08 Junho 2021
Sem uma profunda revisão das categorias de fundo do direito canônico, o novo paradigma conciliar permanecerá no nível do léxico, mas não se tornará cânone. O ar viciado de uma sistemática jurídica inadequada não permite que a reforma da Igreja se torne uma forma de vida.
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 07-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na manhã dessa segunda-feira, em um post ao qual remeto aqui [em italiano], dedicado à “reforma” do Livro VI do Código de Direito Canônico, Umberto del Giudice pontualizou uma série de questões que merecem ser retomadas, uma a uma, porque dizem respeito não apenas ao tema da lei penal canônica, mas também a uma série de evidências teológicas e eclesiais de primeira importância.
Retomo os pontos fundamentais do seu discurso e tento aprofundá-los no plano sistemático:
A primeira observação diz respeito a uma dupla premissa necessária para compreender o novo texto e as suas razões. Acima de tudo, o processo recente, das últimas décadas, que já pouco depois do novo código de 1983 exigia uma “sistematização” de alguns capítulos e títulos, que eram problemáticos. Por isso, uma “sinopse” dos 89 cânones que compõem o Livro VI pode ser iluminadora sobre as soluções adotadas e sobre os critérios sistemáticos utilizados para a adaptação.
No entanto, e em segundo lugar, a avaliação do texto de 2021 não pode ter como “critério” apenas o texto de 1983, mas também o de 1917 e até a tradição anterior. Tal como aconteceu com a Amoris laetitia, para apreciar o seu texto, não se pode fazer referência apenas ao seu homólogo anterior (naquele caso, a Familiaris consortio), mas também a todo o magistério tardo-moderno (a partir de meados do século XIX), isso também é necessário para a tradição penal, em que alguns “reflexos condicionados” da tradição do século XIX ainda estão arraigados e são eficazes. Em primeiro lugar, a obsessão pela “autonomia”. Como veremos, é precisamente essa autonomia que bloqueia toda verdadeira reforma a serviço dos “fatos novos”.
Por outro lado, como tentei esclarecer em um post anterior [disponível em italiano aqui], uma das evidências do “antimodernismo” que inspirou o Código de 1917 é a radical oposição à convicção “liberal” com que se afirma, segundo a formulação do Sílabo de 1864, que “o direito consiste no fato material; todos os deveres dos homens são um nome vão, e todos os fatos humanos têm força de direito” (n. 59).
Em oposição a essa leitura exasperada e caricatural do liberalismo, a irrelevância dos “fatos humanos” se torna uma das causas da nova cegueira a propósito dos abusos. E não é possível sair disso se não for modificado o princípio de autonomia do direito em relação aos fatos – que corresponde historicamente à autonomia também “penal” da Igreja em relação ao Estado. Princípio certamente não infundado, mas que, em determinados casos, quando exasperado, torna-se um limite grave, para não dizer motivo de escândalo.
Um segundo aspecto, que a leitura sinótica oferecida por Umberto Del Giudice nos permite compreender, é que a revisitação dos textos do cânone 1.311 ao cânone 1.399 introduziu novas terminologias quase apenas em nível de “títulos”, mas incidiu pouco naquilo que, para o direito penal, é decisivo: sanções e procedimentos de garantia.
Certamente, se o abuso cometido por um clérigo, ou por um religioso ou por um leigo é compreendido agora na categoria dos “delitos contra a vida, a dignidade e a liberdade pessoal”, e não na categoria dos “delitos contra obrigações especiais”, isso tem uma relevância objetiva.
Mas, se o cânone é dominado por uma compreensão que poderíamos chamar de “pré-moderna”, que vê a sanção como que orientada a três fins, que Del Giudice lembra eficazmente: “Assegurar a unidade da Igreja, reparar os escândalos e corrigir o ‘réu’”, então é evidente que, em tal sistema, a voz da vítima, os seus direitos e as suas legítimas expectativas são considerados apenas “eventualmente”. Não é suficiente uma transcrição, embora importante, do delito em uma “região sistemática diferente”, se a mens com a qual ele é perseguido permanece ligada a uma perspectiva puramente interna, poderíamos dizer até “autorreferencial”: se o foro “externo” permanece puramente intraeclesial, o terceiro como “vítima” não tem voz real na questão.
E aqui, como é evidente, não se trata simplesmente de uma questão de direito penal, mas de direito “constitucional”. Uma instituição que não conhece uma real “divisão dos poderes” entra em crise precisamente quando precisaria dela desesperadamente.
Permanecendo nesse nível, não escapou a alguns observadores – especialmente às mulheres – que a mudança de “título” não corresponde à mudança de linguagem dos cânones. Para entender o problema, devemos fazer uma análise mais precisa dessa mudança.
A) No código de 1983, no fim do ditado normativo, há duas categorias de delitos:
i) Delitos contra as obrigações especiais (1.392-1.396)
Aqui, também se encontravam os delitos de um “clérigo concubinário”, ou de outro clérigo que cometesse ações escandalosas contra o sexto mandamento. Também estão incluídos os casos de violência, de ameaças e da prática do fato “com” um menor de 16 anos.
ii) Delitos contra a vida e a liberdade do homem (1.397-1.398)
Compreendem o caso de homicídio, roubo, violência, fraude, lesão (1.397) e aborto (1.398).
B) No novo texto de 2021, os títulos foram ligeiramente modificados, mas os conteúdos foram redistribuídos:
i) Delitos contra obrigações especiais (1.392-1.396)
Dessa seção, além de um acréscimo inicial sobre o ilegítimo abandono do ministério, foram eliminadas apenas as referências aos menores. Quanto ao restante, a estrutura e a articulação permanecem as mesmas.
ii) Delitos contra a vida, a dignidade e a liberdade do homem (1.397-1.398)
É aqui que ocorre a mudança maior. O título é integrado pela palavra “dignidade”: com efeito, se antes se falava apenas de homicídio, roubo, lesão e aborto, agora a divisão da matéria é diferente: o cânone 1.397 absorve todos os conteúdos da normativa anterior, enquanto o cânone 1.398 é integralmente novo, mas em um sentido bastante limitado. De fato, fez-se, em parte, um “copia e cola” do velho cânone 1.395 da seção anterior. Certamente, não faltam importantes conteúdos novos (que tematizam a indução à pornografia ou a conservação e transmissão de imagens pornográficas e a extensão da normativa também aos religiosos e aos leigos), mas a formulação do “delito” é surpreendentemente contraditória com o título. De fato, tendo conservado a fórmula do “delito contra o sexto preceito do Decálogo”, não se considera em primeiro lugar a lesão da dignidade da vítima menor, mas sim a sua coparticipação – condicional – em um ato objetivamente desordenado e ilícito. O modo de pensar não “vê” a questão mais candente, porque ainda usa os óculos velhos: a violação do sexto preceito é maior à lesão da dignidade do menor.
Essa é uma pequena demonstração de como o modo de pensar o ato sexual e as categorias de referência tradicionais sobre os “vícios da castidade” não estão à altura do problema e os abordam de modo apenas indireto e bastante marginal.
Um terceiro ponto qualificador da questão é a interferência contínua, no ordenamento eclesial, entre foro interno e externo, ou seja, entre a “gestão espiritual/secreta” e a “gestão institucional/pública” dos pecados/crimes.
Aqui é preciso se observar dois níveis de interferência, que afetam diretamente o princípio da “certeza da pena” e dos “direitos dos acusados e das vítimas”. Em ambas as frentes, a Igreja estava e permanece desguarnecida. Seja porque a gestão dos níveis entre foro interno e externo ainda permanece amplamente discricionária; seja porque as lógicas do perdão, que para a Igreja são evidentemente qualificadoras, às vezes interferem fortemente nas exigências de justiça para com terceiros.
Se um bispo, como já aconteceu algumas vezes, no exercício das suas funções de juiz, diante de abusos cometidos por um padre, administra o seu delito simplesmente mediante a arma do afastamento e da transferência, e a correção fraterna se limita a isso, ele, ao utilizar o foro interno e em parte o foro externo, aumenta a injustiça ao invés de diminuí-la e cria indiretamente a possibilidade de novas vítimas.
A reorganização do Livro VI, colocando coisas velhas e coisas novas juntas, cria novas categorias gerais, dentro das quais, porém, ele insere coisas que são muito, muito diferentes.
O caso do delito de “tentativa de ordenação de uma mulher” – caso penal inventado entre 2001 e 2010, e que envolve uma pena superior ao abuso de menor, sendo lido como “atentado ao sacramento” – utiliza a sanção penal para criar uma espécie de bloqueio ao debate eclesial, que atinge diretamente algumas realidades diferentes, que a norma penal não distingue.
Como é possível discutir serenamente a “ordenação diaconal da mulher” – assunto que não está reservado a grupos de “carbonários”, mas para o qual foi instituída até uma comissão pontifícia – se a categoria da “ordenação da mulher” é pensada como um crime “contra os sacramentos”?
E em que medida a própria categoria de “delitos contra os sacramentos” pode realmente ser plausível? É realmente semelhante “profanar uma partícula” e “absolver sem ser padre” e “ordenar uma mulher”?
Esse título geral é uma novidade desse texto, mas parece mais coletar casos heterogêneos do que unificar uma mesma experiência. Um pequeno suplemento de reflexão sistemática teria beneficiado os redatores. Sobretudo quando se pretende usar a sanção penal de forma desproporcional: de fato, quando o ordenamento eclesial pode ler os abusos de menores ou a atribuição de responsabilidade ministerial às mulheres como crimes semelhantes, ele esquece uma das descobertas modernas mais importantes, que Cesare Beccaria expressou assim:
“Toda pena que não deriva da absoluta necessidade, diz o grande Montesquieu, é tirânica” (Beccaria, “Dos delitos e das penas”, c. 2).
Um uso tirânico do direito penal é a última coisa de que precisa uma Igreja que quer “sair” para um novo paradigma.
Em última análise, as preciosas observações que lemos em Umberto Del Giudice nos permitem considerar um último aspecto, ainda mais radical.
Não se deve esquecer, de fato, que o projeto de revisão do Código de 1917 estava nas intenções do primeiro projeto conciliar, ainda no dia 25 de janeiro de 1959, quando o Papa João XXIII disse:
“Veneráveis Irmãos e Diletos Filhos Nossos! Pronunciamos perante vós, certamente tremendo um pouco de comoção, mas ao mesmo tempo com humilde resolução de propósito, o nome e a proposta da dupla celebração: de um Sínodo Diocesano para a Urbe e de um Concílio Ecumênico para a Igreja universal. Para vós, Veneráveis Irmãos e Diletos Filhos Nossos, não são necessárias ilustrações copiosas sobre o significado histórico e jurídico dessas duas propostas. Elas conduzirão felizmente à desejada e esperada atualização do Código de Direito Canônico, que deveria acompanhar e coroar esses dois ensaios de aplicação prática dos procedimentos da disciplina eclesiástica, que o Espírito do Senhor vai nos sugerindo ao longo do caminho. A próxima promulgação do Código de Direito Oriental nos dá o prenúncio desses acontecimentos”.
À distância de tantos anos, depois da reforma de 1983, é difícil falar, para este texto de 2021, de uma reforma. Trata-se de uma reformulação e de uma integração, mas que permanece profundamente marcada por algumas características da tradição penal da Igreja que novos fatos puseram duramente à prova e que requer uma intervenção não cosmética, mas estrutural.
Precisamente por causa da mudança da relação entre a Igreja e o mundo, sancionada pelo Concílio Vaticano II, a Igreja também pode aprender com a experiência civil e dialogar mais profundamente com ela. Existem “sinais dos tempos” também no âmbito penal.
Existe uma “justiça restaurativa” em que o Estado pode aprender com a tradição eclesial: uma reflexão sobre os limites da pena carcerária e sobre a sua eficácia é algo necessário para todos. Mas há uma certeza da pena e uma proteção das vítimas em que é a Igreja quem deve aprender com o Estado, refletindo sobre os limites de uma gestão “discricionária” demais de quase todas as questões.
Sem uma profunda revisão das categorias de fundo do direito canônico, o novo paradigma conciliar permanecerá no nível do léxico, mas não se tornará cânone. É o “paradigma codificatório”, inventado em 1917, que perdeu a sua plausibilidade e eficiência, como diz lucidamente Marcello Neri no seu livro “Fuori di sé. La Chiesa nello spazio pubblico” [Fora de si. A Igreja no espaço público] (Ed. EDB, 2020, especialmente o capítulo 3, dedicado ao Código). O ar viciado de uma sistemática jurídica inadequada não permite que a reforma da Igreja se torne uma forma de vida.
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Verdadeira e falsa reforma do direito penal canônico. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU