O Brasil que vai às urnas. ‘País de opostos, que se move sem sair do lugar, que paga grandes avanços econômicos com grandes retrocessos sociais’. Entrevista especial com José de Souza Martins

O principal desafio após as eleições deste final de semana será o estabelecimento de "um pacto político que viabilize um novo desenvolvimento econômico com desenvolvimento social, com emprego e renda", diz o sociólogo

Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 01 Outubro 2022


O Brasil que vai às urnas neste domingo, 02-10-2022, "é o nascido das contradições que permaneceram escondidas", "o da incerteza, do medo, da insegurança, da fome, do genocídio", "doente do autoritarismo, da voracidade de poder e de riqueza fácil de um capitalismo subdesenvolvido e rentista, cuja dinâmica é a do lucro imenso e fácil e da pobreza extensa e difícil", "o Brasil de opostos, que se move sem sair do lugar", afirma José de Souza Martins.

 

É também um "Brasil alienado e frágil", dividido em dois, "o da extrema-direita de tendências homicidas e o da esquerda mutilada e fragmentária por sua incapacidade de atuar no sentido de construir um pacto democrático e pluralista e um projeto de nação abrangente".

 

"Aparentemente", observa, "os brasileiros estão divididos entre a esquerda com Lula e a extrema-direita com Bolsonaro", mas "essa é a polarização visível e superficial já definida nas eleições de 2018. Não é uma polarização de agora nem é a verdadeira polarização subjacente ao processo político brasileiro".

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos, o sociólogo comenta os desafios desta eleição presidencial e destaca que a pandemia, que deixou mais de 600 mil mortos no país, "não está sendo relida no cenário da disputa política desta eleição. Seus efeitos sociais e o modo irresponsável como foi tratada pelo governo, no entanto, estão presentes no conjunto das anomalias políticas que, justamente como conjunto, definem o que tem sido um programa antissocial de governo".

 

José de Souza Martins durante Aula Magna na Unisinos (Foto: Frame do YouTube)

 

José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Foi professor visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP.

 

Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (São Paulo: Paulos Editora, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (São Paulo: Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (São Paulo: Editora Contexto, 2015), Do PT das lutas sociais ao PT do poder (São Paulo: Editora Contexto, 2016) e Sociologia do desconhecimento: ensaios sobre a incerteza do instante (Editora Unesp, 2021).

 

A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 29-09-2022.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Que Brasil que vai às urnas neste final de semana?

 

José de Souza Martins – O Brasil que vai às urnas neste final de semana, dia 2 de outubro de 2022, é um Brasil completamente diferente do Brasil que julgávamos conhecer. É o Brasil nascido das contradições que permaneceram escondidas nos interstícios da democracia inacabada da Constituição de 1988, o restolho do golpe de Estado de 1964. É o Brasil da incerteza, do medo, da insegurança, da fome, do genocídio. É o Brasil doente do autoritarismo, da voracidade de poder e de riqueza fácil de um capitalismo subdesenvolvido e rentista, cuja dinâmica é a do lucro imenso e fácil e da pobreza extensa e difícil. É o Brasil de opostos, que se move sem sair do lugar, que paga grandes avanços econômicos com grandes retrocessos sociais.

 

É, também, o Brasil dividido em dois Brasis, o da extrema-direita de tendências homicidas e o da esquerda mutilada e fragmentária por sua incapacidade de atuar no sentido de construir um pacto democrático e pluralista e um projeto de nação abrangente. O Brasil destas eleições é um Brasil alienado e frágil. Não obstante, uma eventual vitória das oposições aos desmandos do atual governo representará que, nas brechas de nossa tragédia política, sobrevivem e renascem as luzes do discernimento, da responsabilidade política e da esperança. A revolução social inesperada da lentidão e do silêncio.

 

 

IHU – O que une e o que divide os brasileiros nesta eleição presidencial?

 

José de Souza Martins – Hoje, tudo divide os brasileiros. É uma divisão construída, forjada, proposital, estruturante, de origem militar, religiosa e política. Sem entendê-la, nunca compreenderemos nossos bloqueios políticos e nossa tendência antidemocrática de retorno cíclico ao autoritarismo e à ditadura.

 

Pode-se reconstituir-lhe a gênese já em tempos inimagináveis, desde quando, com a duvidosa proclamação da República, na manhã de 15 de novembro de 1889, uma facção insurgente do Exército depôs o gabinete, o governo, e um grupo de oportunistas aproveitou para depor o Imperador e impor ao país um regime republicano meia boca.

 

Quem examinar atentamente os detalhes do republicanismo brasileiro notará que a república militarizada baseia-se no pressuposto de que o povo brasileiro é politicamente incapaz, precisa ser tutelado. Como se lê num documento da Revolução de 1924, uma revolução tenentista, de onde procederiam os oficiais superiores do Exército, a partir da Revolução de Outubro de 1930, até o golpe disfarçado das eleições de 2018, a tese é a de que, para amadurecer politicamente, o Brasil precisaria de uma longa ditadura.

 

País originário da escravidão, não tinha condições de ser republicano com base em princípios liberais e democráticos. República sem povo, foi tratado como se fosse um país de ex-escravos a serem tratados como se escravos ainda fossem. Precisava de uma longa ditadura para supostamente amadurecer.

  

 

Até hoje, essa gente trata os brasileiros como menores de idade e inimigos do Estado, que consideram ser o Brasil verdadeiro. No fundo, um país de funcionários públicos.

 

Ciclicamente, declaram guerra ao povo, como agora, para enquadrá-lo num regime político de quartel e de marcha unida. Inventam e atualizam estigmas como, desde a preparação do golpe de 1964, o de subversão e corrupção, reciprocamente condicionadas, e vão carimbando quem a eles se opõe para perseguir, banir, prender, torturar e até matar. Não é por acaso que o Estado faça alusões à morte com tanta frequência.

 

Divisão da sociedade

 

Uma técnica decorrente tem sido a de estimular a divisão da sociedade, na política, na economia, na religião, até no futebol. A origem estratégica e geopolítica dessa divisão planejada pode ser identificada e localizada. Vem da tradição republicana, mas foi urdida durante a guerra da Coreia, na institucionalização da Guerra Fria, nos fundamentos geopolíticos da atualização do autoritarismo brasileiro. Se examinarmos atentamente os discursos, na maçonaria e pronunciamentos e entrevistas, do general Hamilton Mourão, em 2017 e 2018, em sua campanha eleitoral, veremos isso claramente. O projeto de governo era e é o do desmonte do Estado brasileiro e, portanto, o das normas, instituições, leis gestadas nos intervalos democráticos, sobretudo as relativas aos direitos sociais.

 

A revolução social inesperada da lentidão e do silêncio. O eleitor pode ser enganado no dia a dia da política, mas não pode ser enganado na relativa lentidão do processo político, que é processo causado e motivado por carências várias traduzidas em soluções políticas.

 

Polarização endêmica

 

Mas essa polarização endêmica tem sido contrariada por seus próprios fatores, como agora. A motivação de um eleitorado como o brasileiro, lenta e sutilmente insubmisso à sujeição política e à manipulação ideológica, está fundada na consciência das suas necessidades sociais. Esse é o limite do nosso autoritarismo.

 

É um equívoco supor que, aqui, a política se faz na competência para mentir e enganar o eleitor, como deu impressão a muitos o golpe eleitoral de 2018. O eleitor pode ser enganado no dia a dia da política, mas não pode ser enganado na relativa lentidão do processo político, que é processo causado e motivado por carências várias traduzidas em soluções políticas.

 

Nesse sentido, o político que se filia à concepção teatral da política, como Bolsonaro e os bolsonaristas, precisa renovar diariamente seu estoque de mentiras, de fantasias e de truques manipulativos. É aí que ocorrem as descontinuidades reveladoras do que é o governo e o governante.

 

 

Muitos se perguntam por que o atual presidente nunca é visto governando ou, trabalhando, na concepção popular de trabalho. Sua visibilidade pública é a de um funcionário do lazer, das motociatas, das cavalgadas, da teatralidade da governança, do governo como ficção.

 

Aquela lamentável reunião do governo, presidente e ministros, de 22 de abril de 2020, recheada de palavrões, marcada pela formulação da trapaça de “deixar a boiada passar e mudar os regramentos” ambientais, é justamente um documento da concepção de poder e governo que preside a República desde 1º de janeiro de 2019. O ato de governar como se fosse um convescote. A máscara do engano acaba desvendada pela própria linguagem imprópria do seu ator.

 

Eleitorado

 

Os eleitores não são uma coleção de indivíduos, cujas fragilidades possam ser identificadas e ludibriadas com fake news, com fantasias e bravatas. O eleitorado é um sujeito social e coletivo, relacional. A identidade do eleitor é construída na tensão do processo interativo. Nesse sentido, mesmo quem é adversário do vencedor é relacionalmente artífice da vitória dele e de sua própria derrota. Essa é uma questão sociológica.

 

Tudo nesta eleição caminha nessa direção. A temporalidade da história social e política é mais lenta do que a temporalidade cotidiana das decisões políticas individuais. Por isso a mentira venceu em 2018 e já dá sinais de que não poderá vencer em 2022.

 

IHU – Os efeitos da pandemia, como aumento da fome e da pobreza, podem influenciar as eleições presidenciais deste ano? De que modo? Como a pandemia é relida à luz das eleições presidenciais?

 

José de Souza Martins – A pandemia expôs, inesperadamente, que o governo Bolsonaro não estava preparado para governar porque não previra meios nem profissionais para o enfrentamento de emergências e crises sociais.

 

Todo governo tem entre suas funções a previsão de recursos e previsões técnicas e administrativas para enfrentar, corrigir, atenuar e superar desastres, epidemias e outros fatos que vitimam ou afligem grandes grupos humanos. O governo Bolsonaro não só mostrou que não estava preparado como demonstrou que não tivera interesse político nesse preparo. Em face da tragédia tinha um arsenal barato de racionalizações e de rótulos para justificar-se. A morte foi banalizada pelo presidente da República e essa banalização mais de uma vez esteve em sua boca. Esteve presente na conduta irresponsável da demora em providenciar vacinas que poderiam ter evitado, provavelmente, centenas de milhares de mortes. E, também, os muitos casos de privações e de desorganização social da família das vítimas em decorrência do falecimento de membros de referência na sobrevivência do grupo familiar.

 

A teimosia presidencial no apregoamento de medicação sem eficácia comprovada no tratamento da doença contribuiu para sua disseminação e, provavelmente, acobertou erros relativos a condutas impróprias no trato da coisa pública.

 

A banalização da morte, como desvio ético em relação ao primado da vida, morte reduzida a uma interpretação de política econômica, ficou evidente em muitas falas e manifestações do governo. A mais grave é de março de 2020:

 

“No dia 17 de março, quando o País sentia os primeiros impactos do novo coronavírus, a superintendente da Superintendência de Seguros Privados (Susep) [...] teria dito a integrantes do Ministério da Saúde, segundo relatos, que a concentração da doença principalmente em idosos poderia ser positiva para melhorar o desempenho econômico do Brasil ao reduzir o rombo nas contas da Previdência.” [1]

 

 

O modo antissocial como foi tratada a questão da Covid-19 foi uma opção política. Um modo que definiu o conjunto da orientação do governo em relação aos temas sociais. O presidente se cercou de indivíduos, escolhidos a dedo, que representavam e representam a negação do conjunto das conquistas sociais da sociedade brasileira desde o fim da ditadura. A mentalidade antissocial do governo se confirma nessa espécie de profissionalização do desmonte do Estado para consumar limites e possibilidades da economia neoliberal.

 

Se prestarmos atenção, veremos que, para cada orientação dos governos Lula e dos governos FHC, Bolsonaro escolheu exatamente o sujeito que a desmontaria. Como disse o general Hamilton Mourão, na campanha eleitoral, o objetivo da eleição de Bolsonaro seria desmontar as normas e instituições do Estado que haviam viabilizado o reconhecimento de direitos antagônicos aos propósitos do neoliberalismo econômico.

 

O programa desse governo foi deliberadamente o desgoverno e, nesse sentido, a minimização das pessoas para diminuir os custos da reprodução ampliada do capital.

 

É também por isso que não tem sentido falar em exclusão social, em casos assim, que este governo praticou extensamente. O que estamos vendo é inclusão social perversa, regulada pelo crescimento econômico e não pelo desenvolvimento econômico com desenvolvimento social. A inclusão regulada pela taxa de lucro e não pelo primado das necessidades sociais na definição das políticas públicas.

 

A pandemia não está sendo relida no cenário da disputa política desta eleição. Seus efeitos sociais e o modo irresponsável como foi tratada pelo governo, no entanto, estão presentes no conjunto das anomalias políticas que, justamente como conjunto, definem o que tem sido um programa antissocial de governo.

 

Esse conjunto é constitutivo da consciência socialmente crítica que se expressa, ainda que de modo parcial, mas suficientemente poderoso para levar à rejeição eleitoral do governo. O brasileiro se expressa politicamente através de mediações e não de meras relações de causa e efeito.

 

 

IHU – Na sua avaliação, como os pobres, a classe média e a elite brasileira estão se posicionando e vão se posicionar nas eleições deste ano?

 

José de Souza Martins – Essas três categorias sociais são meramente classificatórias e não correspondem a grupos sociais de interesse e expressão que definam orientações uniformes de conduta eleitoral. Isso não exclui a manifestação da intenção de voto como indicação mais uniforme e convergente entre os pobres, quanto a Lula, e na classe média e entre os ricos, quanto a Bolsonaro. Mas isso é aqui no Brasil um tanto difuso. Há pobres que votarão em Bolsonaro, assim como há ricos que votarão em Lula.

 

Independentemente da polarização atual, a classe média tem sido, no Brasil, uma categoria social vacilante. Historicamente, em diferentes países, tende para as propostas autoritárias. É o que está acontecendo no Brasil agora. Algumas vezes para centro-esquerda, como aconteceu na década de 1970, na ditadura militar, quando a classe média empurrou o pêndulo eleitoral da Arena para o MDB, da ditadura para a oposição, o que acabou abrindo uma enorme brecha política nos apoios do regime.

 

 

IHU – A que o senhor atribui a “popularidade” do presidente Bolsonaro em alguns setores da sociedade? O que revela sobre o cidadão brasileiro?

 

José de Souza Martins – A “popularidade” de Bolsonaro não é popularidade. O bolsonarismo desenvolveu técnicas de identificação, agrupamento e manipulação dos social e politicamente mais alienados da sociedade brasileira, nas diferentes classes sociais. Pessoas que não pensam politicamente, que pensam a política com os mesmos critérios usados na escolha de uma marca de cigarros, de sabonete, de chiclete ou de uma lata de sardinhas: basicamente pela cor e pelo desenho do rótulo e por uma resistência a mudar, mais vício do que propriamente opção livre e racional.

 

Por outro lado, durante a campanha, quando se ouvem dos eleitores as justificativas da escolha eleitoral, há diferenças substanciais entre os que estão de um lado e os que estão de outro. Os que optam politicamente têm explicações sociais e políticas para sua decisão, são visíveis as relações de causa e efeito. Os outros tem rotulações: “porque ele é corajoso”, “porque ele é religioso”, “porque ele é bonito”, “porque ele não é comunista”, “porque defende os bons costumes”. E não conseguem ir além disso. Por isso podem ser manipulados, quase sempre por alguém cujo perfil é o das profissões supostamente de manipulação de vontades: militares, pastores de igrejas evangélicas, policiais. É o eleitor não cidadão, mal integrado na sociedade política, embora integrado na sociedade de consumo.

 

De vários modos, Bolsonaro é personagem residual do processo político brasileiro, em grande parte em decorrência das omissões e distrações dos democratas e dos partidos de esquerda, em especial o PT.

 

Os diferentes partidos progressistas e de esquerda desdenham, desde a ditadura militar, o conhecimento sociológico dos mecanismos de controle social e político, cada vez mais aperfeiçoados com apoio na ciência e em técnicas científicas. No caso brasileiro atual, é impossível não identificar a influência da etnometodologia de Harold Garfinkel nas técnicas sociais e políticas empregadas pelo bolsonarismo. Um ramo das ciências sociais que nasceu com apoio do Pentágono.

 

PT e a classe trabalhadora

 

Nesse desdém, o PT em particular tratou a grande massa de trabalhadores das diferentes categorias como personagens de intuição popular, como se fosse natural o trabalhador ser petista e de esquerda.

 

Se tivesse prestado atenção nas mudanças políticas do cenário emblemático e histórico do petismo, a região fabril do ABC paulista, teria visto a desindustrialização e teria visto que os filhos dos operários das grandes manifestações lulistas no Estádio de Vila Euclides eram muito diferentes dos pais: tornaram-se ativistas fascistas e racistas. No curso de uma geração, o protagonismo operário cedera lugar a uma cultura consumista e autoritária.

 

 

É importante notar que o discurso de Lula, na campanha eleitoral de agora, já não fala como voz da classe trabalhadora, mas como voz das vítimas da crise do trabalho, da sociedade de classes, dos diferentes, dos excluídos. Na voz de Lula, com razão, o capitalismo declina no Brasil e esse é o problema a enfrentar. As linhas gerais subjacentes ao renascimento do lulismo são as da salvação do capitalismo que os próprios capitalistas não têm conseguido salvar da decadência. Ele tem claro, também, que o apoio da classe trabalhadora em crise à reforma do sistema econômico para salvá-lo, é também a proposta das novas tendências do capitalismo internacional, especialmente o europeu, na direção do que pode se configurar como um modelo de desenvolvimento econômico com desenvolvimento social, com emprego e renda. Isto é, com integração socialmente criativa dos que nas últimas décadas têm sido aqui vítimas da libertinagem de mercado. Há empresários e empresas que vão nessa direção, num reconhecimento de que o capitalismo brasileiro se tornou um capitalismo arcaico, antissocial, anticapitalista e derrotado.

 

Bolsonaro é personagem dessa derrota, seu protagonista e consumador.

 

IHU – O que esse cenário representa para a esquerda?

 

José de Souza Martins – O cenário abre para as esquerdas a interessante alternativa de redefinir seu protagonismo histórico, sua função social e política reformadora, sua missão de reconstruir o Brasil como um país para todos e não um país para alguns. Isso vai depender de que os interesses de classe reacionários, aferrados ao rentismo do lucro fácil, cedam lugar a um empresariado lúcido e progressista, consciente de que sozinho não irá a lugar nenhum.

 

IHU – O que a campanha eleitoral tem demonstrado sobre o sentimento de parte da população em relação ao petismo e ao psdebismo, mas também sobre a social-democracia e a esquerda no país?

 

José de Souza Martins – O PT, desde o começo de sua história, cometeu o engano de atacar o PSDB como partido de direita, que o PSDB nunca foi. Como o PT tampouco tem sido um partido propriamente de esquerda, coisa de que Lula tem consciência, mas a maioria dos petistas não têm.

 

O PT é de esquerda funcionalmente, num cenário em que o nosso capitalismo retrógrado e reacionário está tão à direita que qualquer lucidez em relação a isso é necessariamente de esquerda.

 

O PT contribuiu para dividir o país em dois Brasis, negou-se a admitir como fundamento da política a natural alternância de poder. Com isso não percebeu que, nos interstícios ocultos desse delírio, crescia uma direita apoiada no chamado partido militar e baseada nos interesses rentistas do empresariado. De tocaia, essa direita demoliu facilmente as bases do Estado democrático da Constituição de 1988 e ainda está apenas na metade de seu projeto político. Em decorrência, o PSDB foi fragilizado a partir de dentro, assim como os setores intolerantes do PT descartaram alguns dos seus melhores nomes.

 

Se as tendências eleitorais se confirmarem, o PT que voltará ao poder em 2023 estará longe do PT de 2003. Terá que se reconstruir como partido de centro-esquerda, fragilizado por um Congresso Nacional anomalamente constituído por representantes das igrejas evangélicas e da bancada da bala e, no geral, por uma classe média de tendência reacionária. Os perigos estão espraiados pela eleição dos governadores, dos deputados e dos senadores.

 

 

IHU – O que a reeleição de Bolsonaro significaria para o Brasil?

 

José de Souza Martins – A eventual reeleição de Bolsonaro representará um retrocesso de correção difícil e demorada no futuro. Ele já inviabilizou o progresso da economia, não tem política para superação da fome, da miséria e do desemprego, não tem competência política para negociar um grande pacto político nacional para sairmos do buraco para o qual nos empurrou com seus primarismos e demandas descabidas.

 

 

IHU – O que um novo mandato do ex-presidente Lula significaria para o país? Quais serão seus desafios?

 

José de Souza Martins – Depende da compreensão que Lula tiver do grave momento brasileiro. Depende de sua capacidade para negociar esse pacto com os setores sociais e políticos do que restou de democrático na diversidade política brasileira. Dependerá de sua capacidade para convencer o PT de que o partido já não tem condições de governar se não fizer ampla revisão de suas omissões e de seus erros. Sobretudo se não compreender que a situação social e política do mundo mudou muito desde que o PT chegou ao governo em 2003.

 

Há possibilidade e até necessidade de uma nova e diferente inserção do Brasil no capitalismo metamorfoseado de agora, um tanto próximo da democracia social clássica, que também precisa de ajustamentos e adaptações. Se o governo governar com base em uma guerra ideológica contra as sociedades hegemônicas, o Brasil talvez perca sua oportunidade de ser de novo um país emergente.

 

 

Os partidos sociais vão ter que rever a concepção de esquerda porque a nossa está muito longe da concepção marxiana e da dialética que a explica. Ao longo da história do capitalismo moderno, desde o século XIX, as esquerdas têm passado por sucessivas reformulações, as utopias nas quais se expressam têm se reconfigurado. Elas se libertaram das limitações do conflito de classes para assumir as possibilidades políticas subjacentes à estrutura social de classes. Tem hoje melhor compreensão do que Henri Lefebvre e Agnes Heller, em diferentes momentos, definiram como necessidades radicais, as necessidades sociais, motores da história, que não podem ser saciadas nem superadas sem transformações sociais, econômicas e políticas, com protagonismo democrático de todos que compreendem a convergência política de demandas sociais e possibilidades históricas de sua solução por meio das mudanças criativas.

 

IHU – Quais são os principais desafios do futuro em matéria de justiça social?

 

José de Souza Martins – No meu modo de ver, o principal desafio é o de estabelecimento de um pacto político que viabilize um novo desenvolvimento econômico com desenvolvimento social, como eu disse, com emprego e renda. Uma certa volta, adaptada, à economia de John Maynard Keynes. E, também, o reconhecimento e a revalorização da economia moral popular, como meio de integração social. A viabilização intersticial e complementar de uma economia social que integre na economia dominante o capital social do saber econômico popular. Algo que aconteceu na Itália na crise do petróleo dos anos 1970.

 

Nota:

[1] Cf. LINDNER, Julia; VARGAS, Mateus. “Morte de idosos por covid-19 melhora contas da Previdência, teria dito chefe da Susep”. O Estado de S. Paulo, 28 de maio de 2020. (Nota do entrevistado)

 

Leia mais