01 Julho 2021
"Os comportamentos sociais imediatamente percebidos à captura e morte de Lázaro evidenciam este ciclo de medo social e agressividade como resultado inclusive político, na medida em que pareceu se alinhar a uma retórica e ideias que vêm dominando a sociedade sobre os limites da autoridade política, o autoritarismo e o papel punitivo que cada cidadão é capaz de desempenhar nas suas relações sociais. Se o medo gera agressividade, esta leva a uma plácida internalização do autoritarismo como prática quando temos, na nossa frente, sujeitos definidos com características como as de Lázaro", diz Carlos A. Gadea, professor e pesquisador da Escola de Humanidades da UNISINOS. Bolsista de Produtividade 1C do CNPq.
No entanto, conclui o sociólogo, "o perigo reside aí: quando na construção social do medo, Lázaro pode chegar a ser qualquer um de nós".
Após vinte dias de desenfreada busca pela polícia do Estado de Goiás e do DF pela mata e pequenas localidades próximas a Brasília, finalmente localizam e matam a Lázaro, o midiático serial killer de Brasília (ou de Ceilândia), especificamente em Águas Lindas de Goiás, abatido logo após de 125 disparos realizados pela polícia, segundo os seus próprios relatos. Lázaro era acusado de matar a tiros e facadas a três pessoas na pequena cidade de Ceilândia, no dia 9 de junho. Também teria sido o responsável pelo sequestro e crime da esposa de uma das suas anteriores vítimas. Lázaro já possuía vários antecedentes por diferentes delitos, desde seus vinte anos de idade. Buscado pela polícia durante o mês de junho se converteu em uma figura midiática à altura dos que conservam os mais destacados sinais de desequilibro emocional, psíquico e desajustes sociais diversos. Lázaro, o serial killer, tal qual foi adjetivado pela imprensa, é morto após ter assassinado quatro pessoas, e de imediato a tela da TV passa a transmitir os festejos dos policias que o capturaram, os discursos das autoridades públicas que “tranquilizavam” à população e uma algaravia inusitada em meio a um cenário seco e terroso do centro-oeste do país. Com Lázaro abatido, a população poderia voltar “à normalidade”, sem o medo da sua indesejada próxima e possível presença.
Proponho que agora esqueçamos o Lázaro que despojou a vida de quatro pessoas, perambulou pelo árido serrado e se enfrentou à polícia o passado dia 28 de junho. Existe um Lázaro, o serial killer, que durante vinte dias a cobertura jornalística foi elaborando em paralelo a processos comunicacionais que contribuíram a que muitas pessoas sentissem medo da sua possível presença próxima. Pelas redes sociais e de WhatsApp, imagens fortes do momento da sua morte eram divulgadas acompanhadas com piadas de mau gosto e, fundamentalmente, com uma carga de afetada agressividade para com o destino “merecido” do serial killer. Fora o seu merecimento ou não, o que está em questão é se perguntar: como é que se produz esse sentimento (ou ressentimento) social ou coletivo que se canaliza com a agressividade (discursiva, de imagens)? Ele está sustentado no medo internalizado através de informações dadas acerca do eventual risco de Lázaro para a vida das pessoas? Que tanto provável poderia ser a presença de Lázaro na frente de muitos dos que sentiram medo quando nos jornais se falava no seu nome? Não existe uma única variável na construção social do medo; mas a influência dos meios de comunicação é inegável, algo já longamente estudados pelas humanidades e as ciências da comunicação. Vinte dias repetindo a cada instante notícias sobre Lázaro manteve ao público em torno a uma realidade em nada que invejar ao filme “O Show de Truman”. As leituras dos trabalhos de Z. Bauman durante os anos de 1990 sobre o medo e a insegurança nas cidades davam sinais importantes de como as coisas estavam se produzindo e como eventuais Lázaros poderiam emergir em qualquer momento.
A construção do medo tem dois componentes essenciais, e que se retroalimentam. Em primeiro lugar, encontra-se um mecanismo de magnificação quantitativa da notícia, do informado, ou seja, um procedimento cujo objetivo é que as pessoas passem a crer que existe probabilidade de que se enfrentam a um risco “real”. Nessa linha funcionam as estatísticas, os cálculos, os números, as tabelas que, para um público leigo e ávido por informação, pouco significado tem, a não ser a de justificar (falsamente) a narrativa que a edição jornalística quis oferecer nesse momento. Qual é a probabilidade, do ponto de vista estatístico, que determinado evento aconteça com alguém? Mediante este mecanismo, as pessoas passam a acreditar num perigo ou risco que não seria tal, mas que magnificado tende a assumir-se como válido, provável, verossímil. O segundo mecanismo é o de dramatização qualitativa. Nas coberturas midiáticas no caso de Lázaro, jornalistas apareciam falando com um cenário de mata de fundo, e diziam que algum morador pareceu ter visto o fugitivo correndo em direção à esquerda (imagine o telespectador olhando para esse lado da TV) e que logo viu que teria subido a um carro.
Em outro dia, helicópteros sobrevoam a região enquanto jornalistas entrevistam a uma senhora idosa que, temerosa, confessa que saiu da sua casa e foi dormir na casa da sua filha, na outra cidade, porque ali, na pequena chácara, estava perigoso. Em que momento começa e termina o que de fato corresponde ao mundo do possível e ao mundo das elucubrações e das consequentes ações que derivam do medo internalizado é de difícil distinção. O que parece importar é que a figura de Lázaro passou a estar constituída por camadas de novas impressões dadas por estas diversas abordagens e narrativas midiáticas, e que cada um de nós observamos como constitutivas ao objeto em questão: o serial killer de Brasília.
Combinados estes dois mecanismos, de magnificação e de dramatização, o que resulta é uma sociedade que passa a adotar o medo como variável constitutiva primordial nos relacionamentos com os objetos ou situação concretas que se encontra, e com as outras pessoas. O Lázaro capturado seria esse que estavam buscando desde os seus primeiros crimes? Não existiu nenhum elemento intermediário entre o objeto (Lázaro), o crime e nós em toda esta história? E que papel desempenhou esta “intermediação”, este jogo midiático-televisivo? Aparentemente, toda a parafernália em torno da sua busca era justificada pela sua perigosidade, pelo risco que representava. Mas, em que condições se deu a definição de serial killer (com quatro assassinatos)? Existia, de fato, possibilidade de que pudesse ser uma ameaça tal qual vimos construída a cada dia, repetidamente, nos meios de comunicação?
Perguntas que não temos como resolvê-las. No entanto, podemos, sim, compreender que algo aconteceu com a sociedade a partir da sua captura. Se Lázaro era um serial killer, não foi pelos crimes cometidos; foi porque acreditamos na sua capacidade de converter-se em um risco social próximo, imediato, provável, ao ponto de justificarmos a dispendiosa perseguição e alegrar-nos massivamente pelo seu destino final. Mas, o que foi que aconteceu?
Estamos imersos no tipo de mobilização que gera o medo coletivo, a construção social do medo. Por um lado, o medo coletivo gera o isolamento social, que por sua vez, fabrica mais medo. O efeito de se isolar é uma estratégia que responde ao medo, gerando mais medo como resultante da sua própria condição. Aquele que tem medo isola sua presença social como medida de proteção perante algum tipo de risco ou perigo que avalia provável de acometer sua existência. Mas para sua própria sustentação, deve nutrir sua condição com novas doses de pequenos medos acessórios que contemplem a justificativa de ter construído sua muralha social de isolamento.
Por isso, um dos primeiros efeitos da construção social do medo é o isolamento social. O medo ao contato, o outro como inimigo, podem ser metáforas válidas. Ignorando este tipo de situações, por vezes, realizam-se pesquisas de opinião que de início parecem viciadas quanto aos resultados. Por exemplo, se alguém quer saber o comportamento das pessoas perante a eventual insegurança pública e se usa como mecanismo de consulta o telefone fixo, ligando para as residências dos entrevistados, certamente se obterá um resultado em que estes dirão que existe muita insegurança na cidade, altos graus de delitos e criminalidade, dentre outros diagnósticos, porque aqueles que justamente não saem para a rua, que preferem o isolamento social e ficar nos seus lares, são os que têm internalizado mais cabalmente o medo coletivo que, supostamente, geraria violência urbana. Não se trata se o perigo é real ou não, mas sim de como as pessoas processam, meios de comunicação intermediando (desculpa a redundância), aquelas informações que lhe chegam para logo tomar as suas decisões.
Outro efeito da construção social do medo é a agressividade, percebida no caso de Lázaro com muita clareza. Neste caso, o medo possibilita, por exemplo, a capacidade de exigir do poder constituído medidas mais duras no combate à criminalidade, medidas mais duras para combater aquilo que tenho medo, um medo que me constitui em um cidadão com o poder de decidir, inclusive, sobre vidas alheias. Os comportamentos sociais imediatamente percebidos à captura e morte de Lázaro evidenciam este ciclo de medo social e agressividade como resultado inclusive político, na medida em que pareceu se alinhar a uma retórica e ideias que vêm dominando a sociedade sobre os limites da autoridade política, o autoritarismo e o papel punitivo que cada cidadão é capaz de desempenhar nas suas relações sociais. Se o medo gera agressividade, esta leva a uma plácida internalização do autoritarismo como prática quando temos, na nossa frente, sujeitos definidos com características como as de Lázaro. No entanto, o perigo reside aí: quando na construção social do medo, Lázaro pode chegar a ser qualquer um de nós.
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A construção social do medo e Lázaro, o serial killer de Brasília (e as pandemias, por analogia) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU