20 Dezembro 2023
Negri, autor de vastíssima obra, reconhecido como um dos mais importantes intelectuais do século XX e deste um quarto do século XXI sempre se apresentou como uma usina de ideias. Intenso e polêmico, as ideias do filósofo italiano sobre o trabalho, ao menos entre os sociólogos brasileiros, foram mais contestadas do que acolhidas, escreve Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
Faleceu nesta semana aos 90 anos em Paris o filósofo Antonio Negri, mais conhecido por Toni Negri ou simplesmente Negri. Embora reconhecido como filósofo, a sua produção teórica se estende para as áreas da história, sociologia e economia política. Negri é bastante conhecido no Brasil, particularmente em função de sua obra Império em parceria com Michael Hardt e pelo fato de ter visitado várias vezes o país.
A recepção do autor no Brasil é polêmica [1]. Se por um lado, é respeitado em círculos do ativismo social oriundos do movimento antiglobalização, particularmente a geração do “Povo de Porto Alegre" – numa referência a série de edições do Fórum Social Mundial no início dos anos 2000 –; por outro, na academia, particularmente entre os pesquisadores da sociologia do trabalho é visto com “desconfiança” e criticado.
Muito das críticas e certo ranço dirigido a Negri reside em sua releitura de categorias marxistas, sobretudo a sua reinterpretação da teoria-valor trabalho e ao atrevimento em renomear a categoria marxista classe como multidão. A irritação para com o autor se estende ainda para a introdução da categoria trabalho imaterial [2] como uma das características disruptivas de um novo tipo de capitalismo, o capitalismo cognitivo, que de acordo com o autor abole definitivamente as formas hegemônicas de trabalho fordista e dá vazão à sociedade pós-industrial. Não é gratuito que na academia, majoritariamente, os seus pares – Negri também foi professor – o classifiquem como pós-marxista ou pós-moderno.
Para aumentar a polêmica, via de regra, também se associa a Negri outro tema de grande discussão entre os pesquisadores da sociedade do trabalho, quer seja o da “centralidade do trabalho”, ou particularmente, da perda da centralidade do trabalho na sociedade. A rigor este tema é sugerido originalmente por André Gorz em sua obra Adeus ao Proletariado, mas segundo os críticos de Negri a obra negriana acerca da categoria trabalho também permite esta interpretação.
É importante destacar que Negri sempre se definiu como marxista, entretanto, insiste que as radicais mudanças do capitalismo exigem uma releitura das categorias de Marx. Diz ele: “hoje precisamos de uma nova Einleitung, porque a essência do capitalismo está radicalmente modificada” [3]. A partir da reinterpretação das categorias marxistas à luz das mudanças do capitalismo em sua base produtiva, Negri recoloca em debate a teoria-valor trabalho. É a partir da reinterpretação da teoria-valor trabalho nos escritos marxianos que emergem os conceitos de trabalho imaterial e a reconfiguração de classe.
Um das dificuldades da compreensão do pensamento de Negri naquilo que diz respeito às questões do trabalho deve-se ao fato de que muitas vezes as suas ideias e teses são lidas superficialmente e dissociadas da teoria social que as fundamentam, o operaísmo. O operaísmo, do qual Negri é um dos precursores, mais do que um movimento datado historicamente que se desenvolveu em território italiano nos anos 1960 e 1970 se constitui numa teoria social analítica da luta operária e representa uma escola de pensamento que se insere na tradição de debates da literatura marxiana. A produção teórica e o conjunto do pensamento desta escola se encontram originalmente nas publicações do movimento operário italiano como Quaderni Rossi, Potere Operaio e Clase Operaia.
Negri tendo como referência o operaísmo afirma que a reestruturação produtiva dos anos 1970 – naquilo que denomina de transição do fordismo para o pós-fordismo ou da sociedade industrial para a sociedade pós-industrial – deu vazão a substituição do “operário-massa” pelo “operário-social”. Estaríamos agora no mundo-fábrica, aquilo que Negri, recuperando as ideias de Tronti [4], denominará de “fábrica sem muros” ou “fábrica social”.
Registre-se que para o operaísmo – outra tese polêmica – a derrocada do fordismo não é uma derrota do movimento operário. Na interpretação operaísta são as lutas sociais, o movimento operário, as lutas estudantis - maio de 68 - das mulheres, que derrotam o fordismo. Neste sentido, a crise do fordismo foi acelerada pelas lutas sociais e a recomposição técnica do trabalho, a reestruturação produtiva e os investimentos em novas tecnologias são na perspectiva negriana uma resposta do capital às lutas sociais.
O esgotamento da sociedade fordista resultou em lutas sociais difusas rompendo com o sistema fabril ou o mundo-fábrica e a sua representação de lutas vinculadas ao sindicato e ao partido. Com a derrocada do fordismo a relação capital-trabalho não se resume mais à relação produtiva-salarial, mas incorpora também o conjunto dos trabalhadores, mesmos aqueles que não estão submetidos ao assalariamento formal.
O operário-social como expressão da recomposição de classe recusa a tese da dualização, ou seja, a separação entre setores produtivos e setores improdutivos e, mais importante, passa a “articular a centralidade produtiva de figuras sociais cujas dimensões produtivas não dependiam mais da inserção na relação salarial central” [5]. O operaísmo dá importância aos espaços e articulações de lutas que se estendem para além da fábrica e neste sentido não apenas incorpora as lutas dos trabalhadores ligados à esfera reprodutiva, como também as lutas dos desempregados não assalariados, donas de casa, estudantes, e toda a gramática da luta social identificada como identitária.
É a partir dessa compreensão e significado do operário-social que emerge nos anos 1990 o conceito de trabalho imaterial sugerido originalmente por Negri e Lazzaratto na obra Trabalho imaterial. Para Negri e Lazzaratto, a reestruturação das grandes fábricas colocou em relevo a centralidade de um trabalho vivo. A ideia aqui é que o capital se vale cada vez menos de um controle sobre os corpos e as vidas dos trabalhadores e, ao contrário, investe nestas vidas e nestes corpos como capacidades produtivas singulares – o trabalho vivo. Investe não mais para subordiná-los, mas para ativar sua cooperação subjetiva e possibilitar o plus produtivo. Podemos invocar aqui como um exemplo as múltiplas formas de trabalho ativadas pelo toyotismo, mas também as plataformas de aplicativos, onde se pede um trabalhador colaborativo, algo como um convite para que seja parceiro do capital e não mais “empregado”.
Segundo Negri o trabalho imaterial não é apenas requerido no processo produtivo naquilo que restou da fábrica cada vez mais transformada com as revoluções tecnológicas, mas em todo o conjunto da sociedade. Neste sentido, Negri insiste que “a forma de atividade produtiva – trabalho imaterial – não pertence somente aos operários mais qualificados: trata-se também do valor de uso da força de trabalho, e mais genericamente da forma de atividade de cada sujeito produtivo na sociedade pós-industrial” [6]. Em Negri e nos autores que esposam a tese do trabalho imaterial, o trabalhador precário, o jovem desocupado, já contém todas as características da subjetividade produtiva pós-industrial. Negri fala em “fábrica difusa”, organização de um trabalho na qual as diferentes formas de outsourcing e terceirização atravessam ciclos de produção que embaralham tudo.
Ainda mais, é constitutivo ao trabalho imaterial também o consumo. O consumo está na interface da produção. O trabalho imaterial “reconhecido como base fundamental da produção não investe somente na produção, mas na forma inteira do ciclo ‘reprodução-consumo’: o trabalho imaterial não se reproduz (e não reproduz a sociedade) na forma de exploração, mas na forma de reprodução da subjetividade” [7]. O que ser quer dizer aqui é que a subjetividade (imaterial) também ativa a produção (material). O capital como reprodução das subjetividades.
A categoria clássica de trabalho de acordo com Negri se demonstra insuficiente para dar conta da nova realidade do trabalho, realidade na qual é sempre mais difícil distinguir o tempo do trabalho do tempo da produção, do consumo e o tempo livre. É nesta perspectiva que Negri sugere que o conceito mais-valor oriundo da teoria-valor trabalho de Marx precisa ser ampliado em função de que ele não se reduz agora ao mais-valor produzido no tempo fabril. Mais do que isso, o mais-valor é produzido incessantemente porque se vale também do tempo de não trabalho, daquele tempo que se encontra externalizado ao processo produtivo e inclui toda a vida social incluindo aqui as subjetividades.
Sob a hegemonia do trabalho imaterial, destaca Negri, a exploração já não é primordialmente a expropriação do valor medido pelo tempo de trabalho individual ou coletivo e, sim, a captura do valor que é produzido pelo trabalho cooperativo que se torna cada vez mais comum através de sua circulação nas redes sociais. Chegamos ao que denomina de “fábrica social”, na qual o ciclo da produção imaterial se apresenta como confrontação à produção clássica da grande indústria e dos serviços.
Outro aspecto intrínseco ao trabalho imaterial é a sua potência emancipatória. Segundo Negri se o caráter da exploração muda, também se estabelece outra dialética de enfrentamento. Doravante a fonte do excedente, do mais-valor, apropriado pelo capital, não se dá mais necessariamente pelo roubo do tempo de trabalho individual ou coletivo, e sim pela captura do valor que é produzido pelos recursos imateriais, o conhecimento, a cooperação e a comunicação que se faz no conjunto da sociedade – a fábrica social. Da mesma forma entretanto que o capital procura apropriar-se do excedente produzido pelo trabalho imaterial – o mais-valor de hoje –, este pode ser a base da resistência dos sujeitos do trabalho. Da mesma forma que os recursos imateriais que cada trabalhador possui são ativados pelo capital para o plus produtivo, o mesmo também pode ser o reverso de um projeto coletivo de resistência e luta social.
Dito de outra forma, a aposta de Negri é a de que sob a hegemonia do trabalho imaterial a exploração já não é primordialmente a expropriação do valor medido pelo tempo de trabalho, e sim a captura do valor que é produzido pelo trabalho cooperativo, se tornando cada vez mais comum através de sua circulação nas redes sociais de produção, circulação e consumo. A ideia de que viver e produzir se tornam uma só coisa e esse processo já não é apenas heterônomo, mas emerge das energias produtivas também trabalho. Ou seja, a produção de capital é hoje em dia também produção da vida social, e na medida em que o capital instiga o trabalhador a disponibilizar todos os seus recursos (linguísticos, de comunicação, de interação, de cooperação) com o objetivo de subordiná-los à sua lógica, tem-se também um processo inverso. Esses mesmos recursos assim como servem ao capital, criam mecanismos de resistência a ele.
É neste contexto que se constitui outra categoria importante derivada do trabalho imaterial ou da produção biopolítica como prefere denominar Negri que é a da multidão. O conceito de multidão aparece nas reflexões de Negri em parceria com Hardt na obra Multidão lançada em 2005. O conceito de multidão repousa na tese de que não existe uma prioridade política entre as formas de trabalho. Doravante todas as formas de trabalho são socialmente produtivas, potencializam a produção do comum e compartilham um potencial de resistência à dominação do capital. Negri e Hardt destacam que isto não significa que o trabalho industrial ou a classe operária não sejam importantes, mas apenas que não detêm mais o privilégio político em relação às outras classes do trabalho. Logo, “a multidão confere ao conceito de proletariado sua definição mais ampla: todos aqueles que trabalham e produzem sob o domínio do capital” [8].
Embora se mantenha múltipla e internamente diferente, a multidão é capaz de agir em comum. É nesse sentido que os autores defendem a ideia de que a multidão se faz classe. Segundo Negri, Marx era ligado a uma fenomenologia manufatureira de trabalho industrial e, nesse contexto, a relação entre composição técnica do proletariado e estratégia política chama-se comum ou Partido Comunista e, portanto é o Partido que sugere a estratégia política (subversiva) e organização (biopolítica) da classe. Nessa perspectiva o partido se torna o instrumento na produção de subjetividade subversiva, incitando o sujeito coletivo – a classe.
A formulação que propõe é: qual é a produção de subjetividade para a tomada de poder, hoje, por parte do proletariado imaterial? Dito em outras palavras, se, hoje, “o contexto da produção é constituído pela cooperação social do trabalho imaterial, e tudo isso chamamos General Intellect, como será possível construir o corpo subversivo [biopolítico] do intelecto geral”? [9]. Em sua opinião, o sujeito revolucionário hoje deve basear-se em outro esquema, não se coloca mais apenas no eixo industrial ou no âmbito da economia.
O conceito de multidão repousa na tese de que entre as diferentes formas de trabalho não existe uma prevalência política e todas as suas formas são socialmente produtivas, produzem o comum e também compartilham o potencial de resistência ao capital. Em contraste com as exclusões que caracterizam o conceito de classe operária, a multidão é um conceito aberto e expansivo. É nesta perspectiva que Negri sugere a multidão como um novo conceito para a classe. A sugestão de Negri de que a “classe” se transforma em “multidão” é desenvolvida em parceria com Hardt na trilogia Império, Multidão e Commonwealth.
A categoria trabalho imaterial e a reconfiguração daquilo que vem a ser a classe hoje - protagonista da ‘Revolução’ – são apenas dois conceitos polêmicos da vastíssima elaboração teórica de Negri. A síntese aqui apresentada, insuficiente e aligeirada, é apenas uma tentativa de aproximação ao pensamento negriano acerca da categoria trabalho. Embora polêmica, a categoria trabalho imaterial é uma contribuição importante para o alargamento das tentativas de explicação das novas configurações que o trabalho humano assume no contexto das profundas e substanciais mudanças que se processam na sociedade do labor.
1 – O presente texto se vale do artigo de Cesar Sanson:Trabalho imaterial em Negri e Lazzarato: uma categoria ousada e polêmica. In: Diálogos Críticos: O pensamento estrangeiro e a sociologia do trabalho no Brasil. Cesar Sanson; Roberto Oliveira Véras, José Ricardo Ramalho. (Org.). 01ed.São Paulo: Annablume, 2023, v. 01, p. 857-884. O artigo e o livro podem ser acessados pelo link https://annablume.com.br/assets/ebooks/dialogos-criticos.pdf
2 – A categoria trabalho imaterial é apresentada originalmente por Negri e Lazzaratto na obra Trabalho imaterial: formas de vida e produção da subjetividade, traduzida para o português em 2001. Esta obra é resultante de artigos de Negri e Lazzaratto publicados na revista francesa Futur Antèrieur no início dos anos 1990. Um importante registro: Lazzarato, em uma entrevista ao portal do Instituto Humanitas (IHU), em 08 de novembro de 2017, afirmou que abandonou a utilização da categoria trabalho imaterial.
3- Referência ao texto de introdução dos Grundrisse (1857) em que Marx expõe o seu método de trabalho, no qual descreve que a teoria social deve ser modelada segundo os contornos da realidade social abordada.
4 - Mario Tronti é um teórico importante da teoria social do operaísmo. Ao lado de Raniero Panzieri e Antonio Negri, é um dos fundadores da revista “Quaderni Rossi” e posteriormente da revista “Classe Operaia”, que esposam a fundamentação teórica original das bases do operaísmo.
5- Cocco, G. (2001). Introdução in Trabalho imaterial. Rio de Janeiro: DP&A Editora, p. 21.
6 - Lazzarato, Maurizio; Negri, Antonio (2001). Trabalho imaterial. Rio de Janeiro: DP&A Editora, p. 26.
7 – Id, p. 30.
8 – Negri, A.; (2005). Hardt, M.. Multidão. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, p. 147-148).
9 - Negri, A. (2003). Cinco lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A Editora, p. 213-214.
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A sociologia do trabalho de Negri: ousada e polêmica. Artigo de Cesar Sanson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU