19 Dezembro 2019
Diante de inúmeros escândalos, a justiça da Igreja e o seu funcionamento estão sendo cada vez mais questionados pela sociedade.
A reportagem é de Céline Hoyeau, publicada por La Croix, 18-12-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O direito penal canônico é adequado para responder à crise dos abusos ou seria preciso reformá-lo? A pergunta foi feita há muitos meses, abertamente pelos advogados das vítimas, nos bastidores também por juristas eclesiásticos, no momento em que a Igreja enfrenta uma crise sem precedentes na história, provocada por revelações em cascata.
Como João Paulo II no seu tempo, com a publicação dos Delicta graviora, ou seja, das normas para os delitos mais graves, e depois como Bento XVI, o Papa Francisco evitou o obstáculo de refazer completamente o código publicando o motu proprio e os seus rescritos para responder às dificuldades levantadas por esses casos. Para responder particularmente a um dos pedidos mais fortes das vítimas, removendo o sigilo pontifício que as impedia de tomar conhecimento do procedimento e até da sanção imposta ao agressor. No entanto, muitos pontos permanecem em suspenso.
Começando pelo estatuto das vítimas. Quando começou a se dedicar à causa da associação La Parole Libérée, a advogada Nadia Debbache disse ter se sentido abalada pela descoberta dos procedimentos canônicos dos quais ignorava tudo. “Protegem-se os direitos do clérigo em questão, mas quase nada está previsto para os direitos das vítimas”, deplora.
“O direito canônico não se ocupa das vítimas, a menos que se trate de um crime de solicitação, isto é, quando um padre utiliza o sacramento da penitência como lugar de solicitação de favores sexuais”, confirma a teóloga Marie-Jo Thiel, que participava no início de dezembro de um congresso organizado pela Universidade de Estrasburgo sobre “Agressões sexuais de menores por quadros religiosos”.
“Mas, no código de 1983, desapareceu até mesmo esse termo: não se fala mais de ‘crime de solicitação’ do ponto de vista da vítima, mas unicamente no caso em que um padre é acusado injustamente, portanto, quando a Igreja é que é a vítima...”
De fato, o direito canônico é herdeiro de uma velha tradição que remonta à Idade Média, uma época em que a Igreja reivindicava a própria autonomia para certos crimes – ligados à religião ou ao clero – e, nesse sentido, é um “fóssil vivo”, reconhece Olivier Échappé, magistrado que leciona direito canônico desde 1988 e que trabalhou com a Conferência dos Bispos da França sobre esses temas durante 20 anos.
“Na lógica desse sistema, a Igreja reivindicava unicamente o conhecimento das infrações sexuais cometidas pelo clero, porque, evidentemente, há um escândalo maior quando o abusador é um clérigo e quando age no âmbito da confissão.”
Mas a Igreja hoje está mais do que nunca sendo questionada pela sociedade sobre o seu funcionamento, ainda mais que a justiça civil, há cerca de 20 anos, reconhece às vítimas um espaço maior. “Os fiéis refinaram o seu conhecimento sobre os princípios jurídicos e sobre os seus direitos fundamentais”, admite o jurista eclesiástico. “Eles se dão conta da dissonância da justiça canônica... Aquilo que se fazia no passado não é mais tolerado. Eles pedem direitos, e isso é algo novo. Os bispos estão desconcertados.”
Até mesmo o papel do bispo, em particular, causa problemas. “Na Igreja, os três poderes estão unidos em uma mesma pessoa, o bispo, que é, ao mesmo tempo, pai dos seus padres e autoridade judicial obrigada a puni-los. Mas, em uma boa administração da justiça, cada um tem o seu próprio papel, os poderes estão separados. Não se pode ser juiz e parte em causa”, observa Claire Quétand Finet, advogada especializada em direito penal da família e também consultora jurídica para algumas congregações religiosas.
Outro ponto que surgiu com os casos recentes e que está ausente do radar do direito canônico é o abuso espiritual. “O bispo hoje delega à justiça civil os casos que têm uma relevância de infração penal, mas isso não exonera a Igreja de aprofundar a questão do abuso espiritual que causa sofrimentos reais”, defende a advogada.
Os próprios bispos se fazem essas perguntas. Os de Ile-de-France participaram na semana passada de uma sessão sobre o assunto. O encontro foi organizado pelas associações de vítimas, a comissão Sauvé, encarregada de jogar luz sobre os abusos na Igreja da França desde 1950 e de fazer recomendações, e também abordou essas deficiências.
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X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos
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É preciso reformar o direito penal canônico? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU