19 Junho 2021
O que mais chama a atenção de modo mais surpreendente no responsum é precisamente o fato de que, devido a uma sistemática teológica e de uma sistemática jurídica de mais de um século de idade, o texto da Congregação para a Doutrina da Fé falha no objeto da discussão. Ou seja, não consegue fazer experiência da questão e a resolve referindo-se a conceitos e a normas que a desfiguram.
A afirmação é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo. artigo publicado em Come Se Non, 16-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Visto que, na primeira análise do responsum da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a ilicitude da bênção dos casais homossexuais aparecia o “defeito sistemático” do pronunciamento, gostaria de esclarecer melhor do que estamos falando quando usamos o adjetivo “sistemático” em um discurso teológico.
Às vezes, as palavras “difíceis” servem para lançar fumaça nos olhos de quem olha e fazer barulho nos ouvidos de quem escuta. Mas, como a questão sistemática é, na minha opinião, decisiva para entender o caso concreto, tentarei explicar em que sentido o perfil sistemático merece atenção.
Comecemos pelo sal. Sim, o sal. Na cozinha, ele tem o seu lugar entre os temperos e deve ser colocado em um ponto claro, para poder ser facilmente encontrado. Mas quando usamos o sal, em que pensamos? Para que “fim” usamos o sal? Os fins são mais de um:
- dar sabor aos pratos;
- não engordar muito;
- salvaguardar a saúde cardíaca.
Um problema “sistemático” no uso do sal é como compor esses três fins, que podem ter soluções muito diferentes. O prazer à mesa, a forma atlética ou a saúde de ferro são ideais que criam, como bem se sabe, conflitos nada pequenos.
O sal entra “sistematicamente” na nossa vida, se assumirmos conscientemente todos esses “fins” e gerirmos de modo iluminado e equilibrado os conflitos entre o prazer da boca, a beleza da forma e a saúde do corpo.
O mesmo mecanismo também opera na vida cristã e na teologia. Obviamente, os sistemas com que “resolvemos conflitos” são diferentes e mudam historicamente. Estudar os grandes sistemas que a história nos ofereceu é sempre instrutivo, mesmo quando não podemos mais compartilhá-los.
Ou, melhor, gostaria de dizer que aprendemos um saber sistemático sobretudo de sistemas que não são mais os nossos. Ler com interesse o “De ecclesiasticis officiis”, de Isidoro de Sevilha, um dos primeiros “sistemas” sobre a liturgia cristã, é muito útil para entender de que modo se “sistematizavam as coisas” no século VII, com tantas luzes e tantas sombras.
O mesmo vale para o sistema com que São Tomás de Aquino organiza o saber teológico como um todo. Enquanto isso, é sempre útil recordar que São Tomás tem mais de um sistema. Na Summa Theologiae e na Summa Contra Gentiles, há organizações do material da tradição realizadas segundo lógicas muito diferentes e com fins diferenciados. Mas aqui me interessa entender, especificamente, como Tomás usa o material da tradição para resolver uma questão concreta.
Por exemplo, como Tomás considera o “sexo feminino” no campo do ministério eclesial? Tomás utiliza a referência ao “sexo feminino” como primeiro “verbete” na lista dos impedimentos à ordenação.
Para Tomás, que aqui expressa uma visão cultural e social muito clara, o sexo feminino está colocado na “primeira posição” em uma lista que não pode deixar de intrigar, à distância de 800 anos: ser mulher, ser incapaz, ser escravo, ser réu de graves delitos, ser filho natural e ser deficiente.
Essas condições são “sem poder” – seja por necessidade “natural”, seja por contingência histórica – e, portanto, não podem ser investidas de papéis de poder, nem mesmo na Igreja.
Essa compreensão sistemática, como é evidente, não tem uma origem “teológica”, mas sim “cultural” e “sociológica”. Não tem nada de “revelado”, mas é um instrumento para resolver os conflitos. Ao fazer isso, no entanto, assume como normativo aquilo que hoje, em grande medida, não podemos mais aceitar. Hoje projetamos “cidades sem barreiras arquitetônicas”, enquanto, no mundo de Tomás, o deficiente era forçado, até mesmo moralmente, a ficar em casa, escondido.
Gostaria de me deter por mais um instante na quinta condição problemática dessa lista: ser “filho natural”. O título de “filho natural” era, na sociedade tradicional, o sinal de uma marginalização devido à “desordem” de que provinha o filho. Ter nascido “fora do matrimônio” era percebido como uma ameaça à ordem social e à honra dos sujeitos. A gestão dos conflitos era garantida pela “exclusão” do filho natural.
Como o sexo era pensado como um “meio para a geração no matrimônio”, todo exercício do sexo fora do matrimônio era, de fato, excomungado primeiro socialmente e depois também eclesialmente. Cada tradição cristã teve as suas formas de excomunhão. Tanto os decretos de bispos ou de párocos, quanto os bancos na igreja com a inscrição “meretrizes” sinalizavam a “desordem” que era imediatamente relevante para a ordem pública.
Esse “sistema” resistiu até as grandes convulsões do início dos anos 1800. Nos quais nasceu não apenas o “Estado liberal”, mas também a “sexualidade”, que poderíamos definir como uma nova percepção do sexo, em termos não apenas funcionais. A sexualidade é uma visão, uma experiência e um uso do sexo como parte da identidade do sujeito e como expressão da sua humanidade e das suas relações.
Essa mudança modifica profundamente o “sistema” com o qual pensamos a vida do ser humano no mundo e diante de Deus. A Igreja Católica viveu essa mudança “sistemática” como um trauma, como o início do fim, como o colapso de toda a ordem dos valores e como uma perda de poder.
Mas também reagiu “modificando o sistema”. Um dos pontos sistemáticos mais interessantes é a modificação do “sistema dos bens” do casamento. Ele havia sido inventado em outro mundo por aquela genialidade de Santo Agostinho, que, com uma síntese admirável, havia sancionado que, no matrimônio, havia três bens: os filhos, a fidelidade e o sacramento (entendido como indissolubilidade do vínculo).
Essa síntese orientou o modo de pensar por quase um milênio e meio, e ainda hoje é bastante útil. Mas não é mais suficiente. Porque, no matrimônio, há 60 anos, oficialmente, há também o “bonum coniugum”, ou seja, o “bem dos cônjuges”, que é uma categoria sistemática nova, que muda na raiz o sistema de Agostinho. O sujeito assumiu um novo, significado, e, por isso, o “gerar filhos” também pode ser “responsável”, ou seja, subordinado a condições diversas e significativas.
Essas considerações sistemáticas – que eu espero que agora sejam tudo menos ociosas – podem ter uma grande influência também sobre o modo como a Igreja fala dos comportamentos homossexuais e das identidades homossexuais.
Se utilizarmos o conceito de “ato desordenado” – categoria que diz respeito a todas as formas de “uso do sexo” fora do matrimônio e/ou não orientado à geração – projetamos sobre os sujeitos envolvidos a luz de um farol que os ilumina apenas em um mundo que não existe mais. Porque lê a sexualidade deles apenas como o “instrumento para a geração”.
Aqui está o ponto sistemático inadequado e irremediavelmente distorcido. Mas, atenção, a distorção não está em tematizar a geração, que continua sendo totalmente apreciável, mas em assumi-la como o único perfil decisivo para avaliar um comportamento, para se relacionar com as pessoas e para tomar uma decisão.
Gostaria de acrescentar outro pequeno exemplo que sempre considerei altamente instrutivo. O episódio remonta a alguns anos atrás, durante o “Governo Letta”, quando o então primeiro-ministro italiano – recordo-o bem –, em uma coletiva de imprensa, deu a notícia de que a Itália também havia finalmente se adequado aos novos padrões europeus e finalmente havia equiparado totalmente a posição jurídica do “filho natural” à do “filho legítimo”. A “desordem” na qual o filho havia nascido não pesava mais sobre a sua posição jurídica no ordenamento do Estado.
Lembro que eu me encontrava em Roma conversando com um canonista sobre essa notícia. E notei que havia nele uma certa resistência. No fim, ele explicitou o seu incômodo com uma frase que me impressionou muito: “Com essa lei, agora as pessoas não vão mais se casar nem mesmo para regularizar os filhos”. Achei a reação iluminadora: o “sistema” ainda era pensado como o de um mundo em que as leis têm essencialmente uma função “pedagógica”, ou seja, devem impor deveres antes de reconhecer direitos. Mesmo às custas de manter uma discriminação, a fim de salvar o princípio.
Creio que essa é a perspectiva sistemática que influencia também na decisão assumida pela Congregação: a ideia é de que é preciso evitar abençoar os casais homossexuais para impedir qualquer pedagogia que incentive a desordem. Olha-se para o ordenamento, não para os sujeitos. Isso é tipicamente pré-moderno. Não é totalmente injustificado, mas responde a um paradigma que não é mais o nosso.
Em suma, como tentei ilustrar mediante uma pequena reflexão e alguns exemplos, as graves perplexidades diante do “responsum” dependem de dois problemas sistemáticos que influenciam fortemente a solução adotada:
a) uma sistemática teológica superada não consegue sair de uma leitura do sexo que o reduz a uma “função de geração”. Há 200 anos, pelo menos na Europa, não é mais assim: a experiência de homens e mulheres é diferente, e as formas de vida seguem outras lógicas. Às quais não devemos nos render, mas que devem ser consideradas no sistema de uma forma não acessória. O constrangimento do responsum aparece com clareza total quando ele tenta “acrescentar” o respeito às pessoas, sem modificar um “sistema” que absolutamente não pode considerá-las. O efeito grotesco, ao mesmo tempo trágico e cômico, vem precisamente desse “choque de sistemas”. Ou se trabalha no sistema ou se fazem pastiches cada vez maiores.
b) uma sistemática jurídica, firme em uma leitura oitocentista da codificação e da lei universal e abstrata, unida a uma visão “apenas pedagógica” da lei. Se é verdade que o mundo moderno só pode falar de direitos e não reconhecer a função decisiva dos deveres, é igualmente verdade que uma Igreja que não consegue conceber o “direito do sujeito” a ser reconhecido por aquilo que é e pelo bem que pode viver e testemunhar constitui um problema igualmente grave. Reconhecer o bem que existe – e também poder abençoá-lo – em vez de apontar apenas para o bem máximo a ser imposto a todo o custo não é “relativismo”, mas princípio de realidade e primado do real sobre o ideal.
Um último ponto deve ser esclarecido e é fundamental. Muitas vezes, ouvimos objeções dirigidas aos teólogos, acusados de “complicar as coisas simples”. A partir desse ponto de vista, são precisamente os “sistemáticos” que estão na primeira fila das acusações. Sem querer defender abstratamente toda uma categoria, que às vezes tem todas as suas bravas culpas, tento apenas mostrar que uma sistemática adequada não é algo que se “acrescenta” à realidade, mas é um elemento decisivo que a torna plenamente visível e perceptível.
O que mais chama a atenção de modo mais surpreendente no responsum é precisamente o fato de que, devido a uma sistemática teológica e de uma sistemática jurídica de mais de um século de idade, o texto da Congregação falha no objeto da discussão. Ou seja, não consegue fazer experiência da questão e a resolve referindo-se a conceitos e a normas que a desfiguram.
Aqui há trabalho para teólogos (e para juristas) que queiram servir à Igreja e ajudá-la a reconhecer as estradas fechadas e a traçar novos caminhos para sair da mata fechada, em uma passagem muito complexa, mas, por isso mesmo, totalmente maravilhosa.
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O que é um problema sistemático? Casais homossexuais e pedagogia da lei. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU