21 Janeiro 2022
Em um post recente em seu blog (que pode ser lido, em italiano, aqui), Sandro Magister publica o texto de um historiador medieval e Fellow em Berkley, Nicola Lorenzo Barile, que tenta refutar o que eu escrevi alguns meses atrás, no meu blog (que pode ser lido aqui), mostrando como Von Balthasar também poderia concordar com "Traditionis custodes", baseado em um texto seu de 1980. Gostaria de discutir o texto de forma medieval, como uma breve “quaestio disputata”, da qual tirar algumas consequências.
"Com fidelidade à tradição saudável, Francisco inevitavelmente parou uma curta e perigosa tradição doente. Por esta lucidez clássica ele deve ser agradecido. E no agradecimento não é forçado pensar que mesmo Hans Urs von Balthasar concordaria. Com base não em suposições ou conjecturas, mas lendo um texto totalmente claro e que não deixa margem de dúvidas", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 20-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Parece que HUvB não possa concordar com Francisco:
1. HUvB era um orgulhoso defensor da tradição, portanto não pode concordar com um texto que contesta o recurso a um rito da tradição;
2. Entre o HUvB e J. Ratzinger havia uma grande e comprovada afinidade e amizade. Portanto, é impensável que HuvB pudesse compartilhar a revogação de um documento aprovado por J. Ratzinger-Papa Bento;
3. Contextualizando a afirmação de HUvB em todo o texto em que aparece, deveria ser entendida em sintonia com os temores do então Cardeal Ratzinger em relação à Reforma Litúrgica.
1. A afirmação explícita que Von Balthasar faz no texto por mim citado não é contestada: Von Balthasar diz explicitamente que a VO está destinada a se extinguir, exatamente como diz o Papa Francisco na TC;
2. Von Balthasar aceita a reforma litúrgica, da qual pode contestar aspectos até relevantes, mas permanece na única forma vigente. Ele sabe, portanto, que está se colocando, eclesialmente, teologicamente e sacramentalmente, "além de Pio V" precisamente porque a tradição não fica parada, mas se move.
O texto do prof. Barile se move num plano histórico, mas repete “princípios sistemáticos, jurídicos e litúrgicos” aos quais parece estranho e cuja fragilidade e arbitrariedade não me parece que ele perceba. A questão da VO não é histórica, mas teológica e sistemática. Ao contrário, HUvB, como grande teólogo, sabia bem que a relação com a tradição não é a relação com um museu, mas com um jardim.
Ao longo de seu texto, por um lado, Barile invoca outros textos de HUvB, que, no entanto, nunca são diretos ou parecem conjecturais (já que não se faz teologia com amizades ou com entrevistas secretas). Por outro lado, na segunda parte seu texto propõe uma série de afirmações - sem qualquer relação com Balthasar - que teologicamente parecem completamente inconsistentes e têm a forma do sofisma, que tanto agrada os defensores de uma tradição imóvel.
Por isso é preciso dizer que HUvB, no texto por mim comentado há alguns meses, diz duas coisas fundamentais, que são duas enormes montanhas comparadas aos pequenos seixos invocados pelo prof. Barine: que a reforma litúrgica é irreversível e que a VO está destinada a se extinguir. Não foi o Papa Francisco que aboliu a VO, mas o rito romano foi transformado na NO, que substitui natural e tradicionalmente a forma anterior. Esta não é uma decisão de Francisco, mas do Concílio Vaticano II. Em vez disso, são aqueles que tentaram e ainda tentam negá-la que têm que argumentar de forma convincente.
Ad 1: HUvB era certamente um defensor da tradição, assim como do Vaticano II. Mas ele estava interessado em fazê-la florescer, não em colocá-la numa vitrine. Por isso não parece triste pela extinção de uma VO que continua a viver na forma da NO. O rito romano é sempre um na história: no devir assume formas diferentes, mas no presente não pode ter formas paralelas;
Ad2: Uma afinidade entre autores e entre teólogos não desloca de um milímetro a diferença entre o que HUvB afirma em seu texto e as pesadas insinuações que J. Ratzinger fez, naquela entrevista, sobre a decisão de Paulo VI de reformar o rito romano e portanto, de retirar do uso a forma anterior. Aqui entre os amigos há uma contradição evidente, que não pode ser minimizada de forma alguma.
Ad3: Já respondi no Ad2.
O texto do prof. Barile, que fala como historiador, não enfrenta a questão sistemática de fundo que afligia a tentativa com a qual Summorum Pontificum pretendia remar contra a história, tornar acessória a reforma litúrgica e dar fôlego a todas as formas de resistência ao Concílio Vaticano II. A forma de preservar a "tradição litúrgica" não pode ser garantida mantendo simultaneamente vigentes duas formas do mesmo rito romano, sendo que a segunda quis e quer ser uma explícita revisão, correção e reformulação da forma anterior.
A ruptura, se houve, certamente não é a de Francisco ou do Concílio Vaticano II. A ruptura é a de quem ontem, como hoje, pensa em se imunizar da reforma da liturgia e da Igreja, colocando-se fora da história comum. Com fidelidade à tradição saudável, Francisco inevitavelmente parou uma curta e perigosa tradição doente. Por esta lucidez clássica ele deve ser agradecido. E no agradecimento não é forçado pensar que mesmo Hans Urs von Balthasar concordaria. Com base não em suposições ou conjecturas, mas lendo um texto totalmente claro e que não deixa margem de dúvidas, no qual escreve:
"A Santa Missa precisava urgentemente de renovação, especialmente daquela participação ativa de todos os fiéis na ação sagrada que nos primeiros séculos era algo absolutamente pacífico. No máximo - como reiteraram P. Louis Bouyer e também o Cardeal Ratrzinger - poderia ter sido tolerada ainda por um determinado tempo a antiga missa pré-conciliar (à qual, desde os tempos de Pio V, foram aportadas em várias ocasiões numerosas e substanciais modificações); pouco a pouco essa missa acabaria por se extinguir organicamente.” (Pequeno guia para os cristãos).
É por isso que o título do post de Magister ("Nem mesmo Von Balthasar tinha pensado nisso") é gravemente equivocado: é difícil supor que Von Balthasar não tivesse pensado no que tinha escrito!
Portanto: Hic Rhodus, hic salta.
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Pio V, Francisco e Von Balthasar: pequena “quaestio disputata”. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU