18 Novembro 2023
“Após duas longas décadas de um progressismo que mostrou suas misérias, o zapatismo permanece eticamente incontestável. Continuam com a mesma vitalidade de sempre, apesar dos cercos e as violências que enfrentam”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 17-11-2023. A tradução é do Cepat.
Hoje, completam-se 40 anos da fundação do Exército Zapatista de Libertação Nacional – EZLN, em 17 de novembro de 1983, e daqui a poucas semanas celebramos os 30 anos do levante de 1º de janeiro de 1994. O zapatismo está tão vivo quanto há três ou quatro décadas, o que nos motiva a tentar entender a sua excepcionalidade.
A primeira questão é que estamos diante de um processo revolucionário, já que houve uma mudança de regime nas áreas onde o zapatismo está estabelecido. Terminou o regime das fazendas e sitiantes. As terras foram recuperadas e os proprietários fugiram. Nesses espaços, passaram a governar as bases de apoio e comunidades, os municípios autônomos e as juntas de bom governo que exerceram a autonomia.
Contudo, não estamos diante de uma revolução clássica, como as que conhecemos nos últimos dois séculos e, em particular, desde a Revolução Russa de 1917. Aqui, podemos relembrar o diálogo entre o subcomandante Marcos e o velho Antônio para dizer que o processo de transformações começa em determinado momento, talvez impossível de datar, e nunca termina, se é verdadeiro. O relato se refere à luta, que é como um círculo que não tem fim, mas penso que pode ser aplicado ao processo de mudanças zapatista.
Em segundo lugar, estou convencido de que o zapatismo mudou o conceito que tínhamos sobre a forma de mudar o mundo, focado em datas e lugares: 25 de outubro de 1917, Tomada do Palácio de Inverno, em São Petersburgo, por exemplo; 14 de julho de 1789, Tomada da Bastilha; 1º de outubro de 1949, triunfo da revolução chinesa e Proclamação da República Popular e assim por diante.
Se não entendi errado, o processo zapatista começou, talvez, há 40 anos e ainda segue transformando a realidade. Trata-se de um extenso processo de mudanças permanentes, centrado nos seres humanos e não só em coisas e em objetos, cujo centro é a autonomia. A recuperação da terra, dos meios de produção, é central, mas não a ocupação de edifícios e instituições.
As mudanças de fundo podem começar, como neste caso, mesmo antes de recuperar a terra, porque se concretizam nos modos de fazer, nos trabalhos coletivos como eixos de qualquer construção e, é claro, na autonomia. O zapatismo rejeita a estagnação, a institucionalização e, portanto, não transformar a vida. Assume-se como processo sempre inacabado, não congelado em datas, lugares e pessoas. A partir dessas ideias, proponho espelhar o processo zapatista com a situação que outros processos de mudança atravessavam ao completarem 30 anos.
A Revolução Russa naufragou muito antes de chegar aos seus 30 anos. Menos de uma década após a tomada do poder, intensificaram-se as limpezas dentro do partido e a repressão contra aqueles que discordavam da direção, mas, sobretudo, os ataques aos camponeses e a seus costumes, impondo a coletivização forçada.
É verdade que a Revolução Russa precisou enfrentar uma guerra civil com a intervenção das principais potências estrangeiras. Contudo, a repressão contra a oposição operária e os assassinatos de altos dirigentes como Trotsky não são consequência da guerra civil, mas da luta pelo controle absoluto do poder por um pequeno grupo de dirigentes.
Em 1979, três décadas após o triunfo da revolução, a China abraçava o capitalismo após prender vários dirigentes do partido, inclusive a viúva de Mao, Jiang Qing. Apesar dos erros de Mao e de sua tendência a governar de cima, sua morte em 1976 acelerou a marcha para o capitalismo e o abandono de todas as tensões transformadoras pela nova direção liderada por Deng Xiaoping e aqueles que o seguiram.
A cultura política dominante nesses processos foi se afastando dos princípios iniciais e de fundação. Com o tempo, inclinou-se a reproduzir os costumes e vícios das classes derrotadas, como o próprio Lenin conseguiu observar no final da sua vida. Stalin costuma ser comparado a um czar e os comunistas chineses à casta privilegiada dos mandarins.
A luta pelo poder foi o eixo das revoluções “triunfantes”, centradas no Estado. A autonomia e a construção do novo são o cerne do zapatismo. Por tudo isto, 30 anos após o “Já basta!”, podemos dizer que o zapatismo segue transformando o mundo, criando o mundo novo e o defendendo. Criou formas novas de exercer o poder através do “mandar obedecendo”. As relações entre as pessoas continuam sendo modificadas na saúde, educação, produção, justiça, festa, esporte e arte, orientadas pela ética rebelde.
Não se trata de que tenham feito algo grande em 1994 e pronto. Trata-se do longo processo de mudanças e criações, e de compreender que agora vão em busca de mais. Após duas longas décadas de um progressismo que mostrou suas misérias, o zapatismo permanece eticamente incontestável. Continuam com a mesma vitalidade de sempre, apesar dos cercos e as violências que enfrentam.
Zapata vive...
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EZLN: 40 anos construindo autonomia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU