21 Julho 2021
"Enquanto Summorum Pontificum falava do Missal como 'expressão ordinária' da lex orandi, o Papa Francisco foi explícito em considerar a liturgia em todo o seu complexo: 'os livros litúrgicos' promulgados pelos seus predecessores Paulo VI e João Paulo II são a 'única expressão' da lex orandi. Embora se possa discutir que a Liturgia não se resume ao programa ritual (= livros litúrgicos), mas é viva enquanto celebrada, estes livros 'custodiam' a Tradição que deverá tornar-se carne no corpo da assembleia reunida", escreve Pe. Márcio Pimentel, presbítero da Arquidiocese de Belo-Horizonte e membro da Celebra Rede de Animação Litúrgica, e doutorando em liturgia no Istituto de Liturgia Pastorale “Santa Giustina” em Pádua.
Nem bem o Papa Francisco decretou com o Motu Proprio Traditionis Custodes o fim do que seria a “forma extraordinária” do único rito romano – nos termos da ab-rogada Summorum Pontificum – e as glosas que se pretendem intérpretes da letra do Pontífice são publicadas aqui e ali prometendo confundir os fiéis. E, pior, diminuir o impacto de uma decisão pontifícia tão importante para a vida litúrgico-pastoral do povo de Deus na Igreja católica de rito romano. E, pior ainda, quando estes comentários são apresentados em sites oficiais da Igreja Católica. Não citarei qual site e qual artigo para não promover a confusão, uma vez que as observações que farei não dependem do mesmo.
O primeiro artigo do Motu Proprio é claríssimo ao afirmar que “a única expressão da lex orandi do Rito Romano” coincidem com os livros litúrgicos da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. No contexto, “única expressão” não leva à considerar que se trata de “única forma”? Talvez, para esclarecer seja oportuno recordarmos que Summorum Pontificum em seu primeiro artigo rezava: “O Missal Romano promulgado por Paulo VI é a expressão ordinária da lex orandi.” Note-se que entre os dois primeiros artigos há evidentes diferenças e até oposição. Para o Motu Proprio atual a “única expressão” da lex orandi do rito romano são os livros promulgados a mando do Concílio, fruto da laboriosa reforma litúrgica da Igreja latina. Para o Motu Proprio revogado, o “Missal” reformado e promulgado por Paulo VI é “expressão ordinária” da lex orandi e, portanto, não é a “única” porque haveria uma outra expressão designada – inapropriadamente – forma extraordinária. Ora, se o Papa Francisco quisesse dizer exatamente a mesma coisa, ou seja, que perduram duas formas do mesmo rito e que seu Motu Proprio apenas altera o “uso” e a sua “disciplina”, porque diria taxativamente “única expressão da lex orandi” e não “expressão ordinária”, sendo que “expressão” e “forma”, palavras do mesmo campo semântico, são tomadas em ambos os documentos se não como sinônimos, como termos afins? Não tem qualquer sentido a insistência no fato de haver duas formas de um único rito a partir da letra – e não só das intenções – do Pontífice, afinal, o sintagma “forma extraordinária” não comparece no Motu Proprio e na Carta aos bispos que acompanha o documento é empregada apenas uma vez como citação de Summorum Pontificum.
Enquanto Summorum Pontificum falava do Missal como “expressão ordinária” da lex orandi, o Papa Francisco foi explícito em considerar a liturgia em todo o seu complexo: “os livros litúrgicos” promulgados pelos seus predecessores Paulo VI e João Paulo II são a “única expressão” da lex orandi. Embora se possa discutir que a Liturgia não se resume ao programa ritual (= livros litúrgicos), mas é viva enquanto celebrada, estes livros “custodiam” a Tradição que deverá tornar-se carne no corpo da assembleia reunida. O Missal Romano anterior à reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, enquanto livro litúrgico em si mesmo, não é denominado “forma extraordinária” pelo Papa Francisco porque não é mais “expressão” da lex orandi vigente na Igreja católica latina. É possível celebrar conforme aquele programa ritual apenas nas condições de indulto. Isso significa tão somente “fazer uso” de um livro litúrgico em condições bem determinadas, um programa ritual que foi superado e substituído por outro infinitamente mais rico e complexo. O Missal de Pio V “está” no Missal de Paulo VI de um modo novo, adaptado à efetiva participação dos fiéis per ritos et preces no único mistério de Cristo. Foi absorvido no processo normal e reincidente de re-forma dos livros litúrgicos que não é nova e não será a última na Igreja. O conceito de “forma” com o qual Francisco se refere à liturgia pré-conciliar na carta aos bispos está também associada a este fato. Ele recorda que, à época da reforma litúrgica, a partir das disposições de Sacrosanctum Concilium, quem quisesse celebrar com a “forma litúrgica anterior à reforma não terá dificuldades em encontrá-la no Missal Romano reformado”. Então, neste modo de compreender as coisas, não há lugar para “duas formas”, mesmo que uma fosse considerada ordinária e a outra extraordinária porque exigiria simultaneidade.
O título do Motu Proprio é também ineludível: “Sobre o uso da liturgia romana anterior à reforma de 1970”. Se o Papa Francisco quisesse ver mantida a noção de forma extraordinária não teria escrito expressamente: “Sobre o uso da forma extraordinária do rito romano”? Em um documento que tem valor jurídico como o Motu Proprio em questão, não se prezaria pela limpidez conceitual e dispositiva, como aliás ocorre? Seria apenas uma questão estilística? Um modo educado (leia-se diplomático) para não desiludir os que são devotos da liturgia pré-conciliar? Bom, se fosse assim não funcionou muito bem, haja vista as reações destemperadas nos sites tradicionalistas do exterior (no Brasil ainda não li nada a respeito). Não penso que seja nem lícito e tampouco lógico querer “salvar” a anomalia de duas formas do mesmo rito sobretudo quando entre as duas há uma relação de reforma como deixa claro o Motu Proprio de Francisco.
Para concluir e “amarrar” bem os fios de nosso discurso, leiamos o artigo 8 de Traditionis Custodes: “As normas, instruções, concessões e costumes precedentes, que não resultem em conformidade com tudo quando fora disposto pelo presente Motu Proprio, são ab-rogadas.” A linguagem e os conceitos contidos em Summorum Pontificum que visam justificar teoreticamente o “uso” de um Missal que teria sido ab-rogado (Paulo VI se pronunciou a respeito, na época em que o pressionaram para que se liberasse o uso do Missal de Pio V) não estariam igualmente abolidos? Falar em forma-extraordinária não seria ainda insistir na coexistência de duas expressões da lex orandi quando há apenas “uma expressão” desta? Francisco fala de uma forma litúrgica “antecedente” à reforma conciliar e que esta pode ser empregada em casos estritamente ponderados pelos bispos locais e a Santa Sé. Ora, na sucessão temporal, antes e depois não há lugar para o binômio forma ordinária-forma extraordinária que dão a entender simultaneidade. Neste ponto, temo que além de ilegítimo e ilógico seja também ilícito falar ainda de forma extraordinária para referir-se ao Missal de Pio V na edição de 1962. Este conceito está atrelado ao Motu Summorum Pontificum, documento que já não possui qualquer validade e ficou – como o Missal de Trento – no passado.
Em tempo: Francisco deixa bem claro que as dioceses devem dispor o possível uso do Missal de Pio V guiadas por dois princípios: dar tempo àqueles que estão ainda radicados na forma pré-conciliar para que possam retornar única forma litúrgica vigente e evitar que sejam erigidas novas paróquias pessoais para favorecer a excentricidade de presbíteros e pequenos grupos de fiéis. Mais um argumento a favor das ponderações do presente artigo, já que se espera que a prática ritual anacrônica desapareça. Portanto, senhores e senhoras hermeneutas do Motu Proprio Traditionis Custodes, “muito ajuda quem pouco atrapalha”.
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“Muito ajuda, quem pouco atrapalha”. Sobre o uso do conceito “forma extraordinária” para o Missal Romano de 1962. Artigo de Márcio Pimentel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU