16 Junho 2021
"A Igreja poderá afirmar ainda mais o seu justo ideal de misericórdia se souber assumir também os princípios modernos de certeza do direito e da pena, como recurso próprio, em diálogo com outras instituições".
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 13-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A história da administração da justiça nos Estados modernos, que nos últimos três séculos gradualmente se dotou de instrumentos poderosos como o “código de direito penal” e o “código de processo penal”, tem um impacto sobre a Igreja de um modo bastante complexo.
Acima de tudo, pelo fato de a Igreja manter, ao menos em parte, a estrutura anterior de administração da justiça, ou seja, um sistema que não elabora a sua própria tarefa de acordo com algumas das evidências elaboradas pelos “Estados liberais”, a saber:
- separação dos poderes;
- certeza da pena;
- juiz natural pré-constituído;
- proteção de terceiros e das vítimas.
Para refletir sobre esse tema, gostaria de me referir a um famoso livro de Paolo Prodi, “Una storia della giustizia. Dal pluralismo dei fori al moderno dualismo tra coscienza e diritto” [Uma história da justiça. Do pluralismo dos foros ao moderno dualismo entre consciência e direito, em tradução livre] (Ed. Il Mulino, 2000). Trata-se de um instrumento precioso, capaz de nos mostrar o coração de um desafio, que a Igreja deve assumir em sua totalidade, sem se esconder atrás de categorias que, ao longo do tempo, se tornaram parciais, distorcidas ou até contraditórias.
A ocasião para desenvolver este raciocínio foi a recente apresentação de uma suposta “reforma” do Livro VI do Código de Direito Canônico, no qual, de forma bastante reduzida e marginal, algumas novidades, no entanto, deixam de pé uma estrutura do “direito penal canônico” que continua funcionando segundo o princípio da “pluralidade dos foros”, com grande diferença em relação à “unicidade do foro” que se impôs com a modernidade tardia no Estado liberal.
Podemos resumir brevemente a questão deste modo: uma longa tradição havia administrado a justiça com uma multiplicação de lugares, sujeitos e níveis de julgamento. A evolução moderna polarizou a forma da administração com uma grande simplificação: um único foro (um único juiz natural) ao qual corresponde a consciência do cidadão.
É evidente que essa operação é carregada de consequências, de caráter funcional, simbólico, conceitual, processual. Somente nesse novo estilo, nascem conceitos-chave da consciência contemporânea, como os de “certeza do direito” e “certeza da pena”.
Para entender bem em que consiste essa passagem, acredito que é útil formulá-la em termos “antigos”. Ou seja, com a imagem dos “diversos foros” que concorrem, paralelamente, à “administração da justiça”.
É sabido que a tradição eclesial, mesmo depois da codificação de 1917, conserva um “duplo foro”, ao qual correspondem dois “escritórios centrais”: ao “foro interno” corresponde a Penitenciaria, enquanto ao “foro externo” corresponde o Tribunal da Congregação para a Doutrina da Fé.
O mesmo comportamento delituoso pode recair em um ou em outro, ou em ambas as competências desses foros. Deve-se acrescentar que ambos os foros, por sua vez, têm uma articulação de competências maior, no que se refere a sujeitos diferenciados. Em todo caso, é preciso recordar, e é um traço decisivo para a nossa questão, que há uma grande “sobreposição de competências” entre foro interno e foro externo do ponto de vista da matéria: a relação entre pecado e delito é objeto de discernimento altamente discricional.
Isso introduz uma inevitável “incerteza” tanto do direito quanto da pena. Essa incerteza é funcional ao sistema eclesiástico, mas entra em crise quando se cria uma sobreposição ou uma concorrência entre justiça eclesiástica e justiça estatal.
Tentarei agora descrever o que acontece quando o mesmo comportamento é observado segundo a lógica eclesiástica ou segundo a lógica do direito estatal. Aos dois perfis eclesiásticos, de algum modo, se sobrepõem os dois registros estatais:
- foro interno: é a experiência que tem no “sacramento da penitência” o seu lugar próprio e que chega à “absolvição” do pecador, salvo em casos raros;
- foro externo: é a experiência com um “tribunal eclesiástico” que impõe uma pena (excomunhão, interdição, censura...);
- foro íntimo: é a consciência em sua situação imediatamente perante a lei e Deus;
- foro exterior: o tribunal do Estado, que condena a uma pena temporal carcerária ou alternativa.
A representação que aqui oferecemos é, na realidade, uma construção que não corresponde a experiências concretas. Por si só, no âmbito da Igreja, gostaríamos de nos limitar às duas primeiras dimensões, enquanto fora da Igreja poderíamos nos limitar às duas segundas.
É evidente, no entanto, que a primeira visão é muito detalhada, mas carece de certeza do direito e da pena, enquanto a segunda garante um alto grau de certeza, mas conhece apenas um foro, que está imediatamente diante da consciência do sujeito.
Acima de tudo, o fato de que cada ordenamento jurídico tende a ignorar a “forma mentis” do outro implica um esforço adicional para compor os conflitos e para acender as reações, que se tornam inevitavelmente exasperadas.
Os ordenamentos, de algum modo, criam expectativas que, depois, não sabem satisfazer. Não há verdadeira pacificação se as vítimas não são ouvidas e as penas não são certas. Mas escutar as vítimas e assegurar as penas não realiza ainda uma pacificação autêntica e eficaz.
Essa consideração nos permite identificar duas questões diferentes, que poderiam ser aqui relacionadas de forma útil:
a) Por um lado, a malsucedida reforma do Livro VI – porque é disso que se trata, de uma reforma aparente – não enfrentou a dupla questão central: se não existe “certeza da pena” no sistema, o caso do delito de “abuso” também obtém uma solução que não protege nem o ordenamento nem as vítimas. Sem uma lógica certa do “foro exterior”, que a Igreja possa assumir em uma comunidade jurídica mais ampla e, portanto, em diálogo com outras instituições, a justiça não poderá ser realizada. Nesse caso, a Igreja deveria aprender com a lógica estatal para “gerar justiça” no corpo eclesial.
b) Por outro lado, a forma do “foro exterior”, que garante a certeza do direito e a certeza da pena, não garante, por sua vez, que “a justiça seja feita” em sentido substancial. Tanto no sentido da “reabilitação do réu” quanto no sentido da “reparação do mal cometido”. A atual redescoberta da “justiça restaurativa” como alternativa à pura formalidade de um “foro exterior” que impõe penas carcerárias, é um caminho “penitencial” e de “mediação” no qual a tradição eclesial pode ser útil à tradição estatal.
De fato, uma contaminação dos sistemas é necessária. A “pluralidade dos foros”, à qual Paolo Prodi nos chamou a atenção, não é apenas uma “velha ideia medieval”, mas uma reivindicação de justiça que não se deixa formalizar demais.
Assim, à irrenunciabilidade da “certeza da pena” e da “proteção de terceiros”, é preciso unir a recuperação de formas de “mediação” e de “reparação” diferentes da mera “exterioridade da reclusão” como forma ordinária da pena.
A Igreja poderá afirmar ainda mais o seu justo ideal de misericórdia se souber assumir também os princípios modernos de certeza do direito e da pena, como recurso próprio, em diálogo com outras instituições. O Estado, de sua parte, poderá proteger melhor as vítimas e as exigências formais de justiça quanto mais caminhar também na direção da verdadeira reabilitação do réu e da eficaz pacificação da comunidade, ferida pelo crime e não sanada por remédios puramente exteriores, embora certos.
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A teoria dos “foros” e a justiça penal. A diferença entre punir e gerar paz. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU