunca a maioria (presidencial) necessária para o funcionamento legislativo e executivo, é um monstro constitucional, condenado à instabilidade e a negociatas contínuas – deixo que imaginem os métodos.
Quanto à questão midiática, muitos dos meus interlocutores foram menos reticentes. Parecia-me entender que houve, desde o início dos governos do PT, um acordo tácito de fair play com os conglomerados midiáticos: nenhum ataque a eles por parte do governo e recíproca lealdade por parte da mídia. Esse acordo se rompeu assim que a direita conquistou as ruas e a capacidade de expressar uma oposição orgânica. Naturalmente, não estou imputando à ingenuidade do PT a responsabilidade pela queda do seu governo, da sua força e, sobretudo, da perda de hegemonia. O problema está, evidentemente, em outro lugar, na incapacidade política de resistir à ofensiva neoliberal, de abrir uma resposta multitudinária (como aquela acenada em 2013 por parte dos movimentos metropolitanos), mas sem dúvida essas ingenuidades, que se tornaram estruturais, também não ajudaram.
Uma nova questão: por que a crise econômica mundial foi percebida com tal violência no Brasil a ponto de se tornar incontrolável, ou seja, controlável somente com instrumentos neoliberais? Aqui a resposta foi mais precisa. Temos aqui os documentos, por parte do PT, que ilustram a situação. Dizem: ganhamos as eleições presidenciais de 2014 com uma campanha à esquerda (eu acrescento: tentando retomar o contato com os movimentos reprimidos em 2013), mas Dilma, apenas reeleita, inverte a sua política, intimidada pelas forças da crise e da recessão. Adota as medidas macroeconômicas clássicas, mas de uma tal maneira que, incidindo sobre as políticas energéticas, expõe os nervos das forças financeiras globais e delas provém uma dura reação.
Vou poupá-los aqui da narração do que seguiu, pois não é nada além dos acontecimentos, ou seja, a formação de um bloco de oposição que vê o partido tradicionalmente aliado ao PT (o PMDB) converter de súbito sua linha em termos neoliberais; uma tentativa de Dilma de corrigir a linha… imediatamente rompida. É como dizer que o omelete neoliberal, timidamente provado, não caiu bem para o PT, mas, em vez disso, acabou imposto goela abaixo pela direita na forma de um “golpe de Estado” – uma direita agora capaz, esta a sua “novidade”, de identificar políticas financeiras no cenário global e privilegiar medidas que simplesmente favoreçam os ricos, como fazia tradicionalmente.
Mas como é triste ouvir homens que foram militantes, marxistas, companheiros de movimento interpretarem tudo em termos de equilibrio governamental e parlamentar quando perderam a oportunidade de relançar uma ação à esquerda e renovar o próprio partido, pois reprimiram as lutas de 2013! Nota-se, além do mais, que em 2008 alguns deles haviam considerado que, diante da crise, haviam construído suficientes barreiras de defesa. Tratava-se, evidentemente, de uma ilusão. Mas estavam sinceramente convencidos de que haviam criado um ciclo independente [2]1do comando financeiro do Norte – um ciclo financiado pelo petróleo e defendido pelas alianças políticas dos Brics.
Outra questão: o que é esta bendita “classe média” que as políticas do PT no governo criaram e que – incompreendidas – teriam cometido o parricídio? Aqui as respostas que obtive levam todas ao ano de 2013. Para alguns do PT, 2013 foi um delito que o povo cometeu contra si mesmo, contra o poder popular – em suma, é como se uma besta imunda houvesse então se revelado… e se revoltado. É estranho como a incompreensão política das necessidades de “contrapoderes” ativos na sociedade pode se revelar letal para as forças da velha esquerda que se tornaram social-democratas! Há uma total incompreensão sobre a ação de minorias nas multidões ativas. Falando com ex-funcionários da prefeitura de São Paulo – já passada para a direita nas eleições recentes – que provocaram acidentalmente os processos de luta de 2013 ao se recusarem a reduzir o preço dos transportes, a minha percepção da incapacidade de compreensão dos mecanismos elementares do poder por parte desses burocratas foi confirmada.
Eles têm em mente uma dupla ilusão: que a legitimidade das lutas não pode ir além da fábrica e que as lutas sociais são antidemocráticas. Todo tecnocrata entende perfeitamente que a metrópole é, a esta altura, o mecanismo central da acumulação capitalista, que a partir dela ocorrem os processos de extração de mais-valia, mas não querem entender que a força de trabalho metropolitana deve ser, por esse motivo, de alguma forma reconhecida e eventualmente recompensada – que aquele “comum” metropolitano explorado deve ser, de alguma forma, “remunerado” (por exemplo, por meio da gratuidade do transporte numa metrópole de 18 milhões de habitantes, com uma extensão e com um caos que tornam a mobilidade cotidiana uma tarefa árdua).
Contudo, não há uma resposta precisa ao que seja essa fantasmagórica nova classe média. Sociologicamente, isso é o que já havíamos notado, trata-se de uma classe operária que evoluiu em novas formas de composição cognitiva e metropolitana, agora atacada pela crise e pelas políticas neoliberais: ela defende conquistas que acreditava ter adquirido e se rebela contra uma situação miserável que considera inaceitável. Politicamente, essa multidão metropolitana é a classe produtiva que quer ser reconhecida como tal. Os movimentos representaram uma espécie de introdução à política e esboçaram – numa aproximação ao poder – uma tentativa de exercício de contrapoder. Em consequência, o fracasso dos atos dos movimentos, decorrente da repressão, tolhe qualquer possibilidade de recuperação e mediação no governo da cidade: abre caminho para ações de reivindicação baseadas em poderes de mediação e de decisão não mais expressos pela vontade democrática nem sujeitos a um controle democrático. Seus instrumentos foram desconsiderados e/ou destruídos. Agregue-se que tudo isso acontece sobre um território de ruínas. Em São Paulo, simplesmente andando pela cidade ou em algumas periferias de classe média, a miséria transborda: miséria do tipo “indiana”, pobres deitados pelas ruas – não se sabe se dormindo ou morrendo –, pedintes por todos os lados, violência noturna etc. Espetáculos intoleráveis.
Nova pergunta: qual é o peso e qual é o jogo dos vários componentes da direita brasileira (a fascista antiga, a moderna neoliberal, a nova direita militante, o fundamentalismo evangélico, a direita católica etc.)? Se o elemento determinante da sublevação reacionária foi a classe média em crise, por que o foi e como? Vou poupá-los dos testemunhos de algumas pessoas, integrantes do PT, que encontrei: perseguidas e submetidas a uma espécie de linchamento público, por parte de transeuntes, de conhecidos, de lojistas – um deles me relatou ter sido chamado de “comunista” e “ladrão” na classe executiva de um avião… ameaças e manifestações sob as janelas dos “petistas”, denunciados como coveiros da nação, a crise econômica foi imputada a eles… sem esquecer (e certamente não deve ser esquecido) que se aguarda o encarceramento de Lula.
Voltando a nós: uma novidade, por exemplo, é o fato de que uma direita agressiva, bélica, se manifeste hoje pelas ruas. É desde os tempos da queda da ditadura que algo assim não acontecia. A derrocada do poder municipal do PT foi maciça nas eleições no começo de novembro de 2016; nenhuma cidade foi reconquistada nos locais em que o PT tinha quase monopólio. Então, o que é a nova direita? Em muitos aspectos, é algo indefinível; no momento, é uma força indistinta, ferozmente anti-PT, muitas vezes antissindicatos… os elementos ideológicos clássicos do neoliberalismo atravessam-na. Aceita as pesadíssimas operações que o novo governo decidiu de imediato: rigor orçamentário, flexibilização do mercado de trabalho e, sobretudo, a decisão de limitar – constitucionalmente – por vinte anos a progressão das despesas do Estado no ritmo da inflação (idêntica operação feita por Macri na Argentina). O déficit do sistema previdenciário justificaria, além do mais, o fato de se fixar em 65 anos o limite de aposentadoria, até então fixo nos 35 anos de contribuição de serviço. Estado mínimo, privatizações etc. constituem uma perspectiva próxima.
Poderá esta direita manter-se por muito tempo ou ela também está destinada a se dissolver? A respeito disso as opiniões são distintas, a questão permanece em aberto, mas é claro que uma nova fase teve início. O Brasil é um país potencialmente riquíssimo, mas sua estrutura social é talvez mais injusta (quase absurda) que a de outros países com potencial análogo. Uma direita que mantenha intactas as atuais condições sociais é impensável: a passagem do PT ao poder, neste sentido, marcou uma virada decisiva. Para a direita, manter-se no poder poderá significar então desorganizar as estruturas democráticas do Estado. Há algo de patético nos meus interlocutores do PT, quando os repreendi pelo comportamento durante os movimentos de 2013-2014: “mas nós defendemos o Estado de Direito!”. Mas já não era mais defensável, isto eles não entenderam – então melhor apostar nos contrapoderes dos pobres do que ser esmagado pela contrarrevolução, pela desorganização autoritária do Estado de Direito –, que a direita não pode não fazer. O que é então a direita? É uma nova máquina de poder que não poderá fazer outra coisa além de consolidar, em formas autoritárias, o controle financeiro sobre o desenvolvimento do país. Além do mais, a este tronco enxerta-se uma direita racista, escravagista, branca e oligárquica que, desde sempre, mesmo quando não dominou, impôs no Brasil sua vontade. Tendo presente este dado, é impensável no Brasil qualquer slogan do tipo indignados que equipare direita e esquerda. No Brasil, antecipou-se Trump.
Eis que surge uma última pergunta: o que permanece do partido (PT)? Por que não se produziu uma mudança de quadros, um rejuvenescimento do partido? Por que se revelou um corpo mole contra o qual a estocada do inimigo foi fácil e profunda? Minha opinião é que o PT não conseguirá mais se apresentar como uma força hegemônica. Por melhor que seja, virará um dos pequenos partidos de esquerda que pululam no cenário brasileiro.
Distinto é o parecer de alguns dos dirigentes do PT, coisa não irrelevante dada a inteligencia estratégica que continuam a expressar. Eles sustentam que o partido deve renascer e é interessante a forma em que imaginam este renascimento. Deve voltar ao passado, ou seja, renascer como um movimento. Um movimento horizontal que se apresente em todas as faixas da sociedade onde se trabalha e se é explorado. A situação mudou completamente desde que o partido nasceu, e os processos de exploração estenderam-se sobre toda a sociedade: é a partir daí, então, que se deve agir. E, no entanto, junto à mobilização da sociedade, a verticalidade de uma organização é necessária. O Brasil é um continente; uma ação reformadora não pode avançar senão por meio de um governo, uma verticalidade mediadora que saiba colocar-se à altura daquilo que exige o país e da terrível complexidade das questões e desafios que aparecerem. E aqui eles reivindicam novamente o fato de terem conduzido uma política qualificada, para além da revolução interna no Brasil, por terem compreendido a necessidade de uma unidade continental da América Latina e por terem iniciado uma aliança política intercontinental – a dos Brics.
Representação horizontal, unidade continental, conexão com os países do hemisfério sul contra o capitalismo financeiro: para eles, este ainda parece ser o quadro no qual renascerá o partido. O que dizer, então, sobre este ponto? O fato de que esses dirigentes não queiram discutir os eventos de 2013 e que o atribuam à CIA é algo bastante cômico – como eu já disse. É necessário, todavia, admitir que em quinze anos esses homens mudaram o Brasil e tiraram da pobreza 50 milhões de pessoas. Enfim, é necessário admitir que o PT sucumbiu ao seu próprio sucesso. Na verdade, o que é diferente, na experiência brasileira em relação à de outros países, é o fato de que a direção partidária do PT foi derrotada pela classe média que havia se emancipado de uma condição de subalternidade e que havia sido criada a partir das cinzas de uma classe operária já envelhecida.
Mais do que uma derrota política, o que está acontecendo no Brasil parece ser para a velha direção uma nêmese antropológica – e talvez o seja. É incontestável também o fato de que aquelas novas gerações, que poderiam representar mais um avanço na revolução brasileira, tornaram-se, em vez disso, presas da ofensiva da direita neoliberal. Não sei, portanto, o que acontecerá com o PT. Em todo caso, descarto que possa se tornar de novo aquilo que foi em seu momento mais feliz, uma força capaz de hegemonia. De todas as formas, não dá para jogar tudo fora, como insistem alguns: há ainda muita vida ao redor desse partido e qualquer movimento que queira assumir a tarefa de reconstruir uma hegemonia deve manter isso presente.
Aqui se deve agregar uma defesa explícita do Lula “revolucionário” e também uma leitura não irrisória do seu papel como “estadista”. Se de fato é inaceitável que ele tenha considerado as manifestações de 2013-2014 como promovidas pela CIA, sem dúvida a iniciativa de Lula no terreno latino-americano e internacional para garantir os fundos internos e o desenvolvimento externo do projeto petista danificou, se não rasgou, a teia de comando financeiro global e talvez tenha indicado um modo de contornar o controle: construir unidades continentais homogeneas a partir das quais se pode exercitar resistência e redefinir o poder sobre o território global. Quem não tem presente esses pressupostos não compreende o quanto o processo de inserção do Brasil e da América Latina no sistema global (a condição GlobAL[3])2é avançado. Lula intuiu uma passagem para ruptura: unidade continental latino-americana, abertura – com tonalidade não apenas tática – aos Brics, com particular interesse nos mais “sujos” – África do Sul, Índia e, sobretudo, Irã. Esta intuição de Lula (permitam que eu expresse respeito pela sua inteligência revolucionária) é leninista.
Essa é mais uma razão para insistir sobre o fato de que uma alternativa ao PT, além de se desenvolver no terreno da classe e de se abrir para a compreensão da questão racial nos processos organizativos, precisa recolher do PT aquela intuição política global (para além das palhaçadas populistas do bolivarianismo e em ruptura com o refluxo nacionalista do progressismo andino).
Movimentos de reconstrução? Não sei se existem, e também não sei se novas experiências organizativas que tenham futuro estão em curso. É certo, porém, que existe a sensação generalizada no Brasil de que há algo de novo no ar – contrário e irredutível à direita neoliberal e racista. É algo novo que vai além da expectativa de uma crise interna da classe neoliberal do governo, supondo que a atividade judiciária possa agora criar danos nessa direção. De todas as formas, não acredito muito que algo novo possa surgir assim tão rápido. Também no Brasil o ciclo neoliberal está distante de sua conclusão, mas é evidente que o “golpe de Estado”, além de atingir o PT, atingiu o sistema e a Constituição de 1988, enfraqueceu-o, talvez tenha bloqueado as articulações e a capacidade de mediação do poder. É aqui, portanto, que me parece possível ter em conta os encontros com os companheiros dos movimentos, atentos à atual fase da crise. Foram eles que me indicaram linhas de recomposição e de programa para reconstruir uma força antagonista.
1. A denúncia da violência da polícia, do Estado. Uma violência que não se dirige somente contra a população negra, mas contra qualquer iniciativa social – violência institucional, numa situação em que a “exceção” é norma. É tocante a normalidade de uma violência escravagista e colonialista, mantida e desenvolvida nas e pelas instituições do Estado. Neste ponto, a atenção unânime concentra-se no desenvolvimento de estratégias de resistência que permitam evitar as condições de excepcionalidade sofridas. Emerge aqui uma característica do debate autônomo brasileiro no qual, dentro das qualificações de formas de luta e de programa, a demanda pela construção de uma “política do desejo” se torna central. Entendem-se assim ações políticas em que prevalecem componentes do desejo, formas de agregação nas quais os pontos motores são os aspectos criativos do fazer política. Pacifismo contra a polícia? Certamente não, mas criações alegres de formas de resistência contra a violência e a brutalidade cega do poder. Compreende-se aqui por que Félix Guattari seja ainda tão citado no Brasil.
2. Há lutas em curso, sobretudo nas escolas secundárias. Lutas que envolveram grande parte dessas instituições em São Paulo e que também passaram para o estado do Paraná. São lutas pelo financiamento público da escola e pela autonomia no ensino. Lutas longas, ocupações que duram meses, conduzidas pelos garotos e garotas e apoiadas pelas famílias. A essas lutas pelas escolas unem-se, com bastante frequência, lutas de estilo argentino, parte dos movimentos feministas, juntos contra a violência sexual e contra a violência sobre a reprodução (reivindicações: garantia de renda, trabalho doméstico remunerado etc.). Em toda a América Latina, seguem, após a derrota dos governos progressistas, sobretudo lutas nas escolas e lutas conduzidas pelas mulheres. Trata-se de novas frentes sociais – centrais à luta de classe. O conhecimento e a reprodução constituem, de fato, nós essenciais que o capital deve dominar – formas diretas da emergência de um tecido biopolítico sobre o qual se dá o confronto de classe. É ali que se abrem novos espaços sociais de luta anticapitalista.
3. E depois a luta das populações negras, antes de tudo contra a chacina dos inocentes, ou seja, a carnificina contínua dos jovens às bordas das favelas. Mas a questão racial não emerge somente em relação ao genocídio da juventude negra – a questão racial se dá em todas as partes da sociedade brasileira, constitui “a exceção” sobre a qual se funda a “constituição material” do país. Também a questão da pobreza é completamente ligada à dimensão racial-escravagista da sociedade brasileira. Não dá para cogitar que o Brasil entre plenamente na democracia sem que a questão racial seja resolvida. As lutas dos negros e negras constituem, portanto, a verdadeira sublevação da sociedade brasileira. Discuti com jovens companheiros e velhos ativistas negros esta sua conclusão: sem a direção de uma força militante negra, será impossível construir qualquer forma de organização autônoma no Brasil, assim como qualquer tipo de reviravolta política de libertação.
4. As principais forças que hoje se movem no terreno social em São Paulo, particularmente o movimento contra a tarifa dos transportes urbanos e o “movimento dos sem-teto”, conduzem a discussão sobre um terreno instantaneamente político. Esses movimentos, protagonistas das lutas de 2013-2014, o primeiro por ter iniciado, o segundo por ter somado a força de dezenas de milhares de famílias “sem-teto”, são também os que têm uma consistência numérica (quadros de organização) e um respaldo importante da massa. São forças que produzem programa político na metrópole e que, de uma nova forma, constituem contrapoderes sociais no âmbito metropolitano. Na discussão com esses companheiros, o tema do “comum” é central, tornando-se imediatamente evidente – assim como é – pelas lutas contra as tarifas do transporte e também pela moradia. O “comum” pode ser traduzido – dizem esses companheiros – em objetivos imediatamente viáveis. Além disso, o debate destacou a importância da “greve social” como forma de luta que pode unificar as forças que se agitam no contexto metropolitano. Resta o fato de que as grandes manifestações de massa (e pacíficas) são ainda consideradas uma arma fundamental.
5. O que fazer? A conclusão de muitos desses companheiros de movimento está baseada no fato de que o PT tornou-se uma “esquerda branca”, pálida em relação à questão racial e mole ao confrontar políticas neoliberais. O partido perdeu a relação com a sociedade e não poderá mais ser uma locomotiva para o desenvolvimento político. Há, então, que se encontrar forças políticas e construir uma nova organização social e política partindo dos movimentos. A autonomia dos movimentos é agora fundamental para começar uma nova temporada política.
E como? O ponto central – como foi visto – será conjugar o (projeto do) comum como tema unificador das lutas. A “renda universal incondicionada biopolítica” é, neste quadro, a trama sobre a qual podem se desenvolver o discurso político e a mobilização de defesa da “bolsa família” e até da gratuidade dos transportes metropolitanos. E, sempre neste quadro, devem ser destacados outros três campos de luta: 1) intervenção sobre escola e conhecimento; 2) sobre o trabalho de reprodução (particularmente o feminino); 3) sobre a questão racial e a pobreza.
A primeira intervenção sobre escola e conhecimento é central na atual fase de acumulação capitalista no território cognitivo. Não por acaso a escola se tornou um dos pontos centrais de construção das novas legitimidades neoliberais. Por isso, as lutas em curso no território da escola são estratégicas e nelas podem se construir novas vanguardas. Mas o discurso pode se alargar e provavelmente é deste ponto de vista – este da crítica e da intervenção sobre o conhecimento – que o tema da nova classe média poderá ser enfrentado – porque é aqui, dentro desta composição social e produtiva, que o conhecimento é, sobretudo, explorado. A classe do trabalho intelectual e de serviços já constitui – também no Brasil – a média social e é sobretudo daqui que se extrai a mais-valia. Quanto às lutas sobre a reprodução, a iniciativa argentina me parece ressoar também no Brasil como perspectiva para o movimento. No que tange à questão racial e aos temas da pobreza, já nos pronunciamos. Partindo de São Paulo, talvez se pudesse impor um movimento que combine essas diversas, porém convergentes linhas de ação. Isso foi o que aparentemente pude compreender ao interrogar os movimentos autônomos de São Paulo.
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1 Disponível em: http://www.consuladodebolivia.com.ar/2016/05/29/disertacion-del-vicepresidente-bolivia-alvaro-garcia-linera-la-universidad-buenos-aires
2 A propósito, ver a entrevista concedida por Marco Aurélio Garcia ao jornal Página 12: https://www.pagina12.com.ar/diario/elmundo/4-112803-2008-10-05.html
3 Sobre o tema, confira o livro de Toni Negri Glob(AL): biopoder e luta em uma América Latina globalizada, publicado no Brasil em 2005 pela editora Record. (Nota da Edição)
4 Disponível em: http://rosaluxspba.org/a-multidao-de-negri-o-bem-viver-de-acosta-e-um-arabe-no-centro
5 Disponível em: http://www.euronomade.info/?p=8460
** A tradução e publicação deste texto foram organizadas pela Fundação Rosa Luxemburgo. Trata-se da edição número 10 do PONTO DE DEBATE.
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Toni Negri: impressões de uma visita ao Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU