11 Agosto 2021
Todos os pais do Concílio eram filhos da Igreja da primeira metade do século. Isso não é verdade para Francisco, que é o primeiro papa "filho do Concílio". Isso o torna livre para viver os seus ensinamentos e as suas formas com uma imediaticidade diferente, desenvolta, direta, quase despreocupada.
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 06-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Assim como todas as realidades institucionais, também as eclesiais se situam no desenvolvimento orgânico “de geração em geração”. Esse aspecto da tradição, muitas vezes negligenciado, também pode iluminar de forma não secundária os discursos que, nos últimos dias, estão sendo tecidos sobre o motu proprio Traditionis custodes, muitas vezes esquecendo as razões que estão na origem dos dois documentos “símbolos” dessa querela.
Por isso, creio ser útil considerar a passagem de Bento XVI a Francisco como a passagem entre os papas pais do Concílio e os papas filhos do Concílio. Tento esclarecer essa perspectiva e aplicá-la à questão litúrgica.
Os últimos cinco papas foram “padres conciliares”. Esse não é um fato evidente. Porque marcou de modo irreversível a relação deles com o Concílio, como a relação com um “filho”. Com exceção de João XXIII, que só viu a concepção e a primeira gestação do filho, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II e Bento XVI acompanharam o filho no seu caminho de 50 anos.
Nessa relação de geração, eles tiveram toda a alegria e todo o constrangimento dos pais em relação aos seus filhos. Tendo determinado os seus textos, as suas lógicas, as suas aberturas e as suas novidades, sentiram-se responsáveis por eles. E também tiveram medo deles. Essa relação “responsável” induziu, em alguns casos, atos de “paternalismo”: os pais substituíram o filho, silenciaram-no, não confiaram nele ou o subestimaram. Chegando, às vezes, a uma relação marcada pela culpa, pela angústia e quase pelo desconhecimento.
O último desses papas, Bento XVI, embora não tendo sido bispo conciliar, foi um perito bastante influente que determinou profundamente algumas decisões tomadas pela cúpula. Mas, como padre e teólogo, ele também, nascido em 1927 e ordenado em 1950, era produto de uma Igreja profundamente diferente. Todos os Padres do Concílio eram filhos da Igreja da primeira metade do século. Isso não vale para Francisco, que é o primeiro papa “filho do Concílio”.
Isso significa diversas coisas: mesmo sendo apenas nove anos mais novo do que o seu antecessor, ele foi ordenado quase 20 anos depois dele, em 1969, e foi formado com os textos, os ritos e as formas da Igreja conciliar.
Por isso, Francisco é filho do Concílio: não só porque cresceu na “forma ecclesiae” que surgiu a partir do Concílio, mas sobretudo porque não tem e não deve sentir nenhuma responsabilidade para com o Concílio. Ele não o determinou, como os seus antecessores, mas foi determinado por ele. Como ocorre com os filhos. Isso o torna livre para viver os seus ensinamentos e as suas formas com uma imediaticidade diferente, desenvolta, direta, quase despreocupada. Como ocorre com os filhos, que não têm diretamente a responsabilidade dos pais.
A tradição conhece passagens decisivas quando as gerações reelaboram o saber dos pais. Essa é uma condição insuperável da tradição, também da tradição litúrgica. Que floresce graças também a essas passagens de gerações.
O que aconteceu com o Summorum pontificum? Em certo ponto, em 2007, um papa pai do Concílio, o último, pensou que poderia “remediar” um filho que quase não reconhecia mais, colocando-o quase “sob tutela”. Ou seja, propondo novamente o “rito pai” como vigente, ao lado do “rito filho”.
Mas essa “tutela” inventada in extremis não permite nem que o rito tridentino “envelheça com dignidade”, nem que o rito do Vaticano II ganhe experiência com toda a nova responsabilidade que necessariamente devia assumir.
Francisco revogou o Summorum pontificum não para “desmentir” Bento XVI, mas para assumir a responsabilidade de filho. O rito filho, assim, assume plenamente e com exclusividade a herança do pai. Deve caminhar como “única forma do rito romano”, assumindo sobre si não só a nova compreensibilidade, a participação ativa, a nova ministerialidade, mas também o mistério, a indizibilidade de Deus, o poder do silêncio e o poder do tempo.
Na sucessão entre Summorum pontificum e Traditionis custodes, pode-se ver o último gesto do último dos “papas pais do Concílio” e o primeiro gesto dos “papas filhos do Concílio”.
Um Concílio “sob tutela” foi a tentação de uma longa fase, que inicia com alguns aspectos do pontificado de Paulo VI, outros de João Paulo II e, enfim, com muitas iniciativas de Bento XVI (já presente como prefeito de autoridade no pontificado anterior).
Essa sequência de “redimensionamentos litúrgicos” do Concílio – a contestação da “assembleia celebrante”, da autonomia das línguas faladas em relação ao latim, a invenção da “forma extraordinária” como sobrevivência indene daquilo que o Concílio quis reformar – falam não só de liturgia.
O paternalismo do Vetus Ordo em relação ao Novus Ordo é a forma como o último papa “pai do Concílio” pensou o filho com aquela desconfiança e com aquele desconforto que todos ouvimos sem véus na noite de 11 de outubro de 2012, da janela dos apartamentos papais, na infeliz reevocação do “discurso da lua”, que deu voz à triste analogia entre “Concílio” e “pecado original”.
Francisco pertence a outra geração. Por isso, não pode sequer conceber um paternalismo ritual do Vetus Ordo em relação ao Novus Ordo. É um mundo que não lhe pertence e que ele não entende. Como ocorre com os filhos em relação aos pais. Ele recebeu da Igreja pensada pelo Concílio Vaticano II a única forma de rito romano para fazer experiência do mistério.
Uma história de pais e filhos explica a sucessão entre documentos tão diferentes, nos quais se expressam não principalmente questões ideológicas ou estratégias pastorais, mas condições geracionais e passagens entre épocas.
A tradição floresce se os pais souberem confiar a sua herança aos filhos, com toda a diferença que isso envolve para a experiência e para a linguagem eclesial. Não ter medo de que os filhos cresçam é o único remédio para aquelas formas de paternalismo que projetam sobre os filhos os medos dos pais, impedindo-os de crescer e de renovar a tradição.
A irreversibilidade do Concílio Vaticano II passa por essa relação cavalheiresca entre pais e filhos.
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O Concílio “sob tutela”? O paternalismo ritual como sintoma. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU