27 Janeiro 2023
"Raspando sob a superfície de uma nação que o clichê quer sempre e inteiramente alegre, despreocupada, dançante, na realidade se descobre como em seu ventre se agitam os demônios da discriminação racial e da exploração. Quanto mais os fiscais do trabalho arranham, mais aflora a escravidão do século XXI. Mesmo em casas particulares", escreve Fabio Tonacci, jornalista, em artigo publicado por La Repubblica, 24-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
No mundo de Maria não havia direitos, havia apenas deveres. Você tem que cuidar de Dona Yonne, tem que dar banho nela, tem que limpar os quartos, tem que preparar comida para todo mundo, tem que cuidar dos bichos, agora você tem que cuidar da filha de dona Yonne também, você tem que pedir licença para ir ao banheiro.
Você tem que esquecer que o telefone existe. Você deve ficar calada. Por 72 anos, Maria dormiu em um pequeno sofá gasto aos pés da cama de dona Yonne, no meio das fezes do cachorro. Uma longa série de imperativos marcaram o biorritmo de sua vida como escrava inconsciente. Três gerações de brancos da família Mattos Maias do Rio de Janeiro passaram a negra Maria uns para os outros como um objeto desprovido de sentimento, um velho relógio cuja única razão de ser é funcionar o dia inteiro.
Trabalhar sem nunca receber um centavo. Servir, sem nunca levantar a cabeça.
Além do que, mesmo que Maria em todos esses anos tivesse espichado o olhar para fora da janela da casa patronal onde havia sido levada com um engano aos 13 anos, não saberia o que olhar.
Mantida em um estado de absoluta ignorância. Disseram-lhe que a fariam estudar, mentindo, porque nunca pôde ler um livro ou um jornal. Para ela, o Brasil estava parado em 150 anos atrás, quando se assumia que os negros deportados da África devessem ser explorados pelas famílias dos portugueses que haviam colonizado essa terra roubando-a dos índios. Era assim que funcionava o mundo ali, a normalidade de um imenso país que só no final do século XIX resolveu aprovar a Lei Áurea, quebrando os grilhões da escravidão colonial importada pelo homem branco.
O Brasil foi o último estado a se livrar dessa prática desumana e racista, era 1888.
E, no entanto, a história de Maria e de muitas outras mulheres negras a quem nunca foi dito que o trabalho é pago, que existem férias e que segregação é crime, conta como no Brasil sobrevive o legado de uma cultura atrasada e insuportável. Escondido em casas de classe média, oculto em domicílios que, de acordo com a Constituição brasileira, os fiscais do trabalho não podem violar.
Eles chamam isso de “formas de trabalho semelhantes à escravidão” e, de acordo com a estimativa da Organização Internacional do Trabalho (OIT), afetam 50 milhões de pessoas no mundo. O número é explicado pelo fato de que a definição é ampla. “Inclui os trabalhos extenuantes que causam doenças e morte por exaustão como acontece nas plantações de cana-de-açúcar”, relata ao La Repubblica a procuradora brasileira Juliane Mombelli do ministério público do Trabalho. “Aplica-se também para quem vive em condições degradantes de trabalho e a quem, por dívidas, é privado pelo empregador da liberdade de movimento. São fenômenos ainda muito difundidos no Brasil, pelo fato de que após a Lei Áurea não foram elaboradas políticas sociais adequadas”.
O governo brasileiro iniciou uma campanha nacional trinta anos atrás para encontrar e libertar esses Kunta Kinte contemporâneos. Até o momento, 59.238 foram salvos, a grande maioria empregada no campo, no setor da construção ou nas minas. Os desconhecidos, sabe-se lá quantos são.
Rômulo Fontineles foi recuperado. Em 2019 com 22 anos veio para o Rio de Janeiro saindo do vilarejo de pedras e grilos onde havia nascido, no estado do Piauí. “Eu estava desempregado e tive a possibilidade de trabalhar como apontador na construção civil no bairro de Santa Cruz, no Rio”. Após um mês passado no contêiner do canteiro de obras sem ver um centavo, ele e doze trabalhadores foram mandados embora. “Estávamos morrendo de fome, voltamos à obra para pedir ajuda e vi o dono que saia pelo outro portão". Se hoje ele conta isso com um sorriso é só porque os operadores do Projeto Ação Integrada o recolheram de uma esquina e colocaram num programa de ajuda. “Eles me ensinaram que quem trabalha tem direitos. E quem oferece trabalho tem deveres”.
Raspando sob a superfície de uma nação que o clichê quer sempre e inteiramente alegre, despreocupada, dançante, na realidade se descobre como em seu ventre se agitam os demônios da discriminação racial e da exploração. Quanto mais os fiscais do trabalho arranham, mais aflora a escravidão do século XXI. Mesmo em casas particulares. Em 2017, o primeiro caso de uma empregada doméstica, obviamente negra, que numa família branca de Rubin (em Minas Gerais) trabalhava sem direitos nem salário. Em 2018 mais dois casos, em 2019 cinco, três em 2020 e trinta em 2021. Descobertos graças a denúncias anônimas porque as vítimas nem sabem que são. “Desde crianças, são tiradas de suas famílias sob o pretexto de receber uma educação, mas são cortadas da sociedade. Como Maria, que não tinha telefone nem saia de casa”, recorda a procuradora Mombelli, que depois de uma longa investigação conseguiu tirar a mulher da casa dos Mattos Maias.
Quando foram buscá-la, Maria estava desorientada. Ela não entendia e não queria sair, por que aquele sofá sujo era o único lugar de sua vida. "Eu tenho que dar de comer a dona Yonne, sem mim ela vai morrer”. Síndrome de Estocolmo total. Calcularam que a família, indiciada, deveria pagar 300.000 dólares em salários nunca pagos. Maria hoje tem 86 anos, sofre de problemas mentais. É atendida por assistentes sociais que estão lhe devolvendo, pouco a pouco, a humanidade negada. A terapia prevê pequenos exercícios diários de livre arbítrio. Eles a levam para comer sorvete, por exemplo. E ela pode escolher o sabor.
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Maria, Rômulo e os outros. Os escravos do século XXI no Brasil profundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU