26 Julho 2008
Analisando o conceito de multidão desenvolvido pelo filósofo italiano Antonio Negri, Giuseppe Cocco, cientista político, avalia a relação de poder entre movimentos sociais, governo e Estado. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele afirma que as lutas dos setores sociais marginalizados pela sociedade, como “os sem-terra, os sem-universidade, os camelôs, os usuários dos transportes coletivos, trabalhadores informais, moradores de favelas, encontram uma nova centralidade”. Essas lutas, assegura, “já lidam com o que chamamos de ‘fazer multidão’”. E sugere: “Nosso esforço tem que ir na direção de se pensar um processo de organização e coordenação que não implique a redução dos muitos ao uno”.
Cocco é graduado em Ciências Políticas, pela Université de Paris VIII, e em Scienze Politiche, pela Università degli Studi di Padova. Cursou mestrado e doutorado em História Social, pela Université de Paris I. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o pesquisador é membro do corpo editorial da revista francesa Multitudes, da revista Lugar comum e Global Brasil. Cocco é autor de diversos livros entre os quais citamos e Trabalho e Cidadania - Produção e direitos na era da globalização (São Paulo: Editora Cortez, 2000) e Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), em parceria com Antonio Negri.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Para Negri, a multidão, a partir de suas necessidades corporais e materiais, nos impulsionam para a busca da liberdade. Como o senhor percebe essa multidão na atual conjuntura?
Giuseppe Cocco - Começamos pela questão conceitual mais geral, o conceito de multidão. Em primeiro lugar, é necessário lembrar que Negri não fala de multidões, mas de multidão, no singular e plural ao mesmo tempo. Nesse sentido, trata-se de uma teoria da multiplicidade. Embora vários intelectuais negrianos ou próximos do Negri falem de “multidões”, a proposta do autor é precisamente de pensar um uno que seria ao mesmo tempo múltiplo e não uma multiplicidade como diversidade de conjuntos específicos. Nesse sentido, o conceito de multidão, no singular, é bem mais potente e diferenciado do que seu uso no plural, que abre um espaço de ambigüidade com, por exemplo, o conceito de diversidade e o comunitarismo multicultural.
Nosso esforço deve ir na direção de se pensar um processo de organização e coordenação que não implique a redução dos muitos ao uno. A multidão é exatamente esse conceito, como ele diz, de “um conjunto de singularidades que cooperam entre elas se mantendo tais”, “inúmeros elementos que se mantêm diferentes uns dos outros, e ainda assim se comunicam, colaboram e agem em comum”. O “comum” de uma multidão como um e muitos ao mesmo tempo, mostra que não temos mais que escolher entre diversidade (de identidades) e alteridade.
Trata-se, pois, de um conceito teórico que responde a um duplo desafio: por um lado, ele visa construir o marco de uma política da imanência, quer dizer a construção de um referencial ético interno ao próprio processo de produção (dos valores); por outro, no nível sociológico, o esforço vai no sentido de pensar o trabalho na condição pós-moderna, ou seja da sua extrema e sistemática fragmentação social. A política da multidão é assim necessariamente uma política da imanência, e vice-versa.
A aposta na política da imanência significa assumir que toda tentativa de unificar os “muitos” - nas figuras do “povo”, da “nação” ou da “classe” - acaba abrindo o caminho à transcendência, ou seja, a uma separação do resultado da fonte, do poder soberano vis-à-vis a potência dos cidadãos. Uma separação que, em nome do “contrato social” (hobbesiano), do “interesse geral” (de Rousseau) ou da classe como categoria socioeconômica (do marxismo vulgar e/ou ortodoxo) acaba impondo o poder dos poucos (do uno) sobre os “muitos”, ou seja, a primazia do poder constituído sobre sua fonte constituinte: em nome do povo, da nação ou da classe, sempre tivemos e teremos a transformação da força da Lei (o poder dos muitos, a democracia) em Lei da força (o poder do soberano, seja ele o Rei, o Presidente, o Partido único ou algum Superior Tribunal). Uma política da imanência é uma política da multiplicidade, ou seja, uma política de radicalização democrática. Não há causalidade externa, seja ela o contrato que entrega ao soberano a potência dos sujeitos, seja ela o “interesse geral” que atribui ao Estado o papel de estabelecer uma mediação externa do conflito de classe.
Nesse sentido, se o conceito de “multidão” rompe todo tipo de ambigüidade com as categorias sócio-econômicas de classe, ele continua sendo um conceito de classe. Mas a classe da qual se fala, nesse caso, é aquela de E. P. Thompson, que existe porque se constitui no conflito. Fora do processo de sua constituição, não há nenhuma “multidão”, mas a realidade sociológica dos estilhaços em que explodiu a relação salarial. Assim, a nova dinâmica política e social, de luta e produção, diz necessariamente respeito ao “fazer multidão”.
Podemos agora discutir, em segundo lugar, a questão do “corpo”. Como disse, a proposta de uma política da multiplicidade é uma política da imanência, ou seja, ela se inscreve em uma perspectiva absolutamente materialista: sendo que a criação não tem princípio externo, ela é um processo interno à matéria, é a própria matéria que é divina. Ora, nada é mais materialista do que colocar o corpo no cerne da reflexão. Isso significa recusar toda separação entre o corpo e a alma, entre as mãos e a mente. Quando falamos do trabalho imaterial como paradigma do trabalho no capitalismo contemporâneo, estamos falando do trabalho do corpo, com suas características materiais e instrumentais bem como com aquelas intelectuais, mas também afetivas, comunicativas, cognitivas. Com efeito, trabalhar - hoje em dia - significa afetar e ser afetado.
Isso nos leva a problematizar a noção de necessidade. Pois o que define a potência de um corpo enquanto ele é materialidade dos afetos não são necessidades biológicas isoladas das determinações intelectuais e afetivas de suas relações sociais. Ao contrário, é a articulação entre esses momentos que atualiza sua potência. É à noção de desejo (cupiditas) que devemos recorrer. A produção do mundo, ou seja, do campo aberto das possibilidades, enquanto abertura das possibilidades, não é necessitada (não é biológica), mas desejante. O poder do capital está em sua capacidade de capturar o desejo pela sua redução a uma necessidade, a um único mundo: o poder e a obediência se organizam na redução do horizonte aberto dos mundos possíveis “criados” pelo desejo à necessidade de um mundo só, aquele da acumulação e de seus valores transcendentes, sejam eles teológicos ou mercadológicos. A emancipação passa exatamente pela afirmação dessa dimensão livre e produtiva do desejo, ou seja, a liberdade é o produto e ao mesmo tempo a condição do fazer-se da multidão, das singularidades que cooperam entre elas se mantendo tais, da dinâmica material da política da multiplicidade.
IHU On-Line - Ao mesmo tempo em que a multidão busca a transformação social, ela é criminalizada pela sociedade e o Estado?
Giuseppe Cocco - A configuração sociológica atual é caracterizada pelo aprofundamento dos processos de segmentação e fragmentação do trabalho e mais em geral das relações sociais. A fenomenologia da passagem é aquela da “precarização” e fragmentação da relação de emprego ao passo que o trabalho se estende à sociedade como um todo. Processo geral que é teorizado em termos de emergência da sociedade do risco, na qual os diferentes fragmentos (individuais) teceriam entre eles relações (transações) de mercado, dominadas pelo egoísmo possessivo. Na década de 1990, isso foi teorizado, nos Estados Unidos, como sendo um processo de “brasilianização”: fragmentação social de um mercado de trabalho ultra-hierarquizado, no qual o desemprego se mistura com o trabalho informal e níveis quase nulos de proteção social.
O livro de Mike Davis, de maneira paradoxal para uma intervenção que se afirma como sendo “de esquerda”, sobre a generalização mundial das favelas, vai um pouco no mesmo sentido. A novidade está no fato de que o que antes era a herança do subdesenvolvimento agora se tornou também uma conseqüência da modernização. Isso porque o chão de fábrica não concentra mais a produção em grandes plantas industriais e com elas, desapareceram, os grandes contingentes, compactos e homogêneos, de operariado industrial. A fábrica se espalhou na sociedade e se tornou terciária. Como Marx o tinha previsto, quando toda a sociedade se torna fábrica, esta tende a desaparecer e, com ela, desaparece também a relação salarial. Isso não significa, como dizem as apologias da pós-modernidade, que a exploração se torna marginal. Pelo contrário, ela também se difunde na sociedade e traduz-se, como sabemos, na perda de direitos, enfraquecimento das organizações sindicais de tipo operário, fragmentação das formas de organização social, não reconhecimento da dimensão produtiva da vida enquanto tal. Mas isso tampouco significa que o único caminho da resistência se torne uma paroxística (e impotente) defesa de uma via neo-industrial, ou seja, o saudosismo pelas antigas formas de exploração.
Ao mesmo tempo, as lutas dos setores sociais “marginais”, como, por exemplo, os “sem terra”, “sem universidade”, os camelôs, os usuários dos transportes coletivos, os trabalhadores informais, os moradores das favelas, os desempregados encontram – o que em nada reduz sua dramaticidade e a violência que devem enfrentar - uma nova centralidade. Essas lutas já lidam com o que chamamos de “fazer multidão”, ou seja, com o desafio de juntar a organização da luta com aquela da organização da produção.
IHU On-Line - Como o pensamento de Foucault sobre sociedade disciplinar e a sociedade de controle nos ajudam a compreender as relações estabelecidas entre o poder público e os movimentos sociais?
Giuseppe Cocco - Creio que a noção mais apropriada proposta por Foucault, para apreender as tecnologias contemporânea de poder, é aquela de biopoder. Foucault tem teorizado três grandes formas de poder. Uma, que ele chamava de forma arcaica, era aquela do poder soberano que se exercia essencialmente como um “poder de fazer morrer e de deixar viver”. Ou seja, o soberano arcaico não determinava as formas de cooperação (as formas de vida), mas as deixava acontecer e as capturava por meio de uma ação meramente negativa, de seu poder, punitivo, de “fazer morrer”. A segunda forma é aquela – típica da modernidade industrial – da sociedade disciplinar. Talvez, é a teorização foucaultiana mais conhecida: seu paradigma é o panopticum de Bentham. Sua mecânica é aquela do disciplinamento dos corpos dos indivíduos dentro das engrenagens de uma máquina social moldada em torno de instituições “concentracionárias” que têm como protótipo o campo de trabalho, ou seja, a prisão e as grandes plantações escravocratas das colônias americanas. Na disciplina, vigia-se e pune-se para corrigir, para domesticar. A terceira forma de poder, da qual fala o filósofo francês é a própria de uma sociedade de “segurança”: por um lado, essa tecnologia de poder corresponde ao que Deleuze chamou, um pouco mais tarde, de sociedade de controle. Pelo outro, trata-se de “um poder de fazer viver e deixar morrer”, ou seja, de um poder que não visa mais os corpos dos indivíduos, mas o conjunto da população considerada como espécie, ou seja, como meio ambiente. Entre essas três formas de poder não há, em Foucault, uma linha de sucessão progressiva, mas uma relação de sobreposição. Se a forma mais contemporânea funciona como paradigma de referência, ela se articula com as outras em dosagens e graus diferentes. Assim, a sociedade de “segurança” continua contendo elementos da disciplina e do poder soberano (arcaico), mas sua gestão do “risco” sobre-determina os outros elementos gerenciais.
Sabemos que os esforços de Foucault para analisar as tecnologias de poder foram apreendidos de diferentes maneiras, contraditórias entre elas: por um lado, temos os intelectuais que – na esteira dos trabalhos de François Ewald – usaram o conceito de poder de “segurança” e de biopoder para, numa perspectiva apologética da condição pós-moderna, teorizar a sociedade de risco, ou seja, um retrocesso generalizado das relações sociais como sendo algo desejável ou inevitável. Numa abordagem simétrica e, pois, parecida, das teorizações de Foucault, encontramos as posições catastrofistas de Agamben (ou de Paulo Arantes no Brasil) que assumem o biopoder como um horizonte totalitário intransponível, um dispositivo de controle absoluto da vida cuja fenomenologia seria o eclipse da política na forma do estado de exceção.
Com Negri e também com Deleuze, podemos – ao contrário – assumir uma posição bem diferente. Se é verdade que o poder investe a vida em sua totalidade, ou seja que por trás da precarização do trabalho assistimos ao fenômeno de uma nova escravidão (toda a vida é investida pela valorização do capital), isso implica em uma afirmação produtiva da vida que o capital e suas tecnologias de segurança não podem nunca negar nem assumir como seu produto. Para que o biopoder possa existir enquanto poder sobre a vida, ele necessariamente precisa de uma biopolítica: de uma potência da vida que lhe é anterior. O conceito geral de sociedade de segurança abre-se a uma alternativa radical: biopolítica contra biopoder, sendo que a biopolítica (a potência produtiva da vida da multidão de singularidades que cooperam entre elas se mantendo tais) é primeira, poderíamos dizer “primordial”.
Nesse contexto, fica evidente que a relação entre movimentos e constituição da esfera pública se torna central. Exatamente como acontece com o MST ou a Central Única das Favelas (Cufa) ou a CUT. Não há contradição – em termos de formas de luta e de prática política – entre a autonomia desses movimentos e as negociações que eles conseguem realizar com os poderes públicos. As lutas, o “fazer multidão”, diz respeito à própria constituição da esfera pública. Algo que nos leva ao debate sobre essa esfera intermediária que foi chamada de “governança”. Se o termo é completamente sobredeterminado pela retórica do mercado, a noção de uma instância intermediária de governo flexível e descentralizado é adequada aos movimentos biopolíticos: é isso que aconteceu com o orçamento participativo de Porto Alegre, com as formas mais avançadas de Planejamento Estratégico das cidades como foi o caso no ABC paulista, com os movimentos regionais e de organização local. O outro lado da “governança” é o fato, pois, da radicalização democrática e da construção do comum: aqui, a esfera intermediária da “governança” pode coincidir com aquela da radicalização democrática, onde a democracia é o “fazer multidão”: a cooperação das singularidades que se mantêm tais.
IHU On-Line - Muitos movimentos sociais reclamam da mudança de posicionamento do governo Lula com os ativistas, após as eleições. Quando um partido chega ao poder, embora não queira, é obrigado a mudar as formas de relações com o capital e fazer alianças aceitando cooperar com políticas neoliberais, por exemplo? É isso que acontece no governo atual? Como entender, nesse sentido, as relações de poder e criminalização estabelecidas entre Estado e movimentos sociais?
Giuseppe Cocco - Aqui há duas questões: por um lado, a criminalização dos movimentos e, por outro, a questão das alianças de governo. O governo Lula não pode ser acusado de criminalizar os movimentos, muito pelo contrário. Podemos dizer que sua relação com os movimentos é – às vezes – limitada pelas suas alianças, como pode acontecer no caso das relações complexas e contraditórias com o agronegócio e, ao mesmo tempo, com os movimentos ligados aos indígenas, aos “povos da floresta” ou à luta contra o latifúndio. Mas não há como governar sem alianças e, nesse nível, o problema não é apenas do governo, mas da capacidade dos movimentos abrirem brechas que desloquem essas alianças em direção ao terreno da radicalização democrática.
Aliás, apesar das contradições, sobretudo no que diz respeito ao meio ambiente e ao desmatamento, temos o exemplo da conduta exemplar do governo na questão da demarcação das reservas indígenas, em particular em Roraima, na Raposa Serra do Sol. O eventual retrocesso em direção à manutenção dos interesses mais regressivos das oligarquias do latifúndio não virá do governo, mas do funcionamento do Estado, de uma eventual decisão do STF e da retórica soberanista de setores do Exército. Diante disso, precisamos de uma política da multiplicidade e também de um horizonte pós-soberano. A paz não está no (impossível) muro que separaria o Brasil da Venezuela, mas da entrada do vizinho setentrional no Mercosul, uma integração que avança lentamente, não por acaso, por via da obstrução no Senado das oligarquias mais retrogradas do Norte.
No que diz respeito às alianças, não se trata de algo que acontece “depois” da chegada ao poder, mas que faz parte da própria homologação sem a qual não se chega ao poder. O mais simples e evidente desse mecanismo está inscrito no próprio processo de construção da representação: todo candidato (sobretudo majoritário) tem medo da grande mídia da qual depende parte de sua visibilidade para se eleger. A democracia representativa, que já é uma conquista, não deixa de ser um mecanismo de corrupção da própria democracia. Portanto, a questão é outra: diante do marco inevitável de alianças e, ainda mais grave, do funcionamento do Estado como aparelho burocrático de comando, quais são as brechas que um determinado governo abre para a radicalização democrática, ou seja, para transformar o poder? Ora, essas brechas dependem das bases sociais do governo, de sua capacidade de mobilização.
O governo Lula, com toda sua moderação, conseguiu realizar muitas coisas: uma política assistencial mais avançada que já aconteceu, as reformas universitárias, as políticas para agricultura familiar, a inflexão da política econômica, o desdobramento do PAC em PAC social, com investimentos expressivos de urbanização, construção de moradias etc. São alguns primeiros passos, mas já são potentes. É uma ótima base para querer ainda mais. Mas não adianta “querer” mais. Precisamos saber como “fazer mais” e, na condição atual, “fazer mais” é “fazer multidão”. Ora, em nossas metrópoles, avançar no terreno constitutivo da multidão implica, por um lado, no aprofundamento da construção do comum (renda universal, urbanização de favelas, reforma do ensino e dos transportes públicos, acesso universal e gratuito a Internet) e, por outro, capacidade de enfrentar a questão da ilegalidade, da violência como regime fundamental de regulação da população. Seria hipocrisia pura dizer que isso depende da ação do governo federal, ou em geral de uma ação de cima para baixo. O episódio do Exército no morro da Providência mostra a complexidade de um biopoder que, no Brasil, mistura o poder de matar com o de fazer viver e nos aparece como algo extremamente hierarquizado e difuso ao mesmo tempo. Mas nós precisamos apreender esse biopoder hierarquizado e difuso do ponto de vista da biopolítica, da multiplicidade de sujeitos que vivem e produzem e sem os quais o biopoder seria, muito simplesmente, nu e impotente. Precisamos estar dentro dos planos de resistência e criação que os movimentos das periferias produzem.
Contribuição da mídia
Por outro lado, a grande mídia monopolista (e os interesses econômicos que a bancam) parece não estar mensurando o impacto do discurso a dois gumes que ela faz sobre a impunidade. Como é possível pedir o “rigor da Lei” contra os camponeses sem terra e clamar pelo “respeito dos direitos” em favor dos banqueiros e dos corruptores? Não se trata apenas da desigualdade diante da Lei, mas do fato que os trabalhadores sem-terra (os “muitos”) são a Lei, ou seja a legitimidade ao passo que os interesses que, aparentemente, o Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul defende dizem respeito os “poucos” (algumas empresas multinacionais). Se não fosse trágica, a postura da grande mídia seria até ridícula: depois de ter pedido a criminalização dos movimentos, multiplica os editoriais contra o “Estado policial” depois da prisão de Daniel Dantas e Cia.
IHU On-Line - Como o senhor percebe o subsidio do Estado em relação aos movimentos sociais? Essa relação gera dependência do movimento social?
Giuseppe Cocco - Isso precisa ser visto de maneira não ideológica. Claro que os movimentos precisam manter sua autonomia. Mas de que movimentos estamos falando? Quando falamos dos movimentos dos “sem voz”, fica evidente que sem uma política pública de distribuição de renda não é possível pensar na autonomia dos movimentos. Ora, o que o governo Lula demonstrou, e isso continua “aterrorizando” a elite, é que essa autonomia é possível, sim. A reeleição de Lula se fez contra a vontade do conjunto da grande mídia monopolista que agiu como verdadeiro partido de oposição. E esse evento foi possível porque a política social do primeiro governo Lula abalou seriamente os tradicionais currais eleitorais.
Esse é o debate. A autonomia dos movimentos, sua capacidade de “fazer multidão” depende da constituição do comum. Isso torna a questão do governo central. No entanto, não do governo como “política de Estado”, mas do governo como espaço e terreno de democratização e apropriação pública dos mecanismos de construção do comum. O terreno fundamental dessa radicalização democrática se encontra nos municípios, nas cidades.
De qualquer modo, não se trata apenas disso. Algo que municípios e movimentos deveriam pensar é saber como as instâncias de governos decidem sua atuação nos conselhos de administração de um monte de empresas estatais, privadas (com capital público), fundos de pensão etc. Como decidem todos esses sindicalistas que participam da gestão de fundos bilionários? Por um lado, é uma grande conquista que eles participem desses conselhos de administração. Por outro, é uma grande ocasião perdida que não haja uma prestação de contas “participativa” da atuação deles. Como podemos, depois de tanto ter falado do Orçamento Participativo de Porto Alegre, deixar passar essa ocasião de ver como funciona o ventre do capitalismo? Por que o debate sobre telefonia no Brasil deve ser apenas uma questão de gabinetes de bancos, juízes, governo federal e não um debate público?
IHU On-Line - As ações realizadas pelos diversos movimentos sociais são apresentadas como crime e irresponsabilidade pelos segmentos conservadores da sociedade? Que valores arraigados na sociedade fazem com que os movimentos sejam deslegitimados?
Giuseppe Cocco - Não vejo nenhuma criminalização dessas lutas pela sociedade. Vejo, sim, setores do Estado tentarem esse caminho, em particular com o MST. Algo que pode chegar a ter alguma efetividade, mas com certeza é ilegítimo. Trata-se, me parece, de uma visão bem curiosa da relação entre legitimidade e legalidade. Os mesmos que clamam pelo rigor da lei contra o MST invocam suas garantias contra algemas e prisões de banqueiros. Com certeza, no Brasil, a novidade não está na desigualdade dos cidadãos diante da lei, quanto na dimensão política que o enfrentamento adquiriu, uma dimensão política do enfrentamento da qual depende uma retórica do mercado que, sem força, fica nua como a crise das subprimes norte americanas.
Tudo isso se torna ainda pior se lembramos, além da campanha da elite para criminalizar o MST, aquela sobre os temas da “impunidade” que explora de maneira cínica e insuportável a violência. Nesse nível, temos sim uma criminalização dos jovens pobres e negros que se traduz, por exemplo, na atual política de segurança do governo do Estado do Rio de Janeiro. A grande mídia é a grande responsável por estarmos uma situação sem saída. Pegamos só um exemplo: há alguns meses, por ocasião do funesto episódio do menino arrastado durante um roubo de carro por outros meninos, explorou-se a dor insuportável dos pais para pedir a diminuição da idade penal, atacar o Estatuto da Criança e do Adolescente e pedir mais repressão. O massacre de uma criança foi usado para legitimar o massacre das crianças. Recentemente, assistimos à repetição dessa vampirização cínica. Dessa vez, a dor comercializada era aquela dos pais de um outro menino, metralhado pela polícia no carro da mãe, sempre no Rio de Janeiro. O insuportável chega ao paroxismo. Quem deu legitimidade social à metralha como método de regulação biopolítica da população são esses “papagaios de pirata” que surfam a onda terrível da criminalização dos jovens.
Nas favelas cariocas, nas periferias paulistas, bem como nos campos de refugiados palestinos ou nas periferias francesas ou norte-americanas, o “criminoso”, o “homem-bomba”, não é um agressor externo, mas o genuíno produto do mundo que passa na publicidade e na novela. A maioria da população é materialmente excluída desse mundo das novelas, ao mesmo tempo em que tem acesso inesgotável às suas dimensões simbólicas, imaginárias e discursivas. O que preenche o vazio desse descompasso é a guerra! E, aparentemente, os membros do Conselho Superior do Ministério Público gaúcho gostariam de confirmar essa situação de guerra também nos conflitos onde o MST e outros movimentos conseguem construir sentido, luta e organização.
A transformação dos anjos (jovens pobres, negros e mestiços) em diabos, em comparsas do crime do poder, não é um efeito secundário do sensacionalismo televisivo, mas seu principal produto! Há uma correlação precisa entre a exibição da fantástica impotência dos meninos miseráveis do tráfico e a sabotagem midiática de todos os programas sociais do governo Lula (Bolsa Família, Cotas para negros e pobres, ProUni etc).
Diante disso, lembremos o que Spinoza dizia: só a liberdade funda a Paz e, com ela, o melhor governo. A liberdade não entendida apenas como liberdade de pensamento, mas como produção da vida. Ou seja, a paz não é dada pela “segurança”: ao contrário, é a organização do consenso em República que garante a segurança.
Não há segurança sem proteção social para todos! Bem como não há confiança entre desiguais. Não há como pensar uma paz como “solução” do paradoxo contemporâneo da ampliação dos “direitos humanos” em face da multiplicação dos “homens sem direitos”. Só existirá paz se pudermos voltar a contar com os anjos da Cidade de Deus para a construção da cidade dos homens. Só os homens livres, que produzem seus direitos ao mesmo tempo em que os afirmam, constituem a paz.
Para ler mais:
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Capitalismo cognitivo e trabalho imaterial. Entrevista com Maurizio Lazzarato
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"O "fazer multidão" diz respeito à própria constituição da esfera pública". Entrevista especial com Giuseppe Cocco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU