06 Agosto 2021
"A primeira coisa que eu anoto é que hoje, depois do Traditionis custodes, é possível aquele debate que o Summorum pontificum muitas vezes havia evitado ou até censurado. Mas ainda mais interessante é considerar um fato de grande relevo: ou seja, o tendencial 'abuso' que caracterizou o uso do Summorum pontificum."
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 04-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A publicação do motu proprio Traditionis custodes suscitou um justo debate em torno do anterior Summorum pontificum, que em 2007 havia introduzido a estrutura litúrgica e normativa agora revogada.
A primeira coisa que eu anoto é que hoje, depois do Traditionis custodes, é possível aquele debate que o Summorum pontificum muitas vezes havia evitado ou até censurado. Mas ainda mais interessante é considerar um fato de grande relevo: ou seja, o tendencial “abuso” que caracterizou o uso do Summorum pontificum.
Antes de examinar dois efeitos surpreendentes desse “abuso”, não quero esquecer que o próprio uso do Summorum pontificum estava viciado por petições de princípio que hoje reconhecemos como profundamente distorcidas. O “primado das coisas sagradas para as gerações anteriores” e o “paralelismo entre diferentes formas do mesmo rito romano”, de fato, minaram o uso do Summorum pontificum.
Já falei sobre isso nos posts anteriores. O que agora parece justo sublinhar, por sua vez, é que o Summorum pontificum foi utilizado para introduzir abusos graves dentro do corpo eclesial. Gostaria de apresentar os dois principais.
O que surpreendeu muito, a partir de 2007, foi o fato de que se considerasse o “favor ao Summorum pontificum” como um critério para escolher os candidatos ao episcopado. Curiosa modalidade de aprendizado: somente aqueles que renunciaram ao controle da liturgia na sua própria diocese pareciam aptos a se tornarem bispos.
Aqui, como é evidente, é claro que o Summorum pontificum não foi utilizado “liturgiae causa”, mas como instrumento de normalização eclesial. De fato, se você decide que o obséquio ao Summorum pontificum se torna critério de “episcopabilidade”, você difunde no corpo eclesial uma espécie de “irrelevância do Concílio”, que pode chegar àquele “negacionismo conciliar” que caracterizou a primeira década do novo milênio.
Isso implica inevitavelmente uma espécie de “efeito cascata”: se você nomeia bispos apenas aqueles que não têm nenhum problema em admitir o uso do Vetus Ordo, indiretamente você também favorece uma certa inclinação dos lugares de formação, liderados por esses bispos, favorecendo uma formação “paralela” também dos próprios seminaristas.
Desse modo, o Summorum pontificum, que nasceu para responder a uma condição de fato, se transformou em um grande incentivo para uma carreira episcopal “sem custódia” da tradição. E foi muito triste ver alguns monsenhores, alguns teólogos e alguns padres correndo para celebrar em Vetus Ordo, para não impedirem a si mesmos uma digna promoção.
Esse uso do Summorum pontificum tem sido um abuso, que sofremos, em nível universal, há quase uma década. Chegando a casos limites: a um bom amigo padre, os generosos jornalistas especializados em informações palacianas chegaram a “acrescentar palavras finais” ao seu artigo sobre o Summorum pontificum, para não lhe impedir a possibilidade de ser nomeado bispo... felizmente não deu em nada.
Recém-publicado, o Summorum pontificum mostrava problemas de configuração teológica e de gestão jurídica tão grandes quanto uma casa. Mas o impacto no debate eclesial foi absolutamente mínimo. Muitos teólogos e quase todos os canonistas se limitaram a repetir o que estava escrito nele, com resignação e distanciamento, sem exercer qualquer verdadeiro trabalho de inteligência crítica.
Lembro-me de um episódio bastante significativo, ocorrido no Ateneu Santo Anselmo. Com outros colegas, tínhamos solicitado que o ateneu exercesse o justo controle crítico sobre o texto. Mas chegou do Vaticano a recomendação, singular, de que tudo ocorresse com duas condições: a portas fechadas e com a ausência de estudantes. Não renunciamos a realizar um belo seminário entre professores.
Lembro-me, naquela ocasião, de dois discursos iluminadores. As palavras de Sebastiano Paciolla, que mostrou as contradições jurídicas e institucionais do Summorum pontificum, e de Enrico Mazza, que trouxe à tona a fragilidade litúrgica e sistemática da “dupla forma do mesmo rito”.
Foi curioso que se recomendou que não se falasse nada publicamente desse debate. Quanta diferença entre o clima de 14 anos atrás e o de hoje! Um debate livre substituiu uma espécie de censura preventiva, que condicionou sensivelmente a elaboração de um “saber eclesial” à altura do desafio. Que não dizia respeito principalmente à liturgia, mas à reforma da Igreja e à necessária colaboração entre magistério dos pastores e magistério dos teólogos.
Há uma sutil ironia no título “Traditionis custodes”: a restituição da autoridade sobre a liturgia aos bispos foi o ponto eclesiológico decisivo do novo motu proprio. O Summorum pontificum, por outro lado, não só “retirou o poder” dos bispos, mas também havia se tornado um critério decisivo para a nomeação dos próprios bispos.
Quando ocorrem passagens desse tipo, é preciso que a tradição eclesial seja protegida não só pelos bispos, mas por todo o povo de Deus e pelo trabalho teológico e jurídico, que tem e deve ter a sua autonomia de juízo.
Se os teólogos se calaram, se os juristas simplesmente descreveram as normas, sem julgar fatos e consequências, a tradição sofreu com isso. Lendo o texto do Traditionis custodes, fica evidente não só que o uso do Summorum pontificum acabou, mas que o abuso do Summorum pontificum é agora abertamente denunciado e superado.
Não teríamos perdido 14 anos se todos, dentro dos limites da sua autoridade, tivessem dito e feito o que estava em seu poder, sem temer nem o fato de ver comprometida a sua carreira, nem o de sair do “jogo de espelhos” que o Summorum pontificum, muito além das intenções para as quais havia nascido, introduziu gradualmente.
Precisamente pela teoria da qual se alimenta, o Summorum pontificum não diz respeito apenas à liturgia, mas também a toda a Igreja. Assim, nas mãos desajeitadas de quem o administrou, no centro e na periferia, ele se tornou um instrumento perigoso para afirmar e difundir aquele negacionismo conciliar e aquela paralisia eclesial da qual temos a tarefa nada fácil de nos libertar.
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Abusos do Summorum pontificum: negacionismo conciliar e bloqueio eclesial. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU