08 Fevereiro 2023
De 5 a 12 de fevereiro, acontece em Praga a fase continental europeia em vista do Sínodo sobre a sinodalidade da Igreja Católica. 200 delegados participam presencialmente e 390 estão conectados on-line. Os trabalhos foram abertos com uma introdução espiritual de Tomáš Halík, transcrita a seguir.
O artigo é publicado por Settimana News, 06-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
No início de sua história, quando se perguntava aos cristãos o que havia de novo em sua prática, se era uma nova religião ou uma nova filosofia, eles respondiam: é o caminho.
É o caminho para seguir aquele que disse “Eu sou o Caminho”. Os cristãos voltaram constantemente a essa visão ao longo da história, especialmente nos momentos de crise.
A tarefa do Sínodo Mundial dos Bispos é a anamnese. Trata-se de recordar, reavivar e aprofundar o caráter dinâmico do cristianismo. O cristianismo foi o caminho no início, e deve ser o caminho agora e para sempre. A Igreja como comunhão de peregrinos é um organismo vivo, ou seja, sempre aberto, em transformação e evolução.
A sinodalidade, um caminho comum (syn hodos), significa uma abertura constante ao Espírito de Deus, por meio do qual o Cristo ressuscitado e vivo vive e atua na Igreja. O Sínodo é uma oportunidade para escutar juntos o que o Espírito está dizendo às Igrejas hoje.
Nos próximos dias refletiremos juntos sobre os primeiros frutos do caminho para reavivar o caráter sinodal da Igreja em nosso continente. Trata-se de um pequeno trecho de uma longa jornada. Esse pequeno, mas importante fragmento da experiência histórica do cristianismo europeu, deve ser inserido num contexto mais amplo, no variegado mosaico do cristianismo global do futuro.
Devemos dizer de forma clara e compreensível o que o cristianismo europeu hoje quer e pode fazer para responder às alegrias e às esperanças, à dor e à angústia de todo o nosso planeta – este planeta que hoje está interligado de muitas maneiras e ao mesmo tempo é dividido e ameaçado globalmente em muitas formas.
Nos encontramos em um país com uma história religiosa dramática. Inclui o início da Reforma no século XIV, as guerras religiosas dos séculos XV e XVII e a grave perseguição à Igreja no século XX. Nas prisões e campos de concentração do hitlerismo e do stalinismo, os cristãos aprenderam o ecumenismo prático e o diálogo com os não-crentes, a solidariedade, a partilha, a pobreza, a "ciência da cruz".
Este país passou por três ondas de secularização como resultado das mudanças socioculturais: uma "secularização suave" na rápida transição de uma sociedade agrícola para uma sociedade industrial; uma secularização dura e violenta sob o regime comunista; e outra “secularização suave” na transição de uma sociedade totalitária para uma frágil democracia pluralista na era pós-moderna. São justamente as transformações, as crises e as provações que nos desafiam a encontrar novos percursos e oportunidades para uma compreensão mais profunda do que é essencial.
O Papa Bento XVI, durante sua visita a este país, expressou pela primeira vez a ideia de que a Igreja deva, como o Templo de Jerusalém, formar um "pátio dos gentios". Enquanto as seitas aceitam apenas aqueles que são plenamente observadores e comprometidos, a Igreja deve manter um espaço aberto para aqueles que buscam espiritualidade, para aqueles que, embora não se identifiquem plenamente com seus ensinamentos e práticas, ainda assim sentem uma certa proximidade com o cristianismo.
Jesus declarou: "Quem não é contra nós, está conosco" (Mc 9,40). Ele advertiu seus discípulos contra o zelo de revolucionários e inquisidores, diante de suas tentativas de se considerarem anjos do Juízo Final e de separar cedo demais o trigo do joio. Santo Agostinho também defendia que muitos dos que pensam estar fora estão, na realidade, dentro; e muitos que consideram estar dentro, na realidade estão fora.
A Igreja é um mistério; sabemos onde se encontra a Igreja, mas não sabemos onde não se encontra. Cremos e confessamos que a Igreja é um mistério, um sacramento, um sinal (signum) – um sinal da unidade de toda a humanidade em Cristo. A Igreja é um sacramento dinâmico, é um caminho para essa meta.
A unificação total é um objetivo escatológico que só pode ser plenamente realizado no final da história. Só então a Igreja será completa e perfeitamente una, santa, católica e apostólica. Só então veremos e refletiremos plenamente Deus como ele é.
A tarefa da Igreja é manter o desejo dessa meta sempre presente nos corações humanos e, ao mesmo tempo, resistir à tentação de considerar qualquer forma de Igreja, qualquer estado da sociedade e qualquer estado do conhecimento religioso, filosófico ou científico, como definitivo e perfeito.
Devemos sempre distinguir a forma concreta da Igreja na história da sua forma escatológica; isto é, devemos distinguir a Igreja em caminho, a Igreja que luta (ecclesia militans), da Igreja vitoriosa no Céu (ecclesia triumphans).
Considerar a Igreja no meio da história como a ecclesia triumphans leva ao triunfalismo, uma forma perigosa de idolatria. Também a ecclesia militans, se não resistir à tentação do triunfalismo, pode tornar-se uma pecaminosa instituição militante.
Confessamos humildemente que isso aconteceu repetidas vezes na história do cristianismo. Essas trágicas experiências levam-nos agora à firme convicção de que a missão da Igreja é ser fonte de inspiração e transformação espiritual, no pleno respeito pela liberdade de consciência de cada pessoa humana e recusando qualquer uso da força, qualquer forma de manipulação.
Como o poder político, a influência moral e a autoridade espiritual também podem ser abusadas, como nos mostraram os escândalos dos abusos sexuais, psicológicos, econômicos e espirituais na Igreja – especialmente o abuso e a exploração dos mais frágeis e vulneráveis.
A tarefa permanente da Igreja é a missão. A missão no mundo de hoje não pode ser uma "reconquista", uma expressão de nostalgia de um passado perdido, nem um proselitismo, uma manipulação, uma tentativa de empurrar quem busca para dentro das fronteiras mentais e institucionais existentes da Igreja. Ao contrário, essas fronteiras devem ser ampliadas e enriquecidas justamente por suas experiências.
Se levarmos a sério o princípio da sinodalidade, então a missão não pode ser entendida como um processo unilateral, mas sim como um acompanhamento em espírito de diálogo, uma busca de compreensão mútua. A sinodalidade é um processo de aprendizagem no qual não apenas ensinamos, mas também aprendemos.
O convite para abrir o "pátio dos gentios" dentro do templo da Igreja, para acolher aqueles que estão em busca, foi um passo positivo no caminho da sinodalidade no espírito do Concílio Vaticano II. Hoje, porém, devemos ir mais longe. Algo aconteceu com toda a forma templária da Igreja e não devemos ignorá-lo. Antes de sua eleição para a Sé de Pedro, o cardeal Bergoglio recordou as palavras da Escritura: Jesus está à porta e bate.
Mas hoje, acrescentou, Jesus bate de dentro. Ele quer sair e nós temos que o seguir. Devemos superar nossos atuais limites mentais e institucionais, para ir sobretudo ao encontro dos pobres, dos marginalizados, dos que sofrem. A Igreja deve ser um hospital de campanha – essa ideia do Papa Francisco deve ser mais desenvolvida. Um hospital de campanha deve contar com o apoio de uma Igreja capaz de oferecer um diagnóstico competente (ler os sinais dos tempos); uma prevenção (reforçar o sistema de imunidade contra ideologias infecciosas como populismo, nacionalismo e fundamentalismo); e uma terapia e recuperação de longo prazo (incluindo o processo de reconciliação e cicatrização das feridas após tempos de violência e injustiça).
Para essa tarefa tão séria, a Igreja necessita urgentemente de aliados – o seu caminho deve ser partilhado, um caminho comum (syn hodos). Não devemos nos aproximar dos outros com o orgulho e a arrogância de quem possui a verdade. A verdade é um livro que nenhum de nós já leu até o fim. Não somos donos da verdade, mas amantes da verdade e amantes do único a quem é permitido dizer: "Eu sou a Verdade".
Jesus não respondeu à pergunta de Pilatos com uma teoria, uma ideologia ou uma definição de verdade. Mas testemunhou a verdade que transcende todas as doutrinas e ideologias; revelou a verdade que acontece, que é viva e pessoal. Só Jesus pode dizer: "Eu sou a Verdade". E ao mesmo tempo diz: "Eu sou o caminho e a vida".
Uma verdade que não fosse viva e não fosse um caminho seria uma ideologia, uma mera teoria. A ortodoxia deve ser combinada com a ortopraxia – a ação correta.
E não devemos esquecer a terceira dimensão mais profunda do viver na verdade. Esta é a ortopatia, a correta paixão, o desejo, a experiência interior – a espiritualidade. É sobretudo através da espiritualidade – a experiência espiritual de cada crente e de toda a Igreja – que o Espírito gradualmente nos introduz na totalidade da verdade. Esses três elementos precisam um do outro. Embora a ortodoxia (ideias corretas) possa ser intelectualmente atraente, sem a ortopraxia (ações corretas) é ineficaz, e sem a ortopatia (sentimentos corretos) é fria, insensível e superficial.
A nova evangelização e a transformação sinodal da Igreja e do mundo constituem um processo no qual devemos aprender a adorar a Deus de uma maneira nova e mais profunda – em Espírito e em verdade.
Não precisamos temer que algumas formas de Igreja estejam morrendo: “se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto" (Jo 12,24).
Não devemos procurar os vivos entre os mortos. Em cada período da história da Igreja, devemos exercer a arte do discernimento espiritual, distinguindo os ramos vivos dos ramos secos e mortos na árvore da Igreja.
O triunfalismo, a adoração de um Deus morto, deve ser substituído por uma humilde eclesiologia kenótica. A vida da Igreja consiste em participar do paradoxo da Páscoa: o momento da doação de si e da autotranscendência, a transformação da morte em ressurreição e vida nova.
Com os olhos de fé, podemos ver não apenas o processo contínuo da criação (creatio continua). Na história e sobretudo na história da Igreja, podemos ver também os contínuos processos de encarnação (incarnatio continua), sofrimento (passio continua) e ressurreição (resurectio continua).
A experiência pascal da Igreja nascente inclui a surpresa de que a Ressurreição não é uma reanimação do passado, mas uma transformação radical. Considere-se que mesmo os olhos das pessoas mais próximas e caras não reconheceram o Jesus ressuscitado. Maria Madalena o conhecia pela voz, Tomé pelas feridas, os peregrinos de Emaús pelo partir do pão.
Ainda hoje, uma parte importante da existência cristã é a aventura de buscar o Cristo vivo, que vem a nós de muitas formas surpreendentes, às vezes anônimas. Ele entra pela porta fechada do medo – e nós o perdemos quando nos trancamos no medo. Vem a nós como uma voz que fala ao nosso coração – o perdemos se nos deixamos ensurdecer pelo ruído das ideologias e da publicidade comercial. Ele se mostra a nós nas feridas do nosso mundo – se ignorarmos essas feridas, não temos o direito de dizer com o apóstolo Tomé: “Meu Senhor e meu Deus”. Ele se mostra a nós como o desconhecido no caminho de Emaús – nós o perderemos se não estivermos dispostos a partir o pão com os outros, inclusive com os desconhecidos.
Como "signum", sinal sacramental, a Igreja é símbolo daquela "fraternidade universal" que é a meta escatológica da história da Igreja, da história da humanidade e de todo o processo da criação. Cremos e confessamos que ela é um signum efficiens – um instrumento eficaz desse processo de unificação. E para realizá-lo, é necessário conjugar contemplação e ação. Requer uma "paciência escatológica" com a santa inquietação do coração (inquietas cordis), que só pode ir parar nos braços de Deus no fim dos tempos. A oração, a adoração, a celebração da Eucaristia e o "amor político" são elementos mutuamente compatíveis do processo de divinização, a cristificação do mundo.
A diaconia política cria uma cultura de proximidade e solidariedade, de empatia e hospitalidade, de respeito mútuo. Constrói pontes entre pessoas de diferentes povos, culturas e religiões. Ao mesmo tempo, a diaconia política é também um serviço de culto, parte daquela metanoia em que a realidade humana e interpessoal é transformada, conferindo-lhe qualidade e profundidade divinas.
A Igreja participa da transformação do mundo sobretudo por meio da evangelização, que é sua principal missão. A fecundidade da evangelização reside na inculturação, na encarnação da fé numa cultura viva, no modo em que as pessoas pensam e vivem. A semente da Palavra deve ser plantada profundamente em terra boa. Evangelização sem inculturação é mera doutrinação superficial.
O cristianismo europeu foi considerado um exemplo paradigmático de inculturação: tornando-se a força dominante na civilização europeia. Aos poucos, porém, surgiram os percalços e as sombras desse tipo de evangelização. A partir do Iluminismo, assistimos na Europa a uma certa "exculturação" do cristianismo, uma secularização da cultura e da sociedade.
O processo de secularização não provocou o desaparecimento do cristianismo, como alguns esperavam, mas sua transformação. Alguns elementos da mensagem do Evangelho que haviam sido negligenciados pela Igreja durante sua associação com o poder político foram incorporados no humanismo secular. O Concílio Vaticano II procurou pôr fim às "guerras culturais" entre catolicismo e modernidade secular e integrar precisamente esses valores (por exemplo, a ênfase na liberdade de consciência) no ensinamento oficial da Igreja através do diálogo (Hans Urs von Balthasar falou em "saquear os egípcios").
A primeira frase da Constituição Gaudium et spes soa como uma promessa de casamento: a Igreja prometeu ao homem moderno amor, respeito e fidelidade, solidariedade e receptividade diante de suas alegrias e esperanças, de suas dores e angústias.
No entanto, essa cortesia não foi muito retribuída. Para o "homem moderno", a Igreja parecia uma esposa demasiado idosa e pouco atraente. Além disso, a benevolência da Igreja para com a cultura moderna chegava em um momento em que a modernidade estava prestes a terminar. A Revolução Cultural de 1968 foi talvez a culminação e o fim da época da modernidade. 1969, o ano em que o homem pisou na lua e a invenção do microprocessador, inaugurou a era da Internet, pode ser visto como o início simbólico de uma nova época pós-moderna. Essa época foi caracterizada em particular pelo paradoxo da globalização: por um lado, a interconexão quase universal, pelo outro, a pluralidade radical.
O lado obscuro da globalização está se mostrando hoje. Basta pensar na difusão global da violência, dos ataques terroristas nos Estados Unidos em 2001 até o terrorismo de estado do imperialismo russo e ao atual genocídio russo na Ucrânia; às pandemias de doenças infecciosas; à destruição do ambiente natural; e à destruição do clima moral através de populismo, fake news, nacionalismo, radicalismo político e fundamentalismo religioso.
Teilhard de Chardin foi um dos primeiros profetas da globalização, que ele definiu de "planetarização", refletindo seu lugar no contexto do desenvolvimento geral do cosmos. Teilhard argumentava que a fase culminante do processo de globalização não teria resultado de um automatismo de desenvolvimento e progresso, mas de uma virada consciente e livre da humanidade em direção a “uma única força que une sem destruir”. Ele via essa força no amor como entendido no Evangelho. O amor é a realização de si através da autotranscendência.
Acredito que esse momento decisivo está acontecendo justamente agora e que a virada do cristianismo para a sinodalidade, a transformação da Igreja em uma comunidade dinâmica de peregrinos, possa ter um impacto no destino de toda a família humana. A renovação sinodal pode e deve ser um convite, um encorajamento e uma inspiração para todos a caminhar juntos, crescer e amadurecer juntos.
O cristianismo europeu tem hoje a coragem e a energia espiritual para evitar a ameaça de um "choque de civilizações", convertendo o processo de globalização num processo de comunicação, partilha e enriquecimento mútuo, num "civitas ecumenica”, uma escola de amor e “fraternidade universal”?
Quando a pandemia de coronavírus esvaziou e fechou as igrejas, eu me perguntei se esse “bloqueio” não poderia ser um aviso profético. É esse o aspecto que a Europa poderá ter em breve se o nosso cristianismo não for revitalizado, se não compreendermos o que “o Espírito está dizendo às Igrejas” hoje.
Se a Igreja deve contribuir para a transformação do mundo, ela mesma deve ser permanentemente transformada: deve ser "ecclesia semper reformada". Para que a reforma, uma mudança de forma, por exemplo de algumas estruturas institucionais, dê bons frutos, deve ser precedida e acompanhada de uma revitalização do "sistema circulatório" do corpo da Igreja, isto é, da espiritualidade. Não é possível focar apenas nos órgãos individuais e negligenciar o cuidado do que os une e que infunde Espírito e vida neles.
Muitos “pescadores de homens” hoje têm sentimentos semelhantes aos dos pescadores galileus nas margens do lago de Genesaré quando encontraram Jesus pela primeira vez: “Nossas mãos e redes estão vazias, trabalhamos a noite toda e não pescamos nada.” Em muitos países da Europa, igrejas, mosteiros e seminários estão vazios ou semivazios.
Jesus nos diz a mesma coisa que disse aos pescadores exaustos: "Tentem de novo, vão para o fundo". Tentar de novo não significa repetir velhos erros. É preciso perseverança e coragem para sair do raso e ir para a profundeza.
“Por que vocês estão com medo, não têm fé?” – pergunta Jesus em todas as tempestades e crises.
A fé é uma jornada corajosa para as profundezas, uma jornada de transformação (metanoia) da Igreja e do mundo, uma viagem comum (syn hodos) da sinodalidade.
É uma viagem do medo paralisante (paranoia) para a metanoia e para a pronoia, para a previsão, prudência, discernimento, abertura ao futuro e receptividade aos desafios de Deus nos sinais dos tempos.
Que o nosso encontro em Praga seja um passo corajoso e abençoado neste longo e exigente caminho.
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Ideias e paixões para a Igreja na Europa. Artigo de Tomáš Halík - Instituto Humanitas Unisinos - IHU