"Fisicamente, podemos estar vivos, mas as nossas janelas e portas estão fechadas. E elas impedem que o ressuscitado entre na casa de nossa vida. Manter-se no caminho é fazer memória sempre de sua paixão, morte e ressurreição. Sem memória não seguimos adiante", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, ao comentar o evangelho da Festa de São Tomé.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019). Canal no You Tube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos.
O evangelho sobre o qual vamos refletir é hoje é Jo 20,24-29. Ele nos é proposto por estar relacionado com o dia dedicado à memória de São Tomé. O texto é bem conhecido. Jesus ressuscitado se apresenta diante dos apóstolos, os quais estavam com as portas fechadas e com medo. Tomé, que não estava presente na primeira aparição, agora estava. Jesus, logo, vai lhe pedir para colocar os dedos nas chagas, de modo que ele pudesse acreditar na sua ressurreição. Qual o significado desse gesto? Quem é Tomé? O que ele representa para a nossa fé? Por que Tomé acreditou que Lázaro estava morto?
Primeiro, uma palavrinha sobre Tomé. Esse apóstolo, um pescador da Galileia, aparece onze vezes nos evangelhos: Mt 10,3; Mc 3,18; Lc 6,15; Jo 11,16; 14,5; 20,24.26;27; 21,2 e At 1,13. Ele é o preferido por João como modelo de pessimista e incrédulo. Para João, se ele não acreditou na possibilidade da ressurreição de Lázaro, que já estava morto, como poderia acreditar na de Jesus? Essa tradição é compreensível no contexto da comunidade joanina dos anos 90 a 100 E.C., ansiosa na busca por testemunhas do ressuscitado.
Já na tradição posterior, a da religiosidade popular, presente na literatura apócrifa, em Evangelhos e Atos dos Apóstolos, encontramos muitos outros elementos da vida de São Tomé. Há um evangelho gnóstico, grupo de cristãos que acreditavam na salvação pelo conhecimento de Jesus, dedicado a Tomé. São 114 ditos de Jesus muito interessantes. [1]
Com mais detalhes, temos os Atos Apócrifos de Tomé. [2] Trata-se de uma narrativa da ação apostólica de Tomé, depois da ressurreição de Jesus, na Índia Meridional. Segundo essa tradição, Jesus ressuscitado apareceu-lhe e enviou-o em missão. Na Índia, Tomé cura enfermos, expulsa demônios, ressuscita mortos, distribui alimentos para os pobres, fala com demônios etc. O rei Mesdeu quis matá-lo com lanças de fogo, mas não logrou. Mais tarde, preso, ele foi torturado e morto. Após a sua morte, ele apareceu aos seus discípulos e ao rei que o condenara, os quais se converteram ao cristianismo.
Outra tradição sobre Tomé se encontra no Trânsito da Bem-Aventurada Virgem Maria de José de Arimateia. [3] Ele presencia a assunção de Maria e recebe dela o seu manto, que cai do céu. Para outra tradição, esse manto é a correia de Nossa Senhora.
Voltemos ao evangelho de Jo 20,24-29. O desejo de Tomé era ver, tocar, colocar os dedos nas chagas de Jesus. Seu desejo foi realizado por Jesus, de modo que, assim, ele deixou de ser incrédulo. Desse gesto decorre a sua profissão de fé: “Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20, 28). Uma coisa é certa: “Felizes os que crerão sem ter visto” (Jo 20, 29), afirmou Jesus.
E o texto continua dizendo que Jesus fez ainda outros sinais diante dos apóstolos. Interessante! Essa frase fecha o evangelho de João; o que vem depois, capítulo 21, é um acréscimo. Esse sinal faz uma inclusão literária, isto é, uma ligação direta com o primeiro sinal de Jesus nas bodas de Caná (Jo 2,1-11), a pedido de sua mãe, a primeira apóstola que manifestou publicamente a fé no seu Filho, conforme João.
Maria e Tomé somos todos nós! Quantas vezes, em nossas vidas, cremos como Maria. Infelizmente, somos mais Tomé, quando nos mergulhamos no vazio da existência, da falta de fé. Tudo parece sem rumo. Não acreditamos no testemunho dos irmãos de fé, perdemos a paz. Sem fé não existe paz, a harmonia interior. Como vale uma palavra de fé no momento da morte de um ente querido! Que o diga esse tempo de pandemia.
Fisicamente, podemos estar vivos, mas as nossas janelas e portas estão fechadas. E elas impedem que o ressuscitado entre na casa de nossa vida. Manter-se no caminho é fazer memória sempre de sua paixão, morte e ressurreição. Sem memória não seguimos adiante. A memória de nossos queridos e queridas que partiram para a vida eterna nos deixa ligados ao seu coração, seu corpo físico que não mais está no meio de nós. Isso é ser o Tomé renovado, da fé.
Caso contrário, nos tornamos sem sentimentos, sem fé e sem dignidade ou até mesmo um pobre “Lázaro” brasileiro, perseguido e morto, por uma sociedade doentia, uma boa parte dela insensível à dor de milhões que têm os seus na lista dos mais de 500 mil mortos, grande parte deles por irresponsabilidade dos governos. Especialistas afirmam que 396 mil delas poderiam ter sido evitadas.
Uma sociedade que acredita em armas visando um ‘cancelamento’ em massa, que com que o ser humano, feito bandido por ela ou por desvio de personalidade, deva ser morto, punido porque perdemos o modo compassivo de ser brasileiro, e por isso faz festa com uma morte de um ‘doente’ para desviar a atenção de tantas outras. Policiais que entregam a presa morta, depois de uma longa caçada com mais de duas centenas de soldados armados, como um troféu, como nos velhos tempos de Lampião ou de filmes de terror hollywoodiano. Como foi deprimente ver aquela cena! Um filme da sociedade brasileira. Lamentável. Morremos todos com o Lázaro.
Com Tomé, recuperemos o afeto, que vem do toque em mãos ressuscitadas, e a fé desacreditada diante de tantas barbáries, de modo que novos tempos ressurjam como sinais da presença de Deus no meio de nós! ‘Meu Senhor e meu Deus’ tenha dó de nós? Alivie a nossa pena! Fortaleça a nossa fé! Ajude-nos a abrir nossas portas na construção de um novo ser humano.
[1] FARIA, Jacir de Freitas. As origens apócrifas do Cristianismo: comentários ao evangelho de Maria Madalena e Tomé. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 2003.
[2] FARIA, Jacir de Freitas. Vida Secreta dos apóstolos e apóstolas à luz dos Atos Apócrifos. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2006.
[3] FARIA, Jacir de Freitas. O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte, Petrópolis: Vozes, 2019, p. 67.