Dez anos depois da mobilização que parou o Brasil, analista observa que o que mobilizou as marchas de 2013 segue latente numa sociedade que ainda tateia sobre a política do século XXI
Os primeiros dias de janeiro, muitas vezes mais vagarosos pelo calor tórrido dos trópicos em tempos de ebulição climática, quase sempre nos levam para o rumo das memórias e projeções ao ano que começa. É com este espírito que na entrevista a seguir lembramos de Junho 2013 dez anos depois. Trata-se de um acontecimento que, para Bruno Cava, não se circunscreve ao passado. “Junho não acabou. A distância entre nós e o acontecimento é apenas cronológica, porque ainda não se esgotaram as virtualidades, ainda não nos colocamos à altura das interpelações de Junho de 2013. Nesse sentido, ainda está ciclando, ‘acontecimentalizando’”, pontua.
A entrevista a seguir foi proposta pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU ainda em meados de 2023, mas Bruno quis “marinar as questões” no tempo (como ele mesmo escreveu o e-mail ao IHU) e enviou suas respostas somente nos últimos dias de dezembro passado. Talvez, porque nesta época e, em especial, no caso de Junho 2013, passado, presente e futuro se misturam em cada dobra do tempo. Para ele, há ainda muito das marchas a ser desvelado e compreendido na política do século XXI. “Junho de 2013 não apenas reivindicava um sistema de proteção social melhor, mas uma quebra de paradigma quanto à forma de gestão dos bens comuns e o grau de implicação nas escolhas”, aponta.
Segundo Bruno, significa pensar que “quando, em 2013, Lula falou que o povo ganhou o pão e agora quer manteiga, acertou: o que se dava nas ruas e redes era a emergência de uma nova classe, sem nome, que se formava à medida que encontrava seus espaços e tempos de composição, percepção e ação”. Daí a ideia de uma quebra de paradigma que pauta um debate que ainda segue latente em pleno Brasil de 2024. “O principal não é apenas a dificuldade em alcançar efetividade aos direitos constitucionais, já garantidos no papel. O drama é que os embates e discussões continuam presos ao marco conceitual de mais ou menos Estado, entre os polos do Estado máximo ou mínimo”, destaca, ao pontuar que tais debates hoje ocorrem dentro da chamada esquerda tradicional – e do governo.
Por fim, Bruno analisa a volta do PT ao Palácio do Planalto. “A eleição ao terceiro mandato de Lula foi uma boa notícia, quanto à interrupção de uma polarização que vinha deslocando a política da produtividade do desejo à polarização ‘nós’ x ‘eles’”, sintetiza. Mas ressalva: “a medida da falta de imaginação desse governo pode ser aferida no quanto depende, de um lado, no nível institucional, da reedição de fórmulas antigas da redemocratização, de outro lado, no nível do discurso, da polarização com o mais pior da vez, que aliás pode vir a ser outro em relação ao da última eleição presidencial. Age-se e vive-se como se Junho tivesse acabado, um retrato amarelado na parede”.
Bruno Cava (Foto: João Vitor Santos | Acervo IHU)
Bruno Cava é graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito, e oferece cursos livres presenciais e on-line por meio do canal Horazul (YouTube). Recentemente, publicou O anti-Édipo e a psicanálise (CEFA, 2023). Também é autor de A multidão foi ao deserto (Annablume, 2013), A constituição do comum (Revan, 2017), com Alexandre Mendes, e de A vida da moeda: crédito, imagens, confiança (Maudad, 2020), com Giuseppe Cocco.
IHU – Como interpreta Junho de 2013, dez anos depois e à luz dos acontecimentos políticos da última década?
Bruno Cava – Junho não acabou. A distância entre nós e o acontecimento é apenas cronológica, porque ainda não se esgotaram as virtualidades, ainda não nos colocamos à altura das interpelações de Junho de 2013. Nesse sentido, ainda está ciclando, “acontecimentalizando” e, como costumo dizer, habitamos o Longo Junho. Em síntese, qual a interpelação de Junho? A emergência da classe sem nome, da contraparte subjetiva ao neoliberalismo, demandando por um novo marco de funcionamento das instituições, o Commonfare (“Sociedade do comum”).
No fim dos anos 70 e 80, o país viveu um ciclo intensíssimo de novas práticas e movimentos, como cartografado à época por Éder Sader. Tais lutas retomaram o problema da democracia noutros termos, definindo um espaço de viabilização para o Plano Real (a instauração da moeda como terreno democrático), a virada ao social epitomizada pela massificação do programa Bolsa Família (o devir-renda da cidadania) e um rol de ações afirmativas, como as cotas raciais, a política de pontos de cultura e a inclusão na universidade (justiça biopolítica e forma-rede).
No começo dos anos 2010, ficou nítido que tais desdobramentos na direção tendencial de um Commonfare, isto é, de uma nova institucionalidade do Comum, foram amortecidos a partir de cima até, finalmente, serem congelados. A democratização da moeda estava ameaçada de desmonte pelo neodesenvolvimentismo no marco autoritário do Estado (apropriação do dinheiro e descontrole inflacionário), a tendência na direção da Renda Universal neutralizada em nome do pleno emprego ao modo fordista e, finalmente, as ações afirmativas cada vez mais reificadas na forma de “doações de Constantino” (como se fossem dádivas do PT e Lula aos necessitados), acelerando a sedentarização dos movimentos de lutas biopolíticas, na forma do identitarismo.
Isto significou uma contramarcha não ao avanço do capitalismo financeiro global, como lido, por todos, por um esquemático André Singer (no artigo “Cutucando onças com varas curtas”); mas à tendência exprimida em lutas globais que, naquele momento, estavam em seu mais alto nível nas Revoluções Árabes, na Turquia e nas acampadas pelo sul europeu.
IHU – O que as pesquisas que realizou sobre Junho de 2013 indicam sobre o que aconteceu no país naquele momento?
Bruno Cava – Existem alguns pesquisadores de movimento que atribuem às jornadas brasileiras, e isso é uma constante em todos os países com grandes revoltadas, uma falta constitutiva: teriam faltado pauta, liderança, organização, projeto político. Toma-se Junho não pelo que foi, mas pelo que não foi, como se fosse fácil repeti-lo, reproduzir a potência criativa e a eficácia que ele adquiriu.
O difícil seria o segundo passo... Muitos explicadores parecem querer forçar um espaço de contribuição de fora das coordenadas reais. Vale exemplificar com a posição dos professores-dirigentes do Podemos espanhol, de que à fase destituinte dos protestos deveria se seguir uma fase eleitoral, voltada à tomada do centro do tabuleiro representativo, por meio de um partido centralizado e centralista que pudesse captar o ecossistema de lutas do 15-M.
Essas leituras se desprendem da realidade daquelas lutas, porque tanto as acampadas ibéricas quanto as jornadas brasileiras foram desde os primeiros dias uma temporalidade densa, muitos acontecimentos ao mesmo tempo, plena de intervenções eficazes nos aspectos citados: o aumento da tarifa foi cancelado, projetos de lei impopulares foram engavetados, a repressão não conseguiu estancar os protestos, os territórios foram autonomizados (decerto por um curto período). Depois de Junho, poucas formas organizativas chegaram perto de sua potência criativa e transformadora, isto é, deveríamos talvez, penso eu, tentar compreender melhor a “potência do erro”, em vez de recuar diante do “erro da potência”.
De resto, postumamente, o que se vê no panorama de movimentos são impasses estratégicos (defender o governo do PT do impeachment ou religar-se com a indignação das maiorias da sociedade?), engarrafamentos simbólicos (uma compensação pela perda da ocupação das ruas, remetendo a enlatados do passado), sobrecargas organizativas (volta ao velho partido, às lideranças estabelecidas, às referências teóricas homologadas) e autofagias gregárias (culpabilizações recíprocas e disputa por protagonismo, disputa por cargos e mercados).
Mesmo se pensarmos com a filosofia de Antonio Negri, sobre a necessidade de buscar desenvolver a dimensão constituinte nas lutas, há uma diferença conceitual clara entre projetos de poder e carreira (que pressupõem a autonomia do político e uma classe profissionalizada de representantes), e projetos de potência (que põem em primeiro lugar a autonomia do social, na qual o representante é tático ou fluido).
IHU – A hermenêutica da esquerda político-partidária sobre Junho de 2013 contribuiu para arrefecer as manifestações e a emergência de novas lideranças políticas ao longo da década?
Bruno Cava – Alguns intelectuais insistem até hoje que a “esquerda não entendeu Junho”. Subestimam a capacidade de compreender lutas novas de quem ocupa o poder do Estado. Na verdade, a esquerda no poder compreendeu em linhas gerais Junho, mesmo porque sua rede de militantes de base integra as mesmas redes (ou bem próximas) de grupos mobilizados da esquerda extrapartidária. Quando, em 2013, Lula falou que o povo ganhou o pão e agora quer manteiga, acertou: o que se dava nas ruas e redes era a emergência de uma nova classe, sem nome, que se formava à medida que encontrava seus espaços e tempos de composição, percepção e ação.
A inclusão social das décadas anteriores propiciou ferramentas e meios produtivos que, em 2013, eram reapropriados em um espaço comum de autonomias. Dava-se a gênese da potência de um corpo novo, inédito do país, o que assustou realmente a dita “classe política” do país. A certo ponto, o medo estava completamente do lado do poder. Isto também ocorreu à esquerda do espectro político-partidário, com a agravante de colocar em questão um dogma: quem tem poder de mobilizar e ocupar seriam apenas eles, através das correias de transmissão dos sindicatos, movimentos sociais partidários e agremiações estudantis.
Quando, em 24 de junho, Dilma [Rousseff] desajeitadamente propõe em rede nacional a Constituinte para a reforma política, contudo foi um passo em falso, porque passou a imagem de querer colocar o chapéu do partido na cabeça dos manifestantes. Novamente, o problema de primeiro ver a falta e não o pleno. Mas revelava o objetivo estratégico que estava sendo amadurecido entre os caciques: em uma ponta, apertar a repressão e pacificar as ruas, na outra ponta, absorver as demandas e lideranças que pudessem ser enquadradas na pauta do partido, a reforma política e o alargamento do espaço fiscal para o neodesenvolvimentismo.
Entenderam razoavelmente bem o que significava para o futuro de seu projeto de poder. Por isso, nos meses seguintes, cuidaram de enfrentar o problema em um misto calibrado de repressão e acolhimento, de pressão negativa e positiva. Essa estratégia, partindo de uma máquina partidária bem instalada no poder federal, não deixou de colher um êxito parcial, trazendo um alívio momentâneo. Propiciou, em primeiro lugar, a reeleição de Dilma em 2014, porém, a médio prazo, facilitou o jogo das novas direitas de conferir um novo sentido à justa indignação e reaproveitar parte dos métodos e afetos de Junho.
IHU – Entre as reivindicações de Junho de 2013, destacavam-se a redução no preço da tarifa dos transportes e a melhoria dos serviços públicos de saúde e educação. Qual é a situação do país hoje em relação a essas questões?
Bruno Cava – O principal não é apenas a dificuldade de alcançar efetividade aos direitos constitucionais, já garantidos no papel. O drama é que os embates e discussões continuam presos ao marco conceitual de mais ou menos Estado, entre os polos do Estado máximo ou mínimo. Disputa-se o quantum de investimento público em tal ou tal área, diante de um espaço fiscal maior ou menor, em função da carga tributária, mas não o terreno democrático de mobilização, que é o que gera os direitos reais, para além do papel.
Como escrevia Spinoza em seu livro sobre democracia, a base ontológica do direito está na potência da multidão e não na lei do Estado. Junho de 2013 não apenas reivindicava um sistema de proteção social melhor, mas uma quebra de paradigma quanto à forma de gestão dos bens comuns e o grau de implicação nas escolhas. Giuseppe Cocco foi o primeiro a ter essa intuição, depois desenvolvida em artigos e livros, de como Junho de 2013 colocava em questão o socius de uma realidade desigual e aflitivamente atravessada pela pobreza e violência, bem como os modos institucionais de gestão do social.
Tomemos o exemplo da pauta do passe livre. Junho continha como tendência a tarifa zero, já que não era apenas pelos 20 centavos. Havia todo um mundo implicado nessa demanda, digamos, tática. Procurava-se elevar a mobilidade urbana à qualidade de força produtiva da metrópole, que subsiste como virtualidade assim como pressuposto, ‘ainda não’ e ‘já sim’. A forma organizativa imanente aos protestos, seus contínuos deslocamentos de tipo enxame, territorializações (praças, ocupas, coletivos autônomos) e desterritorializações (correrias, fintas, trânsito entre grupos, anonimato...), já descortinava as linhas de uma política da mobilidade (quando vira mobilização acêntrica, sem restrição às camadas remediadas da população).
Essa potência do urbano se exprime cotidianamente, no modo integrado entre ruas e redes que define o direito à cidade (não só consumir o espaço, mas produzi-lo coletivamente). Penso aqui no quanto Junho de 2013 confirma as leituras problemáticas urbanas pós-modernas de um Rem Koolhaas ou Henri Lefebvre. Isso vale para o caso da tarifa zero no transporte, mas também poderíamos transportar o raciocínio para a educação, se pensarmos nas ocupas de escolas no biênio seguinte, como também na ideia de uma educação acoplada aos fluxos metropolitanos: acesso e constituição de cultura, debate, politização.
IHU – Dez anos depois de junho de 2013, o PT retorna à presidência. Quais são as expectativas em termos políticos, mas também em relação às demandas sociais?
Bruno Cava – Nas teorias de crítica ao capitalismo contemporâneo, fala-se muito de neoliberalismo, mas muito pouco de classe. É como se a classe tivesse perdido a centralidade, com a dissolução do proletariado fabril fordista. Viveríamos em um caldo de derivas consumistas, midiáticas, fascistoides. O caldeamento não haveria mais e, portanto, só nos restaria um entrincheiramento em siglas e grupos homologados.
Quando, entretanto, a formação da classe no neoliberalismo aparece de modo estrondoso, irremissível, como no ciclo global das primaveras, a multidão assusta e termina por acionar os reflexos condicionados: instintos de rebanho, de autoenclausuramento, de um retorno à Esquerda (com maiúscula, como mistificado valor dos valores). É um duplo impasse, entre a melancolia diante das derrotas (“não poderia ter sido diferente”) e a resignação em viver sob a sombra do menos pior, no Brasil, do PT (“é o que tem”). Novamente, Toni Negri aqui é um antídoto: sua vida e obra testemunham um esforço em não permitir que as derrotas se convertam em derrotismo, mas em recomeço e aprendizado.
Na pós-modernidade hiperconectada, política é ligação de desejo e social, os fluxos correm muito próximos e rápidos em relação aos circuitos institucionais. Desejante, logo político. A eleição ao terceiro mandato de Lula foi uma boa notícia, quanto à interrupção de uma polarização que vinha deslocando a política da produtividade do desejo à polarização “nós” x “eles”. A volta da figura polimórfica de Lula, uma espécie de mediador universal da redemocratização, provocou um circuit breaker nesse maquinário dualista e devorador das paixões. Forçou-nos a voltar a pensar, já que nos tirou da paradoxal zona de conforto de viver no fim dos tempos, em que a catástrofe nos isenta de criar o novo. Não se pode desprezar, ainda, o que o novo governo favorece de reconstrução de pontos de apoios institucionais para urgentes lutas defensivas, como a indigenista, a climática e a socioambiental (com todas as ressalvas e limitações).
No entanto, a medida da falta de imaginação desse governo pode ser aferida no quanto depende, de um lado, no nível institucional, da reedição de fórmulas antigas da redemocratização (por exemplo, Haddad na economia, a discussão Estado máximo versus mínimo), de outro lado, no nível do discurso, da polarização com o mais pior da vez, que aliás pode vir a ser outro em relação ao da última eleição presidencial. Age-se e vive-se como se Junho tivesse acabado, um retrato amarelado na parede.
Isto embute certa esperança de manutenção da normalidade por parte do que Marcos Nobre chama de sistema político peemedebista, que inclui, claro, o PT majoritário, seus aparelhos e dirigentes. Mas, no fundo, é um complexo de negação, pois os problemas que Junho exprime continuam abertos e bem vivos, na lacuna entre a nossa dificílima realidade em crise e o desejo de viver diferente e melhor.