Deus olha para os pobres, oprimidos por sua miséria, e para os ricos, prisioneiros das suas riquezas. Enquanto o pobre tem um nome, o rico é anônimo; o que já anuncia a inversão final das situações.
A reflexão é de
Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio
Croire, comentando as leituras do
26º Domingo do Tempo Comum, do Ciclo C. A tradução é de
Francisco O. Lara,
João Bosco Lara e
José J. Lara.
Eis o texto.
Referências bíblicas
1ª leitura: “O bando dos gozadores será desfeito” (Amós 6,1.4-7)
Salmo: 145(146) - R/ Bendize, minha alma, e louva ao Senhor!
2ª leitura: “Guarda o teu mandato íntegro e sem mancha até à Manifestação do Senhor” (1 Timóteo 6,11-16)
Evangelho : “Tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, os males. Agora, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado” (Lucas 16,19-31)
Um pobre chamado Lázaro
Notemos que o pobre que está à porta do rico tem um nome: é «um pobre chamado Lázaro». Ou seja, é uma pessoa humana e não um personagem abstrato. O rico, aqui, por sua vez, é anônimo: representa, sobretudo, uma categoria social.
Isto inverte as perspectivas habituais: estamos num mundo em que os que são bem sucedidos «carregam um nome», um nome que chega até a denominar propriedades, imóveis, ruas. Já os outros são «a mão-de-obra», os sem teto, os sem terra, os assalariados, etc.
Na parábola, o pobre chamado Lázaro está ainda mais abaixo: renunciou até mesmo a pedir esmola. Os únicos que dele se ocupam são os cães, estes sim que provavelmente devem comer as sobras que caem da mesa do rico.
As nossas sociedades, organizadas com certeza por pessoas bem instaladas, fizeram progressos quanto ao que é descrito na parábola, que trata de uma situação particular ainda muito presente entre nós, aliás, no momento atual. Não vamos insistir em situá-la no abstrato, fora de alguns dos nossos comportamentos.
Superemos as imagens fortes usadas pelo evangelho, para descobrirmos a substância delas em nossas próprias vidas. Notemos também que Jesus fala primeiro do rico: a ele, afinal, é que a parábola se refere.
Junto a Abraão, é o único a tomar a palavra e a receber uma resposta; ocupa todo o espaço, depois dos quatro primeiros versículos. Será que para criticá-lo? Antes disso, para vir em auxílio de todos os que ele representa.
Jesus deixa-se tomar de piedade por todos os que negligenciam apiedarem-se dos Lázaros. Vem em sua ajuda para fazê-los mudarem de atitude. O amor que demonstram para com o pobre é que, por sua vez, lhes permitirá serem amados. Este é o «seio de Abraão».
"É a sua vez de sofrer"
Uma parábola, em seu detalhe, não comporta uma leitura literal. A resposta de Abraão para o rico, atormentado agora pelo sofrimento, poderia nos fazer acreditar ser o sofrimento necessário para o que chamamos de salvação: Lázaro sofreu na terra, agora é a vez de o rico também passar por isso.
O comportamento de Cristo nos convida a corrigir esta maneira de ver: por toda parte onde passava, ele curava os doentes. Não é destituído de significado que, entre nós, ele tenha assumido a figura de um terapeuta.
Deus é inimigo de tudo o que faz mal para os homens, e que vem, sim, da nossa imprevidência, da nossa imprudência ou, pior, da nossa perversidade. Este mal, Deus acabou por esposá-lo, indo até a morrer, para nos libertar dele.
Nesta parábola, o que torna o rico culpado não é não ter sofrido, mas não ter ido em socorro de Lázaro, por causa de seu sofrimento. Colocou-se por isto fora do amor, a única coisa que poderia salvá-lo.
Ele, agora, é quem pede a ajuda de Lázaro; uma gota de água para lhe refrescar a língua. Não era grande coisa, mas, daí em diante, tornou-se impossível atravessar a distância, o «grande abismo» que ele mesmo criara.
Terrível poder este, da liberdade humana. Deus não é, portanto, responsável pelos nossos sofrimentos. Desde sempre, foi-nos confiada a gestão da natureza e das nossas sociedades.
Criando o homem, Deus perdeu a sua «onipotência». E recupera-a, no entanto, fazendo do pior que possamos cometer, recapitulado na crucifixão do justo, a fonte do melhor.
Uma parábola não diz tudo: outros textos nos dirão que relegar o rico à fornalha é o que deveria normalmente acontecer. Mas Deus nos faz ir mais além.
Crer no inacreditável
A partir do versículo 27, o texto bifurca-se, indo dar na questão da fé. E aí, provavelmente, está o foco preciso desta parábola. No fundo, se o rico não se ocupou de Lázaro, se se evadiu na embriaguez de banquetes suntuosos, é porque não tinha fé.
Para ele, Moisés e os profetas eram letra morta, por isso distraia-se no fausto. Mesmo se de fato não chegamos até aí, devemos nos interrogar a respeito do sentido das nossas múltiplas «distrações».
Às vezes, elas podem se tornar álibis para nos fazerem escapar do que é essencial. São, então, sinais do vazio desabitado do nosso espírito. O rico, então, pede que Lázaro retome a sua vida neste mundo dos nossos sentidos, para revelar aos seus irmãos a vaidade da sua maneira de viver.
Em outras palavras, acederão à fé, se virem um morto voltar à vida. Temos aí, pois, uma vez mais, a dupla ‘ver-crer’, tão frequente no evangelho de João. Paulo dirá que a fé vem pela audição, não pela vista (Romanos 10,17).
Com efeito, escutar a palavra que vem de outro significa de qualquer forma deixar-se penetrar, enquanto ver fica só no exterior. A troca de palavras está na raiz de toda relação. É insubstituível. Nem mesmo ver um homem ressuscitado pode tomar-lhe o lugar.
Cristo irá ressuscitar, mas esta ressurreição só poderá fazer nascer a fé por adesão à palavra de algumas testemunhas. Acrescentar fé ao testemunho pode constituir uma dificuldade suplementar.
Crer o inacreditável é este o desafio que nos é proposto. Esta fé não é outra senão a certeza da presença e da ação de um Amor infinito em nós e no mundo.
Era este amor que o rico deveria deixar agir em si mesmo, em seu comportamento para com Lázaro.
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