03 Fevereiro 2023
Começou antes do Capitólio e não terminará em Brasília. Uma onda antissistema, guiada por ideias e valores fascistas, percorre o Ocidente. Qual sua origem? Como usa as redes sociais e a inteligência artificial? De que forma vencê-la?
O artigo é de Ignacio Ramonet, jornalista, publicado por Télam e reproduzido por Outras Palavras, 02-02-2023. A tradução é de Rôney Rodrigues.
Lula disse em 8 de janeiro, quando as turbas extremistas dos bolsonaristas revoltados ainda ocupavam e destruíam as sedes dos Três Poderes em Brasília, que “a esquerda nunca invadiu as cadeiras do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e da Presidência da República”, nem mesmo quando ele próprio perdeu, em circunstâncias questionáveis, várias eleições presidenciais (1989, 1994, 1998), ou quando foi preso sob falsos pretextos para impedi-lo de concorrer às eleições de 2018.
Com esta declaração, o novo presidente do Brasil e líder máximo do Partido dos Trabalhadores sublinhou o caráter disciplinado e democrático das massas esquerdistas e, sobretudo, o sentido de responsabilidade das lideranças de esquerda que, em regimes democráticos, nunca chamaram a legião de seus partidários para tomar de assalto o poder.
Na história da esquerda mundial, nem sempre foi assim. Basta recordar dois assaltos fundadores perpetrados pelas massas populares revoltadas durante as duas principais revoluções da história: a tomada da Bastilha (1789) na revolução francesa, e a do Palácio de Inverno (1917) na revolução russa.
Claro, em ambos os casos, tratava-se de insurreições populares contra poderes autocráticos: a do rei Luís XVI na França e a do czar Nicolau II na Rússia. Não contra os regimes democráticos. Portanto, Lula está certo.
Mas outra observação que poderia ser feita é que nunca, também, massas de sediciosos de ultradireita haviam se lançado a um ataque insurrecional ao poder. Até agora, a extrema direita tomava o poder por meio de golpes de Estado executados diretamente pelas Forças Armadas ou por um partido extremista de tipo paramilitar (como os fascistas de Benito Mussolini na Itália em 1922 ou os nacional-socialistas de Adolf Hitler na Alemanha em 1933) apoiado pelas Forças Armadas.
A novidade — como aconteceu em particular em 6 de janeiro de 2021 em Washington com a invasão do Capitólio, e em 8 de janeiro de 2023 em Brasília com a invasão à sede dos Três Poderes — é que agora a nova extrema direita é capaz de organizar insurreições populares como instrumento de golpe para a conquista do poder. Ou seja, é como se, de repente, a rebeldia tivesse feito um giro para a direita … O que teria acontecido para que algo semelhante fosse possível? Isso é o que tentei explicar em meu recente livro A era da conspiração. Uma era em que as redes sociais exercem uma influência mental e psicológica como nunca antes a imprensa, o rádio, o cinema ou a televisão tiveram. No novo universo dos memes e da pós-verdade, é cada vez mais difícil distinguir o verdadeiro do falso, a realidade da ficção, o autêntico do manipulado, o certo do provável, o cômico do sério, o objetivo do subjetivo, o bom do ruim, o verdadeiro do duvidoso… Esse flagelo das falsidades online favorece a disseminação de teorias da conspiração delirantes. E corrói aos trancos e barrancos os alicerces da democracia.
O que está acontecendo se assemelha, em certa medida, ao que Sigmund Freud chamou, em 1930, de mal-estar na cultura. Ao final, o assalto dos trumpistas ao Capitólio em Washington e o ataque dos bolsonaristas à sede dos Três Poderes em Brasília constituem os exemplos mais eloquentes e significativos do atual mal-estar de nossa civilização baseada, em princípio, em valores democráticos, mas também nas tecnociências, na razão e no progresso… que também estão em crise.
O atual desconcerto do capitalismo neoliberal somado à balburdia causada pela aceleração desenfreada das tecnologias de comunicação estão abrindo um período sem precedentes de instabilidade social, de extrema polarização e de grande confusão política. A desconfiança no sistema dominante continua a se espalhar. Nos Estados Unidos, pesquisas sociológicas recentes revelam que mais de 25% dos cidadãos estão dispostos a renunciar à democracia em favor de um líder dominador que “faz o que precisa ser feito”… Estima-se que pelo menos 50% dos eleitores republicanos aceitaria um regime autoritário, não democrático… E no Brasil, apenas 20% dos cidadãos acreditam que a democracia pode resolver os problemas do país…
Muita gente, mesmo da direita (o que é novidade), está buscando alternativas antissistema. E todos esses processos foram intensificados nos últimos dois anos pela pandemia de covid. O atentado ao Capitólio em Washington e o assalto aos Três Poderes de Brasília estão inscritos neste clima de época marcado por extrema polarização, intolerância social, discurso de ódio, obsessões conspiratórias e violência discursiva.
Como escreve o cientista político argentino José Natanson: “Muitas coisas têm que acontecer para que algo assim aconteça.” Embora a relação entre um clima social e um episódio criminal nunca seja automática ou linear. Porque não existe um determinismo sociológico absoluto, e porque o contexto socioeconômico nunca determina totalmente algo. Mas não há dúvida de que cria a atmosfera e o ambiente que permitem explicar e dar sentido às ações dos agentes sociais. Nesse caso, os delírios paranoicos verbais de Trump e Bolsonaro, suas mentiras constantes, suas loucuras conspiratórias aceleraram um fenômeno político muito contemporâneo: a polarização social extrema, o aumento da intolerância, o aumento do confronto violento e a invocação do ódio como discurso dominante. É por isso que as massas populares agora são seduzidas pelo discurso racista de extrema direita que destrói sua consciência de classe. A contraposição entre identidade étnica e classe social é interessante e absurda. Mas, em meio a tanta confusão, ela produz efeitos e esses efeitos, por sua vez, produzem algo novo: massas protestantes de ultradireita. Que arrebatam a rua e a epopeia da insurreição da própria esquerda.
É por isso que consideramos que o assalto ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 em Washington constitui um divisor de águas, um marco, uma linha divisória na história da democracia. Há agora um antes e um depois dessa data no estudo das patologias contemporâneas do sistema democrático. Embora também seja verdade que este assalto não foi o primeiro dos recentes ataques contra edifícios-símbolo nas grandes democracias ocidentais, sendo a de Brasília a mais recente.
A série de agressões talvez tenha começado em Paris (França) em 1º de dezembro de 2018, durante o terceiro dia de uma onda de protestos sociais contra o aumento do preço dos combustíveis. Naquela ocasião, no coração da capital francesa, várias centenas de “coletes amarelos”, um grupo social muito heterogêneo que mescla trabalhadores indignados, sindicalistas furiosos, elementos da ultradireita, conspiradores profissionais e infiltrados provocadores. Naquele dia, os manifestantes antissistema tentaram inicialmente atacar o Palácio Eliseo, sede da Presidência da República. Mas foram repelidos com canhões de água e gás lacrimogêneo pela tropa de choque das Companhias de Segurança Republicanas (CRS). Enquanto isso, outros “coletes amarelos” mais radicais — alguns encapuzados — lançaram-se ao ataque a outro dos edifícios-símbolos mais sagrados do Estado francês: o Arco do Triunfo, construído por Napoleão e localizado no alto da Champs-Élysées, sob a urna onde está o túmulo do Soldado Desconhecido. Enquanto avançavam em meio a escaramuças em direção a esse monumento, os manifestantes quebraram várias vitrines e incendiaram dezenas de veículos. Numa atmosfera enfumaçada de caos, gritaria e desordem, os “coletes” chegaram a incendiar algumas das mansões que margeiam a praça de l’Etoile… Derrubaram as barreiras de proteção… Enfrentaram as forças da ordem. Em meio a uma feroz batalha campal, eles recuaram enquanto os insurgentes conseguiram invadir a praça, invadir e ocupar o Arco do Triunfo… Saquearam parte do monumento… Destruíram uma venerada estátua de Marianne, uma das alegorias da República Francesa… Agitando bandeiras de vitória, os grupos antissistema alcançaram o terraço de onde se pode dominar toda Paris. Finalmente, eles cobriram o monumento sagrado com dezenas de pichações vingativas: “Macron, renuncie!”, “Os coletes amarelos triunfarão!”
Essas imagens circularam pelo mundo. Um estupefação universal. Por alguns momentos, uma das grandes democracias do mundo deu a impressão de cambalear. De estar à mercê de um grupo de numeroso e resoluto de insurgentes violentos…
Dois anos depois, um novo ataque ocorreu contra outro edifício altamente simbólico. Aconteceu no sábado, 29 de agosto de 2020, em Berlim (Alemanha), em meio pandemia. Naquele dia, cerca de 40 mil manifestantes, representantes de um heterogêneo amalgama de coletivos antivacina, incluindo libertários, extremistas de direita e uma multidão de teóricos da conspiração, geraram caos no centro histórico da capital alemã entoando slogans contra as restrições impostas, devido ao coronavírus, pelo governo federal.
Depois que a polícia dispersou a manifestação, várias centenas de membros de diversas organizações de extrema direita lançaram um ataque a um dos edifícios mais emblemáticos e carregado de história de Berlim, o Reichstag, sede do Bundestag, o Parlamento Federal alemão. Com crueldade e fúria, os extremistas violentos romperam as barreiras de segurança erguidas em torno do Parlamento e invadiram os degraus que levam ao famoso prédio. Aglomeraram-se violentamente diante das portas, embora não conseguissem penetrá-las. Entre os assaltantes extremistas estavam neonazistas e membros de organizações nacionalistas, movimentos identitários e o Reichsbürger (os “Cidadãos do Reich”, os quais não reconhecem as fronteiras alemãs, nem a atual ordem constitucional federal), portadores de bandeiras com o negro, o branco e o vermelho do antigo império alemão (1871-1918) dissolvido em 1919 após a Primeira Guerra Mundial.
A intenção de invadir a sede parlamentar havia sido anunciada nas redes sociais dias antes da manifestação. Por sua enorme carga simbólica, as imagens desse atentado ganharam manchetes internacionais e impactaram a opinião pública democrática mundial. Isso aconteceu apenas cinco meses antes da invasão do Capitólio de Washington. Certamente serviu de modelo para apoiadores de Donald Trump e de grupos supremacistas brancos e neonazistas estadunidenses.
Por sua vez, depois de 6 de janeiro de 2021, os acontecimentos no Capitólio inspiraram novos ataques – perpetrados pelo mesmo tipo de assaltantes extremistas antissistema motivados por teorias da conspiração, em circunstâncias muito semelhantes – a outros edifícios simbólicos em diferentes países. Podemos citar pelo menos outros dois casos além do recente de Brasília, também diretamente inspirados, até hoje, pelo assalto ao Capitólio.
Primeiro, aquele ocorrido em 9 de outubro de 2021 — ou seja, nove meses após o ataque em Washington –, quando militantes ultradireita neofascista aproveitaram uma manifestação massiva em Roma (Itália), convocados para protestar contra a obrigatoriedade do certificado de vacinação anticovid, para tentar atacar primeiro o Palácio Chigi (sede do governo italiano e residência do Presidente do Conselho de Ministros), e depois atacar violentamente a histórica sede nacional da Confederação Geral Italiana do Trabalho (CGIL, na sigla em italiano), o principal sindicato do país.
Houve bombas de gás lacrimogêneo e disparos das tropas de choque. Os manifestantes responderam atacando a polícia e as forças de segurança, atirando-lhes pedras, garrafas, tochas… Centenas de ativistas, principalmente dos grupos neofascistas mais violentos, instigados por militantes do partido Forza Nuova, conseguiram entrar no prédio do sindicato e saquearam e destruíram — como foi feito depois em Brasília –, os arquivos e os escritórios. Em uma combinação de reivindicações delirantes, teorias conspiratórias e apelos ao caos, os neofascistas italianos recorreram às redes sociais para tentar – apoiando-se em fake news e distorções da realidade — manipular a raiva e a insatisfação da população. Por meio de mensagens do Telegram, eles convocaram a mobilização e o ataque, referindo-se diretamente aos eventos realizados, nos Estados Unidos, pelo séquito de Donald Trump. Por sua vez, os organizadores dessa agressão admitiram que suas estratégias foram diretamente inspiradas no assalto ao Capitólio.
O segundo ataque ocorreu alguns meses depois, em 29 de janeiro de 2022, em Ottawa (Canadá), quando cerca de quinhentos caminhoneiros, revoltados com uma nova regra que exigia que os motoristas fossem vacinados contra a covid para cruzar a fronteira entre o Estados Unidos e Canadá, ocuparam o núcleo central daquela cidade e bloquearam o prédio de Parliament Hill, sede do Parlamento canadense. Logo, esse “Comboio da Liberdade” (Freedom Convoy) foi acompanhado por milhares de outros manifestantes, a maioria brancos de extrema direita com bandeiras nazistas e confederadas, faixas pró-Donald Trump (!) e uma infinidade de logotipos de QAnon, que se declararam a favor do nacionalismo branco com um discurso decididamente antigovernamental, conspiratório, supremacista, sexista, xenófobo, racista e antissocialista… E também se referiam diretamente ao assalto ao Capitólio.
Segundo as autoridades, muitos dos manifestantes cometeram crimes de ódio, racismo e danos materiais. Durante o primeiro fim de semana, vários desordeiros chegaram a profanar — como na França — o Túmulo do Soldado Desconhecido… Líderes políticos estadunidenses como o próprio Donald Trump, o senador Ted Cruz e a representante republicana pelo estado da Georgia, Marjorie Taylor Greene, entre outros, os apoiaram publicamente. Diferentes grupos antissistema também apoiaram o bloqueio de Parliament Hill, em particular a organização conspiratória Action4Canada, que sustentou que a pandemia “foi obra, pelo menos em parte, de Bill Gates e da ‘Nova Ordem Mundial (Econômica)’ para facilitar a injeção de microchips, habilitados para 5G, na população”.
Embora muito diferentes entre si, esses ataques a prédios-símbolos respondem, como vimos, a um modus operandi semelhante que se confirmou no dia 8 de janeiro em Brasília com o ataque das hordas bolsonaristas à sede dos Três Poderes (embora, neste caso, a provável intenção dos bolsonaristas era provocar a intervenção das Forças Armadas e transformar seu protesto insurrecional em um golpe de Estado tradicional).
Hoje, não só nos Estados Unidos ou no Brasil, o ódio circula subterraneamente em nossas sociedades. Ele flui em todos os lugares. Rega a paisagem política. Não é exclusividade de um partido ou de um líder. O problema se agrava, como muito bem observa José Natanson, quando um líder, um partido ou um comunicador – ou seja, alguém com poder na discussão pública – mobiliza esse ódio contra um grupo social, uma ideologia ou uma pessoa específica. Essa é a dimensão neofascista do momento atual. Porque a ultradireita voltou a fazer do ódio a sua principal ferramenta de construção política.
O estudo desses atentados contra o coração da democracia nos Estados Unidos, França, Alemanha, Itália, Canadá e Brasil — e as circunstâncias que os originaram — permite explorar, com prudência, o principal triângulo da inquietação contemporânea: a crise da verdade, a crise da informação, a crise da democracia. Essas três crises existenciais, articuladas entre si, atingem hoje, de uma forma ou de outra, quase todas as nações (12).
De certa forma o (mau) exemplo vem dos Estados Unidos. E se há algo que não possui quase nenhuma exceção no último século, é a capacidade do modelo estadunidense — em termos de cultura popular, moda, consumo, comunicação e marketing político — de ser imitado e replicado em todos os lugares… Ainda mais, obviamente, na era da internet, da web e das redes sociais, um ecossistema cultural e de comunicação fundamentalmente criado e desenvolvido nos Estados Unidos, e que se saiu do controle…
É por isso que é tão urgente frear a disseminação de conteúdo conspiranoicos mentiroso e daninhos nas redes. Temos uma escolha a fazer agora: vamos deixar nossas democracias murcharem? Ou podemos melhorá-las? Porque isso só vai piorar. O problema se tornará muito mais complexo à medida que a Inteligência Artificial (IA) progredir e se tornar cada vez mais sofisticada. Consequência: será cada vez mais difícil detectar e denunciar teorias da conspiração, manipulações e desinformação. Isso fará com que se repitam os ataques enraivecidos das massas conspiradoras de ultradireita, cada vez mais fanáticas, contra as sedes dos poderes democráticos… Até quando?
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Terá a rebeldia virado à direita? Artigo de Ignacio Ramonet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU