Mais do que um documento, o Traditionis custodes representa um dos atos papais mais importantes da história da recepção e da implementação do Vaticano II. Mas seria ingênuo entender a resposta de Francisco ao neotradicionalismo simplesmente como um retorno ao status quo ante.
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado em Commonweal, 02-09-2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.
Segundo ele, "a missa católica pós-Vaticano II sofreu mais com a pandemia do que a missa tradicionalista pré-Vaticano II, na qual o conceito de participação é bastante diferente (para dizer o mínimo) da “actuosa participatio” de que fala o Vaticano II".
"Houve uma “interrupção” não apenas na tradição acadêmica de examinar o Vaticano II, - constata Faggioli - mas também na nossa consciência eclesial. O catolicismo do Vaticano II ficou adormecido, enquanto as vozes anti-Vaticano II e reducionistas passaram a ser as mais expressivas na hierarquia".
Traditionis custodes, o motu proprio do Papa Francisco sobre a missa pré-conciliar publicado em julho, pegou muitos observadores e especialistas litúrgicos de surpresa. Não por causa do que ele diz sobre o pensamento teológico de Francisco (ele sempre foi inflexível ao defender a validade da reforma litúrgica do Vaticano II), mas por causa da rejeição inequívoca ao documento Summorum pontificum, de Bento XVI, e por causa do momento da sua publicação – isto é, enquanto Bento XVI ainda está vivo.
Como ficou claro desde que o Summorum pontificum foi publicado em 2007 (e como foi enfatizado pelo Traditionis custodes), os documentos papais sobre o rito litúrgico não tratam apenas de liturgia, mas também da teologia do Vaticano II, que muitos proponentes da “missa antiga”, tanto clérigos quanto leigos, rejeitaram.
No mundo de língua inglesa, isso foi confirmado com duras críticas ao motu proprio de Francisco por parte de Ross Douthat e de Michael Brendan Dougherty, ambos escrevendo no jornal The New York Times, e do cardeal Robert Sarah, ex-prefeito do dicastério vaticano para a liturgia, no National Catholic Register.
Mais do que um documento, o Traditionis custodes representa um dos atos papais mais importantes da história da recepção e da implementação do Vaticano II. Mas seria ingênuo entender a resposta de Francisco ao neotradicionalismo simplesmente como um retorno ao status quo ante. Esse retorno é impossível. Não porque um futuro pontificado poderia reverter a reversão de Francisco em relação a Bento XVI. Nem porque o magistério não pode mais esperar o “obsequium religiosum” (Vaticano II, constituição Lumen gentium, par. 25), nem mesmo de bispos e de católicos conservadores.
Em vez disso, porque o ecossistema do catolicismo ocidental mudou significativamente desde 2007. A ascensão das mídias sociais ajudou a alimentar um tradicionalismo pós-moderno, especialista em mídia e ressentido, que atua no enfraquecimento deste papado tanto por parte de leigos quanto por clérigos conservadores proeminentes – um esforço que começou poucos dias após a eleição de Francisco em 2013.
Outro fator é como a nossa atual era de desintermediação afetou a experiência dos católicos, particularmente a nossa experiência da liturgia. Desde março de 2020, a celebração da liturgia para muitos católicos ocorre por meio de uma tela de computador. Isso afeta o modo como vemos a ligação entre liturgia e eclesiologia.
A missa em tempos de Covid aumentou a tendência de ressacralizar o sacerdócio católico: mais distância do altar e entre os bancos, a impossibilidade do beijo da paz (que mesmo na Igreja primitiva ajudava a diferenciar entre uma compreensão do culto interna ao templo e a Igreja como comunhão) e uma drástica redução (senão redefinição) da participação ativa.
A missa católica pós-Vaticano II sofreu mais com a pandemia do que a missa tradicionalista pré-Vaticano II, na qual o conceito de participação é bastante diferente (para dizer o mínimo) da “actuosa participatio” de que fala o Vaticano II .
Mas talvez o maior fator que impossibilite um retorno à situação pré-2007 seja a autoridade enfraquecida do Vaticano II na Igreja de hoje. O movimento do Papa Francisco contra o tradicionalismo anti-Vaticano II é um teste para o seu pontificado. É algo como um referendo sobre o qual os bispos são forçados a tomar uma posição, já que o documento dá aos bispos locais a responsabilidade de reinar sobre os católicos tradicionalistas em suas igrejas locais.
E, até agora, a resposta a esse referendo tem sido mista, não apenas nos Estados Unidos, mas também em lugares onde o tradicionalismo é muito mais marginal, como na Itália. Alguns bispos podem ser movidos pela sensibilidade pastoral, enquanto outros podem ser motivados pela chance de desafiar Francisco novamente e solidificar o movimento tradicionalista.
Em suma, o tradicionalismo anti-Vaticano II (litúrgico e teológico) não desaparecerá por um decreto papal. Ele foi mantido sob controle nas primeiras décadas após o Vaticano II, até mesmo durante o papado de João Paulo II, que, com uma política doutrinal inimiga do progressismo teológico, manteve, mesmo assim, a autoridade do Concílio.
Mas Bento XVI, citando uma “hermenêutica de continuidade e da reforma” destinada a prevenir rejeições do Vaticano II como a da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, ajudou, em vez disso, a fomentar uma reabilitação do tradicionalismo que reforçou suas posições antiprogressistas. Esse é o legado mais importante e duradouro do pontificado de Joseph Ratzinger.
O tradicionalismo anti-Vaticano II litúrgico e teológico não está apenas presente, mas, em algumas Igrejas locais nos Estados Unidos e na Europa, também veio para ficar. Ele é evidente no fervor dos mosteiros que estão vendo um aumento das vocações, o que sugere um aumento nas ordenações presbiterais e o crescimento dos compromissos monásticos. Mais importante, há razões para acreditar que o tradicionalismo anti-Vaticano II não é uma posição minoritária entre o clero mais jovem.
Também é difícil negar que o tradicionalismo católico às vezes expressa visões de mundo exclusivistas, sexistas e racistas, e que a “missa antiga” deixa a porta aberta para uma teologia pré-Vaticano II da relação entre a Igreja e o judaísmo, que traz novamente à tona os antigos tropos antissemitas.
Esse problema é particularmente intenso nos Estados Unidos, onde o tradicionalismo litúrgico é uma resposta equivocada a uma crise litúrgica mais do que a uma crise de fé. Os católicos não deixaram de ir à missa simplesmente por causa da desfiliação institucional ou para protestar contra a corrupção e o distanciamento do clero. A relação dos católicos com a liturgia também mudou, influenciada pela ênfase cultural naquilo que é evolucionário e linear, e por uma rejeição da dimensão cíclica da experiência religiosa.
Trata-se de um fenômeno que antecede muito o Vaticano II (pelo menos dois séculos) e que os esforços de reforma litúrgica iniciados no fim do século XIX (que não eram “liberais” ou “protestantizantes”) pretendiam contra-atacar. O tradicionalismo de hoje é, portanto, de certa forma, uma resposta à extinção da compreensão da tradição como um ponto nodal de conhecimento fundamental.
No entanto, a recepção do Vaticano II e suas reformas litúrgicas estão no centro da crise atual. Parte do problema é o lugar marginal que a teologia litúrgica ocupa, comparada a outros campos, na academia católica, nos currículos das faculdades e nos congressos anuais de teólogos profissionais.
No início dos anos 2000, os católicos progressistas diziam que a crise na recepção do Concílio era culpa de João Paulo II e de Bento XVI. Isso podia ser verdade na época, mas, neste ponto, eles sozinhos não podem ser culpados.
Embora esteja claro agora quem está atacando o Vaticano II, não está claro quem o está defendendo, ou “qual” Vaticano II deve ser defendido. O ensino do Concílio já foi a vanguarda – o futuro do catolicismo. Acredito que isso ainda seja verdade para o catolicismo global, mas não tenho tanta certeza em relação à América do Norte.
Houve uma “interrupção” não apenas na tradição acadêmica de examinar o Vaticano II, mas também na nossa consciência eclesial. O catolicismo do Vaticano II ficou adormecido, enquanto as vozes anti-Vaticano II e reducionistas passaram a ser as mais expressivas na hierarquia.
Em vez de vanguarda, o Vaticano II se tornou algo como uma posição de retaguarda a ser defendida tanto dos tradicionalistas quanto dos progressistas radicais – não apenas em pontos particularmente sensíveis (por exemplo, a apostolicidade da Igreja e o papel dos bispos, o papel das mulheres, gênero e sexualidade), mas também no Vaticano II como um exemplo da tradição em suas dimensões dinâmicas e normativas.
O Vaticano II precisa de uma interpretação que fale aos destinatários dessa tradição hoje. Não podemos pedir que o Papa Francisco faça isso sozinho, enquanto deixamos que os seus opositores trabalhem agressivamente para revogá-lo. Simplesmente opor-se ou reagir aos tradicionalistas de direita não é uma defesa; simplesmente não funcionará.
Em vez disso, é hora de retomar o significado teológico dos documentos do Vaticano II e o significado magisterial do evento conciliar. A Igreja Católica é chamada a começar de novo, especialmente nos Estados Unidos – nos seminários, nas paróquias, na academia –, a empreender um processo de recepção da teologia do Vaticano II que deixe de lado as rachaduras geracionais e preencha as lacunas no ensino conciliar.
Podemos fazer isso construindo com base na tradição entendida dinamicamente, em oposição à “tradição” que enfatiza o contraste, o conflito e a conquista.