12 Agosto 2021
!Reduzir a dialética das forças culturais e teológicas no catolicismo contemporâneo a “frequentadores de missa em latim e ‘protestantizadores’ alemães” é uma caricatura que não era verdadeira nem sequer nos tempos do Vaticano II".
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador da Igreja italiano e professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por Religion Dispatches, 10-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em um recente artigo publicado no New York Times, o colega católico Ross Douthat criticou uma das decisões mais importantes do Papa Francisco: o motu proprio – ou ordem – de 16 de julho que impõe restrições à missa em latim preferida por muitos católicos de direita, revertendo assim a ordem do Papa Bento XVI de 2007.
Douthat é o mais proeminente crítico intelectual estadunidense do pontificado de Francisco, mas ele certamente não é o único a criticar as novas restrições. Mesmo assim, o argumento de Douthat merece uma resposta, porque revela uma miopia cultural particular e singular do conservadorismo católico estadunidense.
Douthat argumenta que o catolicismo se tornou “ingovernável” devido à oscilação do pêndulo entre papas de convicções políticas marcadamente diferentes desde o Vaticano II. Douthat propõe uma comparação interessante entre a história política moderna do hemisfério ocidental e os últimos 60 anos da Igreja Católica.
Ele reformula o papado moderno como a liderança política após o fim do Ancien Régime: João Paulo II como Napoleão, Bento XVI como a Restauração, e Francisco como “a revolução de 1848 da Igreja Católica”. Essa é uma narrativa fascinante, que também acaba sendo profundamente inadequada, falsa e historicamente infundada, pelo menos de duas maneiras.
A primeira é a interpretação das mudanças do Vaticano II para o período pós-Vaticano II. Douthat não declara as profundas raízes e consequências do seu modo de representar o catolicismo contemporâneo pós-Vaticano II. A principal suposição de Douthat, declarada ainda no início do artigo, é que “a Igreja, desde os anos 1960, tem revivido a experiência da França após 1789, com o arco de revolução e contrarrevolução encarnado em cada papa sucessivo”.
Esse tipo de comparação é muito revelador, porque repete quase literalmente a interpretação do Vaticano II por parte de Marcel Lefebvre.
Lefebvre foi um arcebispo francês que serviu na África ocidental colonial. Durante o Vaticano II, ele foi um dos líderes de uma minoria que se opôs profundamente às reformas. Depois do Vaticano II, ele deu início a um grupo cismático, a Fraternidade São Pio X (às vezes chamada de FSSPX). A ordenação ilegal de bispos por parte do seu grupo lhe rendeu a excomunhão em 1988, e ainda hoje a Fraternidade São Pio X é o grupo anti-Vaticano II mais relevante.
Em sua “Carta aberta aos católicos confusos” (1986), Lefebvre descreveu uma cadeia de eventos desde o Iluminismo até o Vaticano II: “O paralelo que eu fiz entre a crise na Igreja e a Revolução Francesa não é simplesmente metafórico. A influência dos philosophes do século XVIII e da convulsão que eles produziram no mundo continuou até os nossos dias. Aqueles que injetaram esse veneno, eles mesmos, admitem isso”.
No século XXI, o catolicismo estadunidense substituiu o catolicismo francês como o viveiro do tradicionalismo teológico. Portanto, faz todo o sentido que Douthat modele a sua interpretação da Igreja Católica segundo a história francesa, da Revolução de 1789 até Napoleão e assim por diante.
Mas esse não é o único paralelo entre a interpretação de Lefebvre e de Douthat sobre o Vaticano II e a reforma litúrgica recentemente defendida pelo Papa Francisco.
A rejeição da nova liturgia e a defesa da “missa de todos os tempos versus a missa do nosso tempo” é o ponto de divergência mais conhecido entre Lefebvre e seu grupo e os partidários do Vaticano II. Lefebvre levou a sério a forte relação entre a constituição litúrgica – isto é, as regulamentações sobre a missa em latim – e o Vaticano II como um todo, vendo-o como o primeiro passo irrevogável para a implementação plena das reformas do Vaticano II. Mas a reforma litúrgica foi apenas um elemento no desafio muito mais amplo de Lefebvre à teologia do Vaticano II.
Pode-se dizer exatamente o mesmo sobre Douthat e esse tipo de cultura católica neotradicionalista nos Estados Unidos. A rejeição da reforma litúrgica do Vaticano II é uma forma – senão “a” forma – de rejeitar as reformas do Vaticano II em uma ampla gama de questões, começando por uma certa compreensão da tradição e incluindo a rejeição do ecumenismo, da liberdade religiosa (também para os não católicos e os não cristãos) e do diálogo inter-religioso.
O segundo problema com a narrativa de Douthat é que ele está tentando espremer a complexa realidade da Igreja Católica em uma narrativa pré-definida – branca, centrada nos Estados Unidos e politicamente conservadora. Douthat escreve:
“Nas divisões da Igreja e na pressão rumo aos extremos tradicionalista e progressista, tanto os frequentadores da missa em latim quanto os ‘protestantizadores’ alemães reconhecem o fato do declínio católico. Ambos acreditam que a visão do outro dividiria a Igreja a fim de salvá-la. Ambos têm fraquezas e tipos de força muito diferentes. O resultado da sua luta está – como os bons católicos sabem – predestinado de alguma forma.”
Isso pode estar certo sobre as narrativas conflitantes a respeito do fato do declínio católico estadunidense. Esse mundo católico está em sério declínio, apesar dos patéticos esforços dos restauracionistas para fingir que ainda estamos nos anos 1950, e apesar das ilusões dos liberais católicos estadunidenses da velha guarda que ainda não descobriram por que seus filhos e estudantes não compartilham as suas preocupações com a Igreja.
Mas reduzir a dialética das forças culturais e teológicas no catolicismo contemporâneo a “frequentadores de missa em latim e ‘protestantizadores’ alemães” é uma caricatura que não era verdadeira nem sequer nos tempos do Vaticano II.
Um pensador conservador como Douthat deveria saber que o movimento que preparou a teologia da reforma litúrgica no Vaticano II nos anos 1920 e 1930 tinha claras características de um catolicismo conservador, antiliberal e até mesmo nacionalista – especialmente na Alemanha. O movimento que levou à reforma da missa no Vaticano II partiu de uma redescoberta dos Padres da Igreja dos primeiros séculos, mas também de uma teologia católica antimoderna (por exemplo, Romano Guardini, um dos pensadores mais importantes para Jorge Mario Bergoglio, também conhecido como Papa Francisco).
Quem poderia prever que intuições litúrgicas autenticamente “conservadoras” poderiam desencadear o estilo de liturgia antibarroca e minimalista que acabou dominando os anos 1970 em muitos lugares?
Mas, deixando de lado essas minúcias histórico-teológicas por um momento, Douthat está chocantemente negligenciando o desenvolvimento mais massivo no catolicismo hoje: ou seja, a sua globalização. A grande questão para o futuro do catolicismo não está nas mãos dos “frequentadores da missa em latim e dos ‘protestantizadores’ alemães”, mas dos católicos na América Latina, na Ásia e especialmente na África.
Douthat também deveria saber que a globalização do catolicismo também está ocorrendo no Ocidente: o catolicismo estadunidense não é mais dominado pelas preocupações dos católicos brancos, e o mesmo em breve terá de ser dito sobre o catolicismo europeu.
Essas são forças históricas massivas que nenhum papa – nem mesmo um papa à la Napoleão – pode impedir. É um desenvolvimento que complica enormemente uma certa narrativa da interpretação liberal de que o Vaticano II está moldando naturalmente o futuro da Igreja. Mas também deveria dizer algo ao sentimento revanchista contra o Vaticano II, que recentemente encontrou na política estadunidense de direita uma nova fonte de munição.
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Críticas à restrição da missa em latim são a-históricas e desgastadas. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU