26 Julho 2021
A superação do Summorum Pontificum (o motu proprio que liberou a celebração com o rito antigo em 2007) com a carta apostólica Traditionis custodes (16 de julho de 2021) contradiz a benevolência com que o Papa Francisco geriu as suas relações com o mundo dos lefebvrianos, isto é, daqueles que rejeitaram a reforma litúrgica conciliar?
O artigo é de Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, publicado por Settimana News, 23-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A denúncia do paradoxo de uma abertura à antiga ordem que não produz comunhão, mas contraposição, é também uma mudança na orientação de Francisco da benevolência para o fechamento em relação aos herdeiros de D. Lefebvre?
Na realidade, o endurecimento não está relacionado com a Fraternidade sacerdotal de São Pio X, mas sim com aquela parte do mundo católico que fez do rito antigo a arma para resistir ao magistério papal e às suas reformas. Não mudou o papa, mas seus interlocutores. Para simplificar: não diz respeito tanto à França, o país que tem uma presença lefebvriana significativa (250 grupos, 60.000 fiéis, 199 lugares), mas aos Estados Unidos onde os fiéis que frequentam a missa em latim são 150.000 e 657 lugares onde celebra o antigo rito.
Não se trata apenas de uma contraposição litúrgica e teológica, mas principalmente de um posicionamento eclesial em que o rito é um meio para rejeitar o magistério e encobrir uma ideologia política autoritária (trumpiana ou outra).
A coragem e o risco de uma decisão pastoral cujas referências teológicas já foram apontadas (Intenção pastoral desconsiderada; Liturgia: superar o estado de exceção; TC: o rito e os bispos) sugerem a distinção dos interlocutores, muito diferentes entre si, que vai além do protesto comum entre eles.
As pedras angulares de Traditionis custodes são duas: a afirmação da unicidade do rito romano em relação à pretensão de um dualismo que ameaça a unidade de lex orandi e lex credendi e a entrega ao bispo e à sua responsabilidade como liturgo para gerir a experiência ritual de seu povo.
Dentro destas indicações existem as disposições concretas, entre as quais recordamos: a aceitação da reforma litúrgica, a exclusão do antigo rito das igrejas paroquiais, a negação da constituição de novos grupos, a necessária autorização do bispo aos sacerdotes celebrantes, os transferência das cerca de vinte famílias religiosas de rito antigo para a responsabilidade do dicastério dos religiosos (e não mais para a Congregação para a Doutrina da Fé).
Além do âmbito lefebvriano, existem as fundações tradicionalistas que têm reconhecimento vaticano, existe uma área e tipo estetizante, curiosa e nostálgica e, por fim, uma corrente mais ampla de ressentidos que escondem no rito de Pio V (certamente não naquele malabar ou ambrosiana) sua rejeição das reformas eclesiais e da pregação do radicalismo evangélico.
Sua presença pode ser encontrada em vários lugares, além dos Estados Unidos. Não é por acaso que o texto do motu proprio foi publicado primeiro em italiano e inglês e, posteriormente, nas outras línguas.
A posição benevolente de Francisco está bem expressa em uma resposta ao La Croix (9 de maio de 2016): “Em Buenos Aires, sempre dialoguei com eles. Eles me cumprimentavam, me pediam uma bênção de joelhos. Eles se dizem católicos. Amam a Igreja. Mons. Fellay (ex-superior geral da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, ndr.) é um homem com quem se pode dialogar. Este não é o caso de outros elementos um tanto estranhos, como Mons. Williamson (expulso da Fraternidade em 2012, ndr) ou outros que se radicalizaram. Penso, como ele havia dito na Argentina, que são católicos a caminho da plena comunhão”.
Em 2015 ele se encontrou com Mons. Fellay. Depois, no ano da misericórdia, ele autorizou seus padres a absolverem o aborto (geralmente reservado para alguns sacerdotes escolhidos pelos bispos), permitiu a celebração do matrimônio. Em 2020, implementou o antigo rito da memória dos santos recentes e de sete novos prefácios.
A supressão da Comissão (2019) foi aceita pelos lefebvrianos sem maiores preocupações. Por outro lado, disciplinou estritamente as celebrações no rito antigo em São Pedro, proibiu as celebrações em latim entre os Cavaleiros de Malta e compartilhou com o dicastério dos religiosos uma exigente verificação entre as famílias religiosas sob intervenção por causa da questão litúrgica.
O papa justifica a decisão tomada e o texto publicado da seguinte forma: “Treze anos depois, instruí a Congregação para a Doutrina da Fé a enviar (aos bispos) um questionário sobre a aplicação do motu proprio Summorum Pontificum.
As respostas recebidas revelaram uma situação que me entristece e preocupa, confirmando a minha necessidade de intervir. Infelizmente, a intenção pastoral dos meus predecessores, que pretendiam ‘envidar todos os esforços, para que todos quantos desejam verdadeiramente a unidade possam permanecer nesta unidade ou encontrá-la novamente’, tem sido muitas vezes seriamente desrespeitada”.
A oportunidade oferecida “foi aproveitada para aumentar as distâncias, endurecer as diferenças, construir contraposições que ferem a Igreja e dificultam o seu caminho, expondo-a ao risco de divisões”. “É para defender a unidade do corpo de Cristo que me vejo obrigado a revogar a faculdade concedida pelos meus predecessores. O uso distorcido que dela foi feito é contrário aos motivos que os induziram a conceder a liberdade de celebrar a missa com o missale romanum de 1962. Visto que ‘as celebrações litúrgicas não são atos privados, mas celebrações da Igreja’ que é sacramento de unidade, devem ser feitas em comunhão com a Igreja”.
Um comentário de Felix Neumann (Katholisch.de) alude ao método de Francisco: em primeiro lugar, produzir sinais ocasionais e de teste, esperar os desenvolvimentos e analisá-los cuidadosamente. Aproximar-se aos problemas "com indiferença" e submetê-los a uma atenta distinção, ouvindo vozes distintas. Em seguida, decidir com uma palavra de autoridade exercendo plenamente o papel primacial.
Os bispos receberam a mensagem e, em geral, tomaram cuidado para não alarmar os que de boa fé e na obediência eclesial recorrem ao rito antigo, sem renunciar à execução do motu proprio e ao exercício da responsabilidade que lhes fora retirada pelo Summorum Pontificum.
Na síntese da Conferência episcopal francesa (que apareceu no site da Fraternidade de São Pio X e depois removida), cito algumas passagens das conclusões para as nove questões individuais. “Na maioria das dioceses, a situação parece aplainada. Algumas arestas permanecem, devido principalmente à história e a conflitos do passado”.
“Podemos nos perguntar se a calma (registrada) realmente seja uma boa notícia: deveríamos ter esperado um diálogo sobre a adesão básica ao ensinamento conciliar. “Se o motu proprio (SP) favoreceu indiscutivelmente a tranquilidade, não fomentou, porém, a comunhão”, constatou um bispo. A calma parece ter fixado o estado das relações e o diálogo sofreu as consequências ... A comunhão diocesana, o uso de um calendário e lecionário diferentes, a recusa da concelebração são as principais dificuldades registradas pelos bispos”.
“Se as normas do motu proprio (SP) parecem ser geralmente respeitadas, restam ainda dúvidas quanto à recepção de seu espírito”. “A constatação compartilhada é aquela de dois mundos que não se encontram. Nenhum enriquecimento recíproco foi sentido… Muitas vezes (o rito) extraordinário significa exclusividade”. “São um mundo à parte, delineia-se uma Igreja paralela”.
“A publicação do motu proprio (SP) expressa uma intenção louvável, mas sem os resultados esperados. Se honrou um princípio de realidade, um trabalho incessante pela unidade parece necessário. As promessas de um enriquecimento recíproco das duas formas do único rito romano permanecem em grande parte iniciais. Desconfianças mútuas esterilizam o conjunto. A preocupação com a unidade da Igreja não é plenamente honrada na prática do motu proprio”.
Os bispos estadunidenses preocuparam-se em confirmar a situação atual para acalmar os ânimos mais indispostos, postergando a um estudo mais preciso das disposições. Assim se expressou o bispo de Minneapolis, de Baltimore, de Los Angeles, de Oklaoma City, de Little Rock. O bispo conservador de São Francisco, S. Codileone, é mais opinativo: “a tradicional missa em latim continuará a estar disponível na arquidiocese, à disposição das legítimas necessidades e desejos dos fiéis”.
Neste ponto, as reações críticas, muitas vezes bastante semelhantes, podem ser colocadas em seus contextos próprios. Exceto as críticas previsíveis dos card. Zen, Sarah, Müller, o jornal on-line Bussola quotidiana adverte: “Não devemos nos surpreender se houver uma reação muito forte, que corre o risco de dilacerar ainda mais um tecido eclesial que já está em farrapos ... Tenham cuidado, não se brinca com Deus: será a sua Waterloo”.
Para G. de Tanouärn, do Instituto Buon Pastore: “o papa aparece como um divisor: inquietante para o futuro”. Para os tradicionalistas de Rorate caeli, o texto de Francisco é chocante e terrificante. Para Pe. Benoit Paul Joseph, da Fraternidade São Pio X: “Não haverá mais estabilidade. Passamos da ‘benevolência’ a um regime de simples ‘tolerância’, evidenciado pelo fato de que as missas da tradição não podem mais ser celebradas nas igrejas paroquiais, que não serão mais erigidas paróquias pessoais e que se impõe aos bispos de não aceitar pedidos de novos grupos".
Na Corrispondenza romana consta: "O motu proprio e a carta que o acompanha mergulham-nos inevitavelmente no desconforto, tentam-nos ao desespero, talvez possam até mesmo nos induzir a uma resposta irada e à rebelião como um fim em si mesma".
Para Joseph Shaw, presidente da sociedade para a missa em latim do Reino Unido, o documento é “assombroso. Ultrapassa as nossas piores expectativas”. Para a Fraternidade São Pio X: “Até agora os espaços reservados ao rito antigo tinham uma certa amplitude de movimento, quase como as reservas naturais. Hoje passamos ao estatuto de zoo: jaulas estritamente limitadas e confinadas”.
“Enquanto a missa da tradição está em extinção e as promessas feitas à comissão Ecclesia Dei são negligenciadas, ela (a Fraternidade) encontra na liberdade que lhe foi deixada pelo bispo de ferro (Lefebvre), a possibilidade de continuar a lutar pela fé e pelo Reino de Cristo Rei”.
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Traditionis custodes: o papa se contradiz? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU