Os zapatistas e a invasão da Ucrânia. Artigo de Raúl Zibechi

Fonte: Flickr

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

14 Março 2022

 

“Diferente de boa parte da esquerda latino-americana (partidos, governos e intelectuais), o EZLN condena a invasão, recusa a Putin, ao grande capital dos dois lados e se coloca junto aos povos da Rússia e Ucrânia que resistem ao sistema”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 11-03-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis o artigo.

 

O comunicado do Exército Zapatista de Libertação NacionalEZLN: Não haverá paisagem depois da batalha, do dia 2 de março, estabelece a posição zapatista diante da invasão russa à Ucrânia, de forma concisa e contundente, apoiada na ética política que caracteriza o movimento.

Diferente de boa parte da esquerda latino-americana (partidos, governos e intelectuais), o EZLN condena a invasão, recusa a Putin, ao grande capital dos dois lados e se coloca junto aos povos da Rússia e Ucrânia que resistem ao sistema. O mais importante do primeiro ponto do comunicado é que não toma partido por nenhum Estado, algo que é habitual no zapatismo, mas sempre com os da base.

Em seguida, rejeita o argumento de Putin em desnazificar a Ucrânia. Neste ponto, contraria aqueles que acreditam que é possível erradicar o nazismo de cima, com bala de canhão, aceitando o argumento de que a invasão possui esse objetivo, quando não passa de um ato imperialista.

Em nossa região, abundam aqueles que apoiam a Rússia em voz baixa, com dois argumentos que não se atrevem a debater: acreditam que existe certo paralelismo entre a Rússia atual e o que foi a União Soviética e, por outro lado, sustentam a vaga ideia de apoiar tudo o que se opõe ao imperialismo dos Estados Unidos.

Conforme alguns analistas refletiram, na América Latina sobrevive uma simpatia que não é expressa abertamente pela Rússia e em especial por Putin. Anos atrás, um deles comparou o discurso do presidente da Rússia, em outubro de 2014, com o de Lenin na estação da Finlândia, em abril de 1917, ao retornar do exílio.

Semelhantes comparações mostram a pequenez dos ditosos intelectuais que sustentam o progressismo. Simplificam a realidade, insinuam continuidades entre os dois dirigentes e entorpecem a visão de uma parte das organizações da base ao sustentar, fora de qualquer consideração ética, que tudo o que está contra o inimigo deve ser apoiado.

O ponto quarto e quinto do comunicado resume a opção política do zapatismo. Não seguem os grandes meios de comunicação, nem os especialistas para definir a política, mas optam pelo caminho de “perguntar àqueles, como nós, que se empenham na luta pela vida na Ucrânia e na Rússia”. Define-os como “familiares em resistência e rebeldia”, o que nos diz que sentem como irmãos e irmãs aqueles que lutam em qualquer lugar.

Apoiam e encorajam os que rejeitam a guerra, as pessoas que repudiam as fronteiras e os estados nacionais e que se mantêm firmes em suas convicções. “Resistir é persistir e é prevalecer”, conclui o quinto ponto. Consequentemente, fazem um chamado para apoiar aqueles na Ucrânia que resistem à invasão da Rússia.

Este ponto suscitou críticas em vários lugares. Não poucas insistem em que apoiar a resistência é o mesmo que encorajar os nazistas, já que o dinheiro que chegar pode ser desviado para o mau governo de Zelensky ou para os próprios esquadrões fascistas que atuam na Ucrânia.

Essa forma de analisar o mundo repercute profundamente nos movimentos antissistêmicos. De algum modo, é herdeira da ideia de que existe um inimigo principal, contra o qual vale qualquer aliança para derrubá-lo. No entanto, essa é a forma de atuar própria de estados e governos, que não agem com base na ética, mas por conveniências e interesses.

O mais grave é que deixa de lado os seres humanos de carne e osso que resistem, na base e na esquerda, a qualquer opressão, seja de onde for. Alguém pode dizer que aqueles que resistem na Ucrânia e na Rússia são uma minoria e que fazem o jogo da direita, como costumam dizer os defensores do progressismo.

Por um lado, a dignidade e a ética não são medidas em números. Nesses dias, começam a surgir notícias de coletivos e pessoas que resistem em cidades da Ucrânia e que os grandes meios de comunicação não cobrem. São essas pessoas e esses coletivos que devemos apoiar, sem fazer cálculos, sem pensar em quantos são, porque o que nos orienta não é se aparecem nos telejornais, mas apenas e simplesmente a ética.

Quanto ao argumento de fazer o jogo da direita, trata-se da mais grosseira e rasteira ideia das muitas e perversas que circulam no mundo. Significa, nem mais e nem menos, que toda ação humana deve se limitar a cálculos da expectativa de lucros e de possíveis perdas. Não é esta, por acaso, uma forma profundamente capitalista de ver a vida?

Ao contrário, a política de defender a vida e apoiar quem a defende, deixando de lado qualquer cálculo de interesses, orientar-se pela ética, e somente por ela, desafia o sistema porque não entra no jogo de lucros/perdas, que é um dos principais tentáculos da hidra capitalista.

Uma política orientada pela ética pode nos condenar à solidão. Mas se confiarmos na nobreza das pessoas comuns, alcançaremos a energia e a coragem necessárias para continuar navegando contra a corrente.

 

Leia mais