05 Outubro 2023
"A surpresa desta vez não é que tenham surgido as dubia, mas que o Papa Francisco realmente tenha escolhido responder. Ao fazê-lo, e dependendo de como escolhemos encará-lo, o pontífice tornou supérfluo todo o exercício sinodal ou o salvou de si mesmo. Não importa o que aconteça, vivemos agora num universo político diferente em relação ao Sínodo do que vivíamos há apenas 48 horas".
A opinião é de John L. Allen Jr., jornalista vaticanista e editor, em artigo publicado por Crux, 04-10-2023.
É claro que já vimos esse show antes, mas desta vez é com uma grande reviravolta na história. Foi há seis anos que um pequeno grupo de cardeais conservadores emitiu um conjunto de dubia, ou dúvidas teológicas, ao Papa Francisco na sequência do seu controverso documento Amoris Laetitia de 2016, que abriu uma porta cautelosa à recepção da comunhão por pessoas divorciadas e recasadas no civil.
Nesse caso, o papa recusou-se a responder, permitindo em vez disso que vários partes falassem em seu nome, embora fosse geralmente entendido que Francisco teria uma visão negativa da iniciativa. Dado esse precedente, não é de surpreender que outro punhado de cardeais conservadores, incluindo dois dos autores das dubia originais de 2016, estejam de volta, desta vez apresentando uma nova lista de cinco dúvidas antes do Sínodo dos Bispos sobre a Sinodalidade.
Com toda a honestidade, tais dubia são exercícios retóricos, no máximo. Os cardeais não estão realmente fazendo perguntas, eles estão defendendo pontos – ou, se preferirmos, afiando machados. A surpresa desta vez não é que tenham surgido as dubia, mas que o Papa Francisco realmente tenha escolhido responder. Ao fazê-lo, e dependendo de como escolhemos encará-lo, o pontífice tornou supérfluo todo o exercício sinodal ou o salvou de si mesmo.
Não importa o que aconteça, vivemos agora num universo político diferente em relação ao Sínodo do que vivíamos há apenas 48 horas.
Os cinco cardeais por trás do novo conjunto de dubia, incluindo o cardeal americano Raymond Burke, publicaram as questões na segunda-feira, dizendo que haviam apresentado um conjunto inicial há alguns meses e obtiveram uma resposta de Francisco, mas porque ele não respondeu na forma tradicional formato sim/não, eles revisaram as dubia e os reenviaram.
Poucas horas depois de se tornarem públicas, o cardeal arcebispo argentino Víctor Manuel Fernández, novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, publicou uma carta ao papa em 25 de setembro, juntamente com as respostas originais do pontífice aos cardeais, tornando assim essas respostas de domínio público.
Sobre as questões controversas da bênção das uniões do mesmo sexo e das mulheres ordenadas ao sacerdócio, o papa emitiu um cauteloso “sim” e um aparentemente firme “não”, respectivamente, embora as suas respostas tenham sido qualificadas em ambos os casos.
Quanto às bênçãos, o pontífice falou que são possíveis caso a caso, desde que não cortejem confusão com o sacramento do casamento, e também disse que não deveria haver quaisquer normas ou políticas generalizadas sobre a questão, seja do Vaticano, seja das conferências episcopais, porque é uma questão de prudência pastoral.
Sobre as mulheres ordenadas ao sacerdódio, Francisco reiterou a rejeição “definitiva” do Papa João Paulo II e acrescentou que o ensino deve ser seguido por todos, mas permitiu que a questão pudesse ser estudada, comparando-a com a questão da validade das ordenações anglicanas. Embora os detalhes destas respostas estejam sujeitos a um escrutínio interminável, de certa forma o ponto mais interessante é que elas geraram reações.
Não só rompe com o precedente de 2016, mas também parece estar em desacordo com o espírito de consulta e escuta no seio do Sínodo. Seria de se esperar que o pontífice dissesse algo como o seguinte: “Obrigado por levantar essas questões, que fornecem um excelente alimento para reflexão. No entanto, como o objetivo do Sínodo é ouvir o que o Povo de Deus tem a dizer antes de tomar decisões, vou esperar pelos resultados das discussões antes de fornecer as minhas próprias respostas. Vamos conversar quando tudo acabar em 2024”.
Os participantes que viajaram a Roma esperando serem ouvidos sobre estas questões podem ficar um pouco incomodados pelo fato de o papa já ter tomado posições antes de absorver o que quer que eles planejassem dizer. Na verdade, para aqueles que esperavam que os pontos críticos do Sínodo se centrassem, pelo menos em parte, nas questões controversas das mulheres ordenadas ao sacerdócio e na bênção das uniões do mesmo sexo, poderiam sentir que Francisco tornou todo o exercício supérfluo, levantando a questão sobre a real finalidade dos últimos dois anos e meio de consulta e das despesas derivadas de trazer quase 400 pessoas a Roma duas vezes em aproximadamente dois anos.
Por outro lado, os organizadores do Sínodo, os acólitos papais e o próprio Papa têm insistido desde o início deste processo que a questão não é abordar um cânone estreito de questões controversas. Em vez disso, é imaginar um novo estilo de ser Igreja, uma nova forma de construir um futuro caminhando juntos num espírito de diálogo e abertura.
Fazer isso, insistem eles, tem de envolver um reexame completo da vida eclesiástica em todos os níveis, e não simplesmente refazer argumentos bastante obsoletos sobre alguns assuntos já cansativos e familiares.
Poderíamos argumentar que, ao fornecer agora as suas respostas sobre estas questões, Francisco efetivamente evitou que as discussões sinodais fossem sequestradas pela controvérsia. Presumivelmente, se alguém agora dentro do Sínodo quiser começar a bater o tambor a favor ou contra a bênção das uniões entre pessoas do mesmo sexo, ou a ordenação de mulheres, a resposta quase reflexiva será: “Vamos, pessoal, o papa já falou, então vamos em frente”.
Esta perspectiva nos conduz a ponderar a potencial ironia de que, ao provocar um curto-circuito no seu próprio exercício de escuta, o papa possa ter aberto espaço para ouvir outros assuntos que são indiscutivelmente mais importantes para as perspectivas de longo prazo do catolicismo. Seja como for, é preciso dizer o seguinte sobre qualquer empreendimento na era do Papa Francisco: nunca, jamais, é enfadonho. Sobre isso, pelo menos, não há espaço para dubia.
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Seja superfluidade, seja salvação, o Papa misturou as cartas do seu sínodo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU