12 Janeiro 2024
Em 2013, Giuseppe Cocco e eu escrevemos sobre a relação positiva, produtiva, entre as jornadas de Junho e o lulismo. Abordamos isso em vários ensaios, artigos e entrevistas e consta de meu livro editado em novembro de 2013: "A multidão foi ao deserto".
O comentário é de Bruno Cava Rodrigues, publicado em sua página do Facebook, 05-01-2024.
A convergência do que escrevemos com a tese da manteiga, enunciada à época por Lula e mais tarde renegada, é apenas superficial.
Para A. Singer, o lulismo se constituía de um reformismo fraco, sem mudanças estruturais à vista, lastreado na aliança despolitizadora entre líder e massas desagregadas, à semelhança do esquema do "18 de brumário", de Marx. Com o êxito do lulismo, o discurso da luta de classe era deslocado para a oposição entre elites e pobres.
Ao contrário dessa colocação do problema, Giuseppe e eu escrevemos como o lulismo continha uma dimensão politizadora. Fizemos uma leitura pelo avesso da mesma problemática. Explico.
É verdade que nós convergíamos, com Singer e muitos outros, que o lulismo se dava no marco neoliberal. Que o PBF poderia estar em qualquer programa elaborado por um Milton Friedman, ou que o Prouni e a política de cotas (no nível federal) não eram projetos de revolução.
A divergência que existia era de fundo, quanto ao diagnóstico do quadro geral do neoliberalismo.
Para Singer, o neoliberalismo era processado como a experiência da perda da classe trabalhadora. Um luto que se manifestava na figura nostálgica e arquipetista do "Espírito de Sion", que Lula deixara para trás ao assumir o governo. Para nós, diversamente, essa perda existe, mas é constitutiva de uma relação produtiva renovada que está na base do neoliberalismo.
Onde Singer enxergava um vazio legado pela história das derrotas, antevíamos um núcleo remobilizador para uma nova composição de classe. O sujeito no neoliberalismo é fraturado desde seu âmago: entre a subjetividade empreendedora e a riqueza implicada de redes de relações e mobilidades.
Então, em vez do negativo de um tempo em que teríamos sido felizes, com grandes mobilizações vermelhas (talvez na Europa Ocidental...), Junho de 2013 nos permitia retrospectivamente confirmar a reflexão sobre as positividades do lulismo, no quanto se articulava com o percurso de recomposição de classe.
Em vez da ratificação do eclipse da política desde baixo, o político reduzido à gestão não-antagonista das crises, apontávamos a atualidade da classe no pós-moderno, que faz da crise uma crítica material, através do mesmo imbricamento de mobilidade e redes que é a realidade produtiva da grande maioria.
Por isso que, em nossa análise, o lulismo também era fraturado desde a sua gênese, ao mesmo tempo substância e sujeito: lulismo de estado e selvagem. Era Uno e Muitos.
Contudo, nos anos Dilma, o primeiro lulismo suplantou o segundo, colmatando as brechas constituintes, no exato momento em que a classe emergia. A tensa ambivalência no governo virou conflito aberto contra ele. Diante disso, procurávamos no pensamento guardar os dois momentos-figuras do processo de Junho: o antagonismo aberto em relação aos representantes e o rastro das políticas lulistas.
Já o lulismo oficial parecia enxergar as políticas menos como espaços de autonomia tendencial do que "doações de Constantino", reduzindo a pobreza a uma dimensão puramente econômica, na contramão, aliás, do próprio Marx. Assim, pela força cogente irresistível do neoliberalismo, os pobres não passariam de consumidores de políticas públicas, que teriam se tornado ingratos em 2013, perfilando-se com a direita neoliberal no país e no mundo.
Ao revés, compreendíamos que Lula e o PT por um bom período tinham captado, no pragmatismo da busca por potência, os cadinhos nascentes de formação de classe, mas terminaram cometendo um erro político custoso na inflexão dos anos Dilma e, sobretudo, nas respostas a Junho. Os debates internos, nos tempos de autocrítica do governismo, se polarizaram entre os que avaliavam que deveriam ter sido mais Sion (anticapitalistas e ideológicos) ou mais Anhembi (conciliadores e realistas).
Em relação àqueles que viam exclusivamente o caráter de negatividade, anti-governo em geral e anti-lulismo, nas jornadas de 2013, não podíamos deixar de sublinhar o traço intensivo de instituições no neoliberalismo, tensionadas para mais além. Não era caso de retomar o falso problema de reforma x revolução, mas compreender como o painel de condições de luta é tortuoso, passa por inversões, e se dá entre instituições e movimentos.
Hoje, olhando para trás, eu faria alguns ajustes conceituais e apararia algumas arestas retóricas, tenho a certeza que o Giuseppe também, mas não mudaria em essência o que foi escrito. Leio com atenção artigos de cientistas políticos, sociólogos, antropólogos e filósofos, e não vi até agora, no principal, nada que invalidasse. Dez anos depois, tenho poucas dúvidas sobre o fato que, no Brasil, o ponto mais alto de potência e organização de classe nas condições do neoliberalismo se deu ao redor e a partir de Junho.
PS. Em 2014, Paulo Arantes intitulou um artigo de livro da seguinte forma: "depois de Junho, a paz será total". Um dos títulos mais felizes de todos os tempos. Mas não foi o que ocorreu, ou pelo menos, a paz não aconteceu no curto prazo. Depois de Junho, teremos vivenciado uma década inteira de reviravoltas e tumultos. A pergunta que se coloca hoje é se, com o retorno de Lula para o terceiro mandato, haveríamos chegado ao momento da pacificação derradeira. Pergunto: teria o adágio arantiano finalmente se consumado?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Mais junho, 10 anos depois. Comentário de Bruno Cava - Instituto Humanitas Unisinos - IHU