16 Mai 2022
John Holloway vive e leciona em Puebla, México, há cerca de 30 anos. É professor do Instituto de Ciências Sociais e Humanidades, da Benemérita Universidade Autônoma de Puebla, onde ministra um curso sobre O Capital, de Karl Marx, e outros que misturam teoria crítica, crise do capital e as possibilidades atuais de superá-lo.
Diz que identificar é uma forma de dominar, mas considerando sua carreira de mais de quatro décadas, não tem como deixar de associar Holloway ao marxismo autonomista, contrário à tradição leninista, centrada na classe operária e na tomada do Estado.
A propósito dos 20 anos da publicação de seu livro mais conhecido, Mudar o mundo sem tomar o poder, Brecha conversou com Holloway no Jardim Etnobotânico, em Cholula.
A entrevista é de Ignacio de Boni, publicada por Brecha, 13-05-2022. A tradução é do Cepat.
Há vinte anos, em 2002, foi publicado o livro 'Mudar o mundo sem tomar o poder' no qual você diz que o Estado é uma forma de administrar e reproduzir a lógica do capital, não fazendo muito sentido apelar ao poder estatal como instrumento de transformação social. O livro fez muito sucesso. Inspirou organizações militantes em vários países latino-americanos e motivou debates sobre a possibilidade de organizar projetos emancipatórios autônomos, em meio a um ciclo de lutas sociais e embates contra as políticas neoliberais. Como surgiu o livro e como você se lembra daquele contexto?
Penso que as primeiras intuições de Mudar o mundo... surgiram nos anos 1970, no contexto de um debate teórico-político sobre o Estado como uma forma social derivada da dinâmica do capital, ou seja, vendo o Estado como uma coagulação das relações sociais capitalistas. A partir daí, parecia-me óbvio que não podíamos pensar em uma revolução através do Estado.
Depois, em 1991, cheguei ao México, e em 1994 houve o levante zapatista, que foi... maravilhoso. Esse acontecimento se vinculou ao que eu vinha pensando em anos anteriores, sobre encontrar formas de emancipação que não estivessem canalizadas (e neutralizadas) pela lógica do Estado.
Considero que isso me deu mais força para escrever o livro. Sua publicação veio logo após a crise de 2001, na Argentina, com o Que se vayan todos. A coincidência do argumento central do livro com as explosões de raiva social fez com que tivesse uma repercussão que eu não esperava. Pensava que ninguém se importaria.
As frases iniciais do livro ficaram famosas: “No princípio era o grito. Nós gritamos”. O que é esse grito? Avalia que é basicamente o mesmo hoje, como há 20 anos?
O grito é um grito de rejeição. É: “Não queremos”, “Não o aceitamos”, “Não iremos permiti-lo”. A ideia do grito tem uma origem meio tola, mas foi como me ocorreu. Nos anos 1970, eu estava em uma manifestação em Frankfurt e vi um cartaz que tinha algo escrito assim “!!#?*/!!”, um conjunto de sinais que expressava rejeição, mas que não sabiam bem como se expressar, um grito de sufoco, de fúria sufocada.
Penso que o grito de hoje é de desespero, de profunda ansiedade. Não é apenas: “Estão nos explorando”, não é apenas raiva contra a desigualdade, mas é um grito mais consciente do perigo da extinção ou da catástrofe. Quando vemos o que está acontecendo no mundo com a pandemia, a guerra, a ameaça de uma guerra nuclear, o aquecimento global..., penso que é um grito muito mais consciente da possibilidade de uma catástrofe.
O subtítulo do livro é “O Significado da revolução hoje”. E hoje? Qual é?
Mudar o mundo… termina dizendo que não sabemos. Hoje, também não sabemos. Quando observamos o capitalismo, está claro que temos que superá-lo, que a revolução é mais urgente do que nunca, muito mais urgente do que em 1917, por exemplo. O que nos aparece hoje como uma possível consequência da dinâmica capitalista é muito pior do que há 100 anos, pois tem a ver com a destruição das condições que tornam possível a vida no planeta.
A revolução é romper a dinâmica social atual, que é a dinâmica do dinheiro e do capital. Como fazer isso? Bem, penso que a primeira coisa é o grito, mas o grito que abre fendas. Em Fissurar o capitalismo, livro que escrevi depois de Mudar o mundo…, propus a ideia das fissuras como uma possível resposta em termos de reconhecimento, criação, expansão, multiplicação e coexistência de espaços e momentos em que dizemos: “Não, não iremos aceitar, vamos buscar outras formas de vida”.
Costumamos pensar o capital como uma força mais ou menos abstrata que nos domina, nos explora, organiza nossas vidas em função do trabalho, o dinheiro, o consumo de mercadorias, etc., e que, em todo caso, tem constantes crises de reprodução, que tenta superar intensificando a exploração e a extração de valor. No entanto, você insiste que por trás dessas crises estamos nós, que nós somos a crise do capital. O que deseja dizer com isso?
O capital é um ataque, uma agressão, uma forma de dominação que tem a característica de não poder se reproduzir hoje como ontem. Como forma de dominação, o capital tem uma dinâmica inerente, uma dinâmica expressa na lei do valor. A reprodução do capital depende de sua capacidade de nos explorar, e de nos explorar cada vez mais. Se não consegue isto, entra em crise. Por isso, somos nós que estamos aí como obstáculo, porque não queremos, não deixamos que o capital continue nos explorando. Temos que pensar em nós como obstáculos ao capital.
Se vemos o capital como uma agressão constante, seus problemas em se reproduzir indicam a força de nossa resistência, que pode ser uma resistência consciente, militante, ou simplesmente uma resistência de: “Hoje, fico em casa para brincar com as crianças”. Para mim, o mais importante é que esses gritos não são contra uma dominação estável e onipotente, mas contra uma dominação que está constantemente em crise, porque nós podemos colocá-la em crise.
Obviamente, sua posição se distancia muito daquela dos progressismos, cuja estratégia está centrada em assumir o poder do Estado e, a partir daí, combinar a reprodução do capital em seus territórios com certas políticas de redistribuição e reconhecimento de direitos e uma melhora no nível de vida dos setores populares. É evidente que essa estratégia de equilibrismo não funciona mais como antes. No entanto, não parece existir algo com a força suficiente para superá-la. Está tudo meio travado. Os progressismos permanecem aí, sem entusiasmar muito ninguém, mas como alternativas de governo realistas. Que avaliação você faz da era progressista e como você observa essa espécie de ponto morto?
Parece-me que o que aconteceu na Argentina, em 2001, é um bom exemplo para entender isso. O Que se vayan todos não conseguiu manter sua energia e foi canalizado dentro do progressismo kirchnerista. E o kirchnerismo foi uma forma de reconciliação entre o descontentamento social manifestado e a reprodução do Estado. É claro que o progressismo não é a resposta que buscamos, pois acaba reproduzindo a mesma dinâmica de destruição.
Por exemplo, os governos progressistas na América Latina, de um modo geral, têm sido bastante favoráveis ao extrativismo. Pelo motivo que você diz: porque o Estado precisa garantir (e atrair) a reprodução do capital dentro de seu território. Como romper com isso? Bem, obviamente esse é o dilema em que estamos há muito tempo.
Primeiro, a ideia das fissuras: ir construindo espaços e momentos de autonomia, nos quais dizemos não à lógica do capital e do Estado, porque o Estado só pode reproduzir o capital. Segundo, parece-me evidente que os conflitos sociais vão se intensificar nos próximos anos, provavelmente em todo o mundo. Veremos uma intensificação da crise do capital, uma intensificação da raiva social.
É provável que vejamos mais explosões como a do Chile, há alguns anos, a da Colômbia, no ano passado, a do Sri Lanka, há algumas semanas. Parece-me que precisamos pensar em como estamos nos relacionando com essas explosões. O que vemos é que, às vezes, são mobilizações fascistas. Às vezes, ao contrário, têm forças para a emancipação, como as do Chile e Colômbia.
Não estamos vivendo em um mundo estável. O problema será como nos relacionamos com essas explosões. O mesmo acontece com o aquecimento global, que é uma característica inseparável da destruição capitalista.
Há alguns anos, estamos falando sobre a direita. Vemos como foi se formando um avanço de movimentos reacionários com bases sociais que crescem, capazes de canalizar mal-estares e vencer eleições. Falam de anticomunismo, supremacia racial, necessidade de recuperar os valores do Ocidente, ódio aos feminismos e as dissidências sexuais, etc. Diante disso, ao menos na América Latina, os progressismos se apresentam como uma espécie de cordão sanitário, que pode conter essa direita radicalizada. Por um lado, parece óbvio que nada de bom pode vir dessa disputa. Por outro lado, também não se pode fazer de conta que não existe, porque a verdade é que esse traço binário acaba bloqueando a imaginação política e absorvendo as energias militantes.
Concordo com o que você diz. É difícil pensar que algo bom possa sair daí. Espero que [nas eleições brasileiras deste ano] Lula vença. E é bom que [Gabriel] Boric tenha vencido no Chile. E espero que a esquerda ganhe também na Colômbia. Mas os governos progressistas sempre acabam em desilusão, porque não podem cumprir suas promessas, porque o poder não está no Estado, mas na organização social capitalista. E enquanto isso não for questionado, é bastante limitado o que um governo progressista pode fazer.
Então, sim. Essa oscilação entre progressismos e direita radical não oferece uma saída. E mais, certa dinâmica do progressismo favorece a direita simplesmente pela força da desilusão. Para mim, o importante é pensar na direita, mas não só a partir da indignação e da insatisfação. O desafio é pensar nessa direita tão repugnante em termos do que temos em comum. O que temos em comum é a raiva contra o sistema.
Em vez de simplesmente dizer: “Esses são fascistas”, temos que nos arriscar a tocar em sua irritação, sua raiva social, e compreender que essa raiva pode assumir outras direções. A questão é como compreender essa irritação social e por que ela está assumindo essa forma, para assim tentar fazer com que assuma outras.
Você sempre fala da importância de pensar a partir das lutas, da força que nos dá saber que reproduzimos o capital e podemos interromper isso. No entanto, outro dia, ouvi você dizer algo em uma aula que me chamou a atenção: que teríamos que pensar mais em como enfraquecer o inimigo. O que isso significa?
Penso que nos anos 1990 houve uma guinada nos debates marxistas e na teoria social radical em geral, e se passou a pensar nas lutas que vêm de baixo, de nós. O perigo com isso é que simplesmente passemos a esquecer como o outro lado se movimenta. Isso pode ser visto na teoria autonomista, na ideia do êxodo, a ideia da fuga, a ideia de criar alternativas e esquecermos do capital.
Vejo isso como o sonho do prisioneiro que imagina já estar fora da prisão. Minha opinião é que não temos que pensar em termos de alternativas, mas em termos de antagonismos: antagonismo entre nossas capacidades e desejos, e o capital. Temos que pensar de onde estamos, mas entendendo nossa situação como um antagonismo, não como uma alternativa. Em um livro que espero que seja publicado em breve, chamado Esperanza en tiempos de desesperanza, retomo esta ideia.
Para expressar de forma mais clara: temos que ser conscientes desse contexto antagônico em que estamos inseridos, não só porque nossas lutas sempre se enquadram aí, mas porque temos que entender se as nossas lutas estão ocorrendo dentro do próprio capital, como sua crise e sua doença. Ou seja, não se trata tanto de fugir do capitalismo – o que não é realmente possível – ou de criar alternativas, mas de assumir nossa posição antagônica e lutar a partir daí, por dentro e contra.
Algo muito característico de sua produção é que está cheia de emoções e imagens afetivas. Há dor, bronca, desejo, esperança. A sensação que dá é que você está constantemente pensando no sentimento de quem lê, como desejando que o leitor saia com mais consciência de sua força. Ao conversar com amigos daqui, muitos me disseram que quando terminaram de ler ‘Mudar o mundo...’, queriam lançar o livro contra a parede e sair gritando junto com os outros. A teoria costuma ser apresentada como um campo livre das emoções que turvam a razão. Em vez disso, você confere a elas um lugar central em seu desenvolvimento teórico.
Sim, penso que não posso partir de outro lugar que não seja a esperança. Para mim, a esperança é básica, porque simplesmente me recuso a aceitar que não há saída. Penso que existe. É verdade que existem poucas possibilidades. Se olho ao meu redor hoje, penso que estamos caminhando para a extinção. Não sei... quanto há? 1% de possibilidades de que isto dê certo? Bem, vamos apostar nesse 1%.
É por isso que gosto tanto daquela mensagem dos zapatistas de que sempre falamos. Em outubro de 2020, no comunicado em que anunciavam sua travessia transatlântica para a Europa, após descrever a catástrofe que é o capitalismo, os zapatistas escreveram: “E é por isso que decidimos que é tempo de nossos corações dançarem, e que não sejam suas músicas ou seus passos os de lamento e resignação”. Não consigo pensar de uma forma diferente a essa.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Temos que pensar em nós como obstáculos ao capital”. Entrevista com John Holloway - Instituto Humanitas Unisinos - IHU