20 Dezembro 2022
A experiência do último domingo eleitoral de conceder Tarifa Zero mostrou-se relativamente simples de ser adotada e muito menos custosa financeira e politicamente do que se imaginava.
O artigo é de Daniel Caribé, autor da tese “Tarifa Zero: mobilidade urbana, produção do espaço e Direito à Cidade” e um dos coordenadores do Observatório da Mobilidade Urbana de Salvador. Foi publicado por Le Monde Diplomatique Brasil, 14-12-2022.
Quando a Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou o projeto de lei do prefeito Sebastião Melo que extinguia a Tarifa Zero nos ônibus nos dias de eleição, existente na capital gaúcha desde os anos 1990, os vereadores não tinham ideia de que estavam evocando um velho fantasma.
Aprovada em 2021, a medida só causou impactos políticos na véspera do primeiro turno, quando o Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul recomendou que os municípios gaúchos adotassem a gratuidade nos dias de eleições. A disputa foi parar na justiça, e Melo e os vereadores da sua base foram derrotados. A gratuidade foi garantida nos ônibus de Porto Alegre, mas não só lá.
A partir de Porto Alegre, uma onda de mobilizações objetivando garantir a Tarifa Zero pelo menos no dia das eleições se espalhou pelo país, assegurando de forma inédita a gratuidade em todas as capitais brasileiras no segundo turno. A maioria das cidades aderiu após pressão social ou de forma voluntária, porém outras precisaram ser obrigadas pela justiça. A campanha Passe Livre pela Democracia, que emergiu desse processo e a partir de coalização de uma centena de organizações, contabilizou a adesão de mais de quatrocentas cidades, beneficiando mais de 100 milhões de pessoas.
Pela primeira vez na história, a abstenção eleitoral caiu do primeiro para o segundo turno e, apesar de toda atipicidade do último pleito, que mobilizou o país de forma inédita, o impacto da gratuidade nos transportes coletivos no resultado das eleições parece ter sido reconhecido até pelo candidato derrotado, que acusou o TSE de parcialidade por ter confirmado a legalidade da medida, viabilizando assim o direito de votar da população mais vulnerável.
A experiência do último domingo eleitoral mostrou-se relativamente simples de ser adotada e muito menos custosa financeira e politicamente do que se imaginava. Agora, uma profusão de projetos de lei, a exemplo do PL 2928/2022, tentam garantir que a Tarifa Zero eleitoral seja a regra daqui para frente, mas há quem a defenda para outras ocasiões, a exemplo do dia da prova do Enem ou em períodos de campanha de vacinação.
A proposta da Tarifa Zero total, e não apenas para dias atípicos, voltou com força ao centro dos debates quase uma década após ter ficado amplamente conhecida nas mobilizações que varreram o país em 2013, por ser a principal bandeira do Movimento Passe Livre (MPL), e três décadas após Luiza Erundina, então prefeita de São Paulo, e seu secretário Lúcio Gregori terem proposto a política. É como se um ciclo insistisse em não se fechar. Mas, desta vez, o fantasma que outrora assombrou o governo petista retornou para ajudar o partido a voltar ao poder.
A emergência da pauta levou o MDB, do próprio Sebastião Melo que tentou extinguir a Tarifa Zero em Porto Alegre prejudicando o seu candidato a presidente, a cogitar transformar a medida em bandeira do partido. Prefeito de outra capital, porém da mesma sigla, Ricardo Nunes solicitou um estudo para embasar a possível adoção da medida em São Paulo.
Mesmo o PT, que na década de 1990 não tinha conseguido consenso e desconfiava da viabilidade política da proposta da primeira mulher a assumir a prefeitura da capital paulista, passou a considerar com mais seriedade a proposta. Desde então, publicamente apenas O Globo fez um editorial contra a Tarifa Zero, acusando a discussão de ser “movida mais por oportunismo do que pelo desejo de melhorar a qualidade do transporte”.
Mas o que mudou nesses últimos anos, a ponto de a Tarifa Zero ter deixado de ser exclusivamente um projeto de gestores ousados e de um movimento social criminalizado – pela esquerda e pela direita – para se tornar a possível bandeira de um dos partidos mais fisiológicos do país, uma medida já adotada em mais de quarenta cidades pequenas e médias brasileiras e uma das possíveis políticas do terceiro governo Lula?
O fantasma de 2013 talvez esteja sendo finalmente exorcizado, se quisermos ser inadvertidamente otimistas. Ou precisamos olhar para o colapso generalizado dos sistemas de transporte coletivo urbano e para as implicações disso no curto e médio prazo, inviabilizando governos das mais diferentes matizes ideológicas. Por exemplo, o prefeito de Salvador foi compelido a subsidiar parte da tarifa, contudo sem ter coragem de mudar a lógica de funcionamento do setor.
E não foi só a capital baiana. No pacote de medidas que visavam garantir a reeleição de Bolsonaro, algo passou quase despercebido: o repasse de R$ 2,5 bilhões para empresas de ônibus objetivando cobrir os custos com a gratuidade dos idosos, enxertado no meio da Emenda Constitucional de nº 123/2022, imediatamente apelidada de “PEC Kamikaze” pelos setores neoliberais. Tal medida, inédita, inaugurou por vias tortas uma prática no país que será dificilmente revertida, pois responsabiliza o governo federal pelo financiamento dos transportes coletivos urbanos.
Até aqui, o transporte coletivo urbano era de responsabilidade quase exclusiva dos governos municipais, com exceção do transporte metropolitano, que fica a cargo dos governos estaduais. Em raros casos o governo federal compartilha responsabilidades, a exemplo do Metrô de Belo Horizonte, operado pela Companhia Brasileira de Trens Urbanos.
As prefeituras, por sua vez, repassam a operação – e muitas vezes a gestão – do serviço para entidades privadas, que buscam a viabilidade dos seus negócios por meio da arrecadação tarifária. Ou seja, o transporte é um direito social constitucionalmente garantido que funciona exclusivamente pela lógica de mercado: tem acesso quem pode pagar e quem não pode, na prática, fica impedido de circular. Enquanto os lucros estavam garantidos, apesar do desastre social, esse modelo permaneceu.
O problema é que a pandemia iniciada em 2020 acelerou processos que afetam radicalmente o modelo atual de gestão e financiamento do setor. Uma parte ainda maior dos potenciais usuários, devido ao aumento da pobreza, deixou de ter acesso, aumentando os índices de imobilidade urbana. Somando-se a isso, a migração rumo aos veículos individuais motorizados continua a acontecer, especialmente por causa da chegada dos aplicativos como a Uber e a venda descontrolada de motocicletas. Por último, a pandemia acelerou a reorganização das relações de trabalho e muitas pessoas passaram a trabalhar em casa, prescindindo de deslocamentos diários.
O fato é que, com o repasse sem contrapartidas dado pelo governo Bolsonaro, que se somou a inéditos subsídios das prefeituras, o setor de transporte coletivo urbano conseguiu fechar mais um ano com os ônibus em circulação, apesar dos cortes de linhas e demissões de rodoviários em quase todo o país. O problema é que esse auxílio foi apenas para viabilizar a agora fracassada reeleição e não há previsão de continuidade.
Sem esse auxílio, as grandes cidades brasileiras – altamente dependentes dos transportes públicos – podem parar em 2023, gerando uma crise já no primeiro ano de mandato de Lula. Há um risco real da retomada da quebra generalizada de empresas do setor, ou mesmo de um locaute, em razão da inviabilidade do modelo de negócio que elas próprias criaram para si. Espalhados por todo o país, e enfrentando os mesmos problemas, os empresários dos transportes coletivos têm em mãos o poder de derrubar governos em função do caráter essencial de serviço que prestam.
A proposta de Tarifa Zero cresce exatamente por conta dessa falência do modelo de gestão e financiamento dos transportes coletivos urbanos, já que onde está sendo colocada em prática se mostra eficiente para contornar o colapso, trazendo ganhos consideráveis à população. Mas a Tarifa Zero também se conecta às medidas ambientais por conta da transição modal e energética que poderá provocar, diminuindo o uso dos veículos motorizados individuais e consequentemente os índices de poluição. Por exemplo, no Chile há a proposta do “doble cero”, aliando a gratuidade à diminuição drástica do uso de combustíveis fósseis, e no Brasil já se começa a falar em triplo ou até quádruplo zero: sem mortes no trânsito, sem emissões de poluentes, sem tarifa e sem assédios nos transportes coletivos.
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A Tarifa Zero e a evocação de um velho fantasma. Artigo de Daniel Caribé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU