05 Janeiro 2024
"Entre o 'nada muda' e a 'virada histórica', estende-se a distância entre o texto e a recepção, entre a letra e seus efeitos. Ambos justificados pela 'astúcia' do documento que, graças à distinção entre bênçãos litúrgicas e bênçãos pastorais, entre bênçãos sacerdotais 'descendentes' (de Deus para o homem) e bênçãos 'ascendentes' (louvor e agradecimento a Deus), contorna o redesenho da doutrina moral e confia aos bispos e presbíteros a possibilidade de abençoar casais 'irregulares', como coabitantes, divorciados recasados e casais homossexuais", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 05-01-2024.
Fiducia supplicans, a declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé sobre o sentido pastoral das bênçãos (18 de dezembro de 2023), "não modifica de forma alguma o ensinamento da Igreja em relação ao casamento e à família" (episcopado polonês). "No contexto da história seculares da Igreja Católica, a decisão anunciada pelo Vaticano... de autorizar a bênção de casais homossexuais constitui uma virada histórica" (Le Monde, 19 de dezembro).
Entre o "nada muda" e a "virada histórica", estende-se a distância entre o texto e a recepção, entre a letra e seus efeitos. Ambos justificados pela "astúcia" do documento que, graças à distinção entre bênçãos litúrgicas e bênçãos pastorais, entre bênçãos sacerdotais "descendentes" (de Deus para o homem) e bênçãos "ascendentes" (louvor e agradecimento a Deus), contorna o redesenho da doutrina moral e confia aos bispos e presbíteros a possibilidade de abençoar casais "irregulares", como coabitantes, divorciados recasados e casais homossexuais.
Deslocando a questão para fora do ensinamento matrimonial e do espaço litúrgico, abre-se uma liberdade pastoral que pode antecipar o desenvolvimento doutrinário.
A revisão de algumas vozes que até agora acompanharam a diversificada recepção das indicações romanas pretende dar conta do debate e dos possíveis resultados, distinguindo os favoráveis, os hesitantes e os contrários. De maneira muito aproximada, o consenso une o Ocidente, a América Latina e a Ásia, enquanto a dissidência se estende do Leste Europeu à África, seguindo as sensibilidades eclesiais, mas também as áreas culturais. Na realidade, as linhas de fronteira são muito mais complexas e abrem novos horizontes quanto à governança da Igreja e ao seu estatuto sinodal.
Dom Georg Bȁtzing, presidente da Conferência Episcopal Alemã, expressou-se positivamente: "Recebo com grande satisfação este documento e sou grato pela perspectiva pastoral que ele traz... é possível e permitido ao ministro ordenado atender aos desejos de casais que pedem uma bênção para o seu relacionamento, mesmo que não vivam totalmente de acordo com as normas da Igreja". O site Katholisch.de (19 de dezembro) revisou uma dúzia de bispos locais alemães, essencialmente todos favoráveis.
Os bispos suíços também estão na mesma sintonia: "Esta decisão corresponde ao desejo dos bispos suíços por uma Igreja aberta que leve a sério, respeite e acompanhe as pessoas em seus afetos mútuos". O episcopado belga também saúda a virada pastoral com satisfação. Em particular, o bispo de Antuérpia, Dom Johan J Bonny.
Na França, intervieram os bispos da Lorena. Dom P. Ballot: "O casamento homossexual não é permitido, mas estamos na situação de questionar seriamente como recusar a pessoas em 'situação irregular' um gesto que fazemos habitualmente a outros, sem problemas". O bispo de Nancy, P. Michel, acrescenta: "Não abençoamos o casal como no casamento. Abençoamos as pessoas. Parece-me bom e importante fazer isso".
As avaliações de muitos bispos na Itália e na Espanha não são diferentes. Na Áustria, o bispo de Salzburgo, Dom Franz Lackner, observa: "Acredito que a Igreja reconheça que a relação entre duas pessoas do mesmo sexo não é completamente desprovida de verdade. Há nela amor, lealdade e também provas enfrentadas juntas na fidelidade". Menos óbvio é o consentimento na Croácia. Para o bispo de Rijeka, Dom M. Uzinić, a declaração vaticana "é um convite a não atirar pedras, mas a estar perto daqueles que buscam a presença de Deus".
O cardeal Oswald Gracias, bispo de Mumbai (Índia), expressa-se assim: "Acredito que um país como a Índia, com seu pluralismo e riqueza religiosa, o que foi expresso por Fiducia supplicans é natural. A bênção faz parte de nossa espiritualidade. Todos na Índia pedem bênçãos... Todos têm direito ao amor e compaixão de Deus".
A avaliação da Conferência Episcopal das Filipinas também é positiva. E o cardeal de Singapura, William Goh Seng Chye, acrescenta: "Não abençoamos os pecados da pessoa, mas sim o indivíduo que é sempre amado por Deus, mesmo quando é pecador".
Hesitantes. Incerteza e prudência são notadas tanto entre os favoráveis como entre os contrários. A maioria dos bispos americanos é crítica em relação ao Papa Francisco, mas em relação à pastoral das pessoas homossexuais, são mais compreensivos. A declaração do Vaticano confirma a doutrina sobre o casamento "mas esforça-se por acompanhar as pessoas dando-lhes uma bênção pastoral porque cada um de nós precisa do amor terapêutico e da misericórdia de Deus em sua vida".
O cardeal arcebispo Dom Blase Cupich, de Chicago, diz mais: "Acolhemos esta declaração que ajudará muitas pessoas de nossa comunidade a sentir a compaixão e a proximidade de Deus".
São principalmente as organizações homossexuais que apreciam a declaração, mas também denunciam seus limites. Alguns representantes de associações cristãs francesas de defesa dos direitos dos homossexuais destacam o importante percurso percorrido pela Igreja em relação a eles desde os anos 80 (Catecismo da Igreja Católica) até o documento de 2003 sobre propostas de lei relativas às uniões civis e o de 2005 sobre critérios de discernimento vocacional, até o texto do Dicastério para a Doutrina da Fé de 2021. Agora, finalmente, de maneira positiva, chega-se à declaração do mesmo dicastério.
Mas a abordagem positiva do documento não esconde dois desafios: a recepção efetiva na prática pastoral e a necessidade de uma escavação teológica mais profunda em relação ao conjunto do magistério sobre a moral e sua ancoragem na "moral natural".
O porta-voz da associação alemã #OutInChurch observa: "Enquanto se falar de relações irregulares e as bênçãos permanecerem proibidas na liturgia, minha participação na celebração será forçosamente limitada". Para a Juventude Católica Austríaca, a declaração vaticana é "anti-queer", os casais homossexuais permanecem em um nível inferior aos heterossexuais.
A voz mais crítica é a do canonista alemão, N. Lüdecke, que considera a declaração "degradante e tóxica". Uma falsa abertura acompanha a recusa em aceitar a orientação sexual das pessoas queer, justificando uma espécie de apartheid litúrgica. Esta última voz permite revisar as posições contrárias.
Contrários. Podemos começar pelo cardeal de Montevidéu, no Uruguai, Dom Daniel Sturla, que considera a declaração confusa e ambígua. Todas as pessoas podem ser abençoadas, "mas é muito diferente abençoar um casal homossexual". "Devemos manter a prática atual da Igreja, ou seja, abençoar todas as pessoas, mas não abençoar casais do mesmo sexo".
O bispo de Astana, no Cazaquistão, Dom T. Peta, afirma: "Nenhuma das afirmações contidas nesta declaração, nem mesmo a mais bonita, pode minimizar as consequências destrutivas e abrangentes resultantes deste esforço para legitimar tais bênçãos. Proíbo os padres e os fiéis de aceitarem ou praticarem qualquer forma de bênção de casais em situações irregulares e de casais do mesmo sexo".
O bispo maior da Ucrânia, Dom S. Shevchuk, disse que a declaração não tem valor legal para os fiéis da Igreja Greco-Católica Ucraniana. "Segundo a prática litúrgica de nossa Igreja, o conceito de bênção significa aprovação - e, portanto - a bênção de um sacerdote e de um bispo é um gesto litúrgico que não pode ser separado do conteúdo dos ritos litúrgicos e reduzido apenas às circunstâncias e às necessidades da piedade privada".
Também são contrários os bispos da Hungria: "Levando em consideração a situação pastoral de nosso país, a conferência episcopal formula como diretriz para os pastores que podemos abençoar todas as pessoas individualmente, independentemente de sua identidade de gênero e orientação sexual. No entanto, devemos sempre evitar dar uma bênção comum a casais que vivem juntos fora do casamento e que têm um casamento não validado pela Igreja ou um relacionamento homossexual".
Na Polônia, os bispos se referem ao decreto vaticano de 2021, no qual se afirma a impossibilidade da bênção: "Por praticar atos sexuais fora do casamento... constitui sempre uma ofensa à vontade e à sabedoria de Deus, expressa no sexto mandamento do Decálogo, as pessoas que estão em tal relação não podem receber uma bênção".
O caso mais sério é o da África, onde, dos 55 países, 31 têm leis que consideram a homossexualidade um crime. Os bispos da Nigéria, Camarões, Benin, Malawi, Togo, Costa do Marfim, Zâmbia, Gana, Quênia e Congo se manifestaram de maneira negativa.
Em Kinshasa, no Congo, o cardeal arcebispo Fridolin Ambongo, presidente do Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagascar, escreveu aos seus irmãos continentais: "A ambiguidade da declaração, que se presta a várias interpretações e manipulações, suscita muitas dúvidas entre os fiéis" e pede a opinião dos outros bispos para redigir uma declaração comum e sinodal em nome da Igreja da África, uma "declaração pastoral que sirva como linha diretriz geral para todas as Igrejas locais do continente".
As respostas devem chegar até meados de janeiro para depois serem reunidas em um texto compartilhado. Posso recordar algumas expressões entre os outros episcopados. Para os bispos da Nigéria: "Não há na Igreja a possibilidade de abençoar uniões e atividades homossexuais. Isso iria contra a lei de Deus, os ensinamentos da Igreja, as leis de nossa nação e a sensibilidade cultural de nosso povo".
Os bispos dos Camarões disseram: "Reiteramos nossa desaprovação pela homossexualidade e uniões homossexuais (e não queremos) encorajar uma escolha e uma prática de vida que não pode ser reconhecida como objetivamente ordenada ao desígnio de Deus".
A homossexualidade é uma ruptura dos valores familiares e sociais, um rasgo violento "em relação à herança de nossos antepassados". Os bispos de Malawi escreveram: "Para evitar confusão entre os fiéis, ordenamos que, por razões pastorais, as bênçãos para uniões homossexuais não sejam permitidas".
Um pouco diferente é o caso de Gana, porque, enquanto os bispos apoiam o projeto de lei anti-homossexuais e são críticos em relação à declaração do Vaticano, seu representante mais significativo, o cardeal P. Tukson, ex-prefeito do dicastério para o desenvolvimento humano e integral, disse: "Precisamos de educação, para que as pessoas possam fazer a distinção entre o que é um crime e o que não é".
A muitos críticos da declaração respondeu o prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, o cardeal Víctor Manuel Fernandez, em algumas entrevistas (ABC na Espanha, o americano The Pillar etc.). Ele lembra que o tema são as bênçãos e nada mais, que as bênçãos estão no nível da piedade popular e do gesto pastoral, e que há uma responsabilidade não delegável do bispo a quem é concedido um certo espaço de manobra, mas não o de negar a disposição vaticana.
"É evidente que precisamos crescer na convicção de que as bênçãos não ritualizadas não são uma consagração da pessoa, não são uma justificação de todas as suas ações, não são uma ratificação da vida que leva. Não e não. Exaltamos tanto o simples gesto pastoral (da bênção) a ponto de equipará-lo ao sacramento da Eucaristia. É por isso que queremos impor tantas condições para abençoar". O que o sacramento exige não é necessário para uma bênção.
Em 4 de janeiro, com um comunicado à imprensa, o Dicastério para a Doutrina da Fé se pronunciou oficialmente sobre a recepção de Fiducia supplicans, lembrando que "cada bispo local, em virtude de seu próprio ministério, tem sempre o poder de discernimento no local, ou seja, naquele lugar concreto que conhece mais do que outros porque é o seu rebanho. A prudência e a atenção ao contexto eclesial e à cultura local podem admitir diferentes formas de aplicação, mas não uma negação total ou definitiva deste caminho que é proposto aos sacerdotes".
O texto convida então a uma contextualização, não apenas eclesial, mas também sociocivil (com as consequentes ramificações jurídicas), da recepção do documento do Vaticano: "O caso de algumas Conferências Episcopais deve ser compreendido em seu próprio contexto. Em diferentes países, existem fortes questões culturais e até mesmo legais que requerem tempo e estratégias pastorais que vão além do curto prazo".
A prática pastoral desse tipo de bênçãos deve ser acompanhada por uma formação adequada do povo de Deus, visando a correta compreensão de seu significado na vida da Igreja Católica: "Em alguns lugares, talvez, uma catequese será necessária para ajudar todos a entenderem que esse tipo de bênção não é uma ratificação da vida que aqueles que as invocam levam. Menos ainda são uma absolvição, pois esses gestos estão longe de ser um sacramento ou um rito formal. Todos nós teremos que nos acostumar a aceitar o fato de que, se um padre dá esse tipo de bênção simples, ele não é um herege, não está ratificando nada, não está negando a doutrina católica".
Como notas simples à margem, é útil indicar alguns pontos críticos.
a) Em primeiro lugar, o espaço entre inovação pastoral e confirmação doutrinária. É possível que o primeiro possa estimular o segundo a um processo de inovação que muitos no Ocidente consideram necessário. De alguma forma, será necessário encontrar uma síntese. Além disso, a reflexão acadêmica tem pressionado há muito tempo por uma reformulação da teologia moral de subjetiva para objetiva e não considera a "lei natural" como medida fixa e definitiva. Uma referência apropriada é o texto da Academia Pontifícia para a Vida, Ética Teológica da Vida (Lev, 2022).
b) O perigo de um cisma é frequentemente evocado, em paralelo com a divisão nas Igrejas anglicanas entre o Ocidente e as Igrejas do Sul, esquecendo a diversidade radical das relações entre o centro e a periferia nas duas Igrejas. A Igreja Católica na África encontrara em Roma mais apoio e defesa do que críticas e imposições.
c) Muito mais desafiadora é a distância cultural. Na África e além, a afirmação dos bispos camaroneses seria assinada: "Na história dos povos, a prática da homossexualidade nunca levou a uma evolução social, mas é um claro sinal da decadência iminente das civilizações. Na verdade, coloca a humanidade contra si mesma e a destrói". Ao mesmo tempo, durante o século XX, observou-se uma progressiva despenalização da homossexualidade, mesmo na África. Gabão, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Lesoto, Seychelles, África do Sul despenalizaram a homossexualidade. Um processo jurídico que, no entanto, parece não ter afetado o ethos compartilhado e tradicional.
Voltando ao contexto eclesial, a atual tendência divergente encontra uma resposta na direção sinodal que Francisco iniciou. Uma voz africana autorizada registrada pela La Croix (28 de dezembro) assegura: "Não é uma rebelião (a africana), mas o início de um processo sinodal. Culturas diferentes devem dialogar e caminhar juntas, ou seja, a unidade na diversidade". O teólogo Gilles Routhier reconhece o risco de uma Igreja em diferentes velocidades inclinada a esvaziar a autoridade decisiva do papado, mas também lembra os felizes compromissos alcançados no passado e a direção precisa do Vaticano II para uma maior autoridade das Conferências Episcopais.
"Uma coisa é certa, Francisco, assim como João Paulo II, avisa que não pode governar uma Igreja mundial da mesma maneira que o papa governava uma Igreja substancialmente europeia. A partir dessa constatação, deve-se buscar a possibilidade de ter práticas na comunhão compartilhada, como ocorre com as igrejas orientais". Há quem veja na Fiducia Supplicans uma espécie de teste para um descentralização para a Igreja Católica.
Há, finalmente, um aspecto institucional e político. A geografia do consenso e do desacordo registrada aqui pode influenciar a maioria necessária em um futuro conclave? Nesse caso, desenharia um perfil papal menos propulsivo do atual, senão conservador.
Mas o Colégio Cardinalício não coincide necessariamente com a orientação dos episcopados, assim como por vezes os bispos não coincidem com a sensibilidade predominante em suas igrejas. O evento do conclave é difícil de prever. Em nível político global, está crescendo mais do que um "confronto de civilizações", um "confronto sobre valores".
Os conflitos mais substanciais parecem se referir mais aos temas morais do que aos econômicos. Para James Davison Hunter, desde os anos 1970 nos Estados Unidos fala-se menos sobre trabalho, economia e política internacional e cada vez mais sobre aborto e família. A guerra de Putin (e Kirill) contra a Ucrânia está cada vez mais justificada em função dos valores antiocidentais. Como o contexto político internacional pode condicionar o confronto interno à Igreja Católica, ainda está por ser escrito.
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Homo-bênçãos: entre letra e efeitos. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU